Síndrome. escrita por Rodrigo Oliveira


Capítulo 2
Capítulo 2




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Bogard reclinou-se na cadeira de balanço, tornou a tragar a fumaça do cachimbo, com os olhos fitando o horizonte. Tentava buscar no fundo da mente algum caso que já tivesse tratado que possuísse os mesmos sintomas que a jovem Lia apresentava, mas nada lhe ocorrera. Letargia alternada com momentos de euforia e sonambulismo aparente. Estaria a jovem sob efeito de algum feitiço? Dizia não acreditar nos boatos e crendices que os africanos traziam, porém ouvira relatos de rituais em que os escravos invocavam entidades espirituais e eram possessos por elas, podendo assim controlar de certa forma esses entes, para que fizessem mal aos seus inimigos. Podendo, segundo eles, até mesmo acabar com a vida de um desafeto, se assim quisessem. Apesar de Bogard já ter assistido a alguns desses rituais que figuravam na senzala, costumava dizer aos amigos próximos que se eles realmente pudessem controlar os espíritos e acabar com vida de quem desejassem, não seriam escravos hoje em dia. Era um tanto contraditório. Mas de qualquer forma sabia também que se as pessoas acreditassem piamente nessa ritualística, isso poderia influenciá-las psicologicamente, fazendo com que sintomatizassem aquilo no qual crêem. Desta forma resolveu escrever para seu amigo, respondendo-lhe:

“Missouri. 22 de fevereiro de 1862.

Caro Robert.

Espero que o bom Deus tenha abençoado você e sua casa e que, quando esta o encontrar, seu problema e da jovem Lia já esteja resolvido.

Grande amigo, como você já sabe, eu já estou no ramo da medicina há décadas, ajudando o próximo, estudando as novidades e descobertas e já tratei centenas, quem sabe milhares, de pacientes em diversos estados de saúde. Contudo devo reconhecer que nunca vi algo parecido com o que acontece com Lia. Parece-me uma mistura de alguma espécie de anemia extrema, grave sonambulismo e, quem sabe, parasitismo. Digo isto porque a palidez excessiva, juntamente com o cansaço agravado pode sim sinalizar uma anemia crônica. Quanto ao fato de ela levantar-se e sair a noite, acordando longe de casa, sem recordação alguma, é comum aos sonâmbulos. Em relação ao estranho gosto por carne crua, creio ser algum tipo de parasita. Alguns destes vermes, quando vivem em nossas entranhas, causam mudanças fisiológicas que, por não raras vezes, alteram o paladar e causam desejo de ingerir coisas incomuns. Um dos casos mais corriqueiros é o de crianças que quando infestadas por lombrigas ou algo do gênero, desenvolvem uma vontade insaciável de comer coisas estranhas, entre elas até mesmo terra crua. Infelizmente eu não tenho registros de que tudo tenha acontecido ao mesmo tempo, e sem maiores exames tudo seria apenas uma tentativa de se acertar um alvo atirando no escuro. Sem vê-la e examiná-la seria impossível precisar. Contudo recomendo-lhe que proceda, o mais rápido possível, a uma cidade próxima que disponha de um médico que possa dar-lhes assistência, pois o caso pode ser mais grave do que parece.

Se puder, e quiser, nos envie Lia para que, com mais recursos na região, possamos tentar ajudá-la. Ela seria muito bem vinda, acredite. Perdoe não poder ajudá-lo mais. Garanto-lhe que continuarei na busca, em pesquisa nos meus livros de algo que possa ajudá-lo.

Dr. Willian S. Bogard”

Longe de lá, na cidade de Nova Orleans, a situação da família de Robert não estava melhor. Lia, após semanas, praticamente não saía mais a luz do dia. Ficava trancada no quarto enquanto a luz do sol estivesse à pino. Dizia que a incomodava sobremaneira, de modo que só podia ir ao quintal ao fim da tarde, quando a luz do astro celeste já diminuíra sua intensidade. Os escravos ficaram sabendo do que acontecia dentro da casa principal, pois os empregados diretos também eram escravos amedrontados que possuíam parentes na senzala. O burburinho dava conta de que a menina havia sido amaldiçoada.

Após longos dias de viagem, a carta escrita pelo Dr. Bogard chegou ao seu destino. Robert a abriu com pressa. O coração palpitava fortemente enquanto rasgava o envelope, porém a resposta não o ajudou muito. Enquanto digeria apressadamente as palavras escritas por seu amigo, sua atenção fora desviada com um som de lamento e desespero vindo dos escravos do lado de fora. Lançou mão de sua espingarda e saiu ao encontro do burburinho. Foi o primeiro a sair pela varanda, com sua mulher, a filha mais nova e seu encarregado Muddy, que era seu braço direito. Cerca de setenta escravos, homens e mulheres, estavam estacados em frente de casa e o corpo retalhado de um deles estava à frente do grupo, no chão. Duas mulheres, uma mais nova que deveria ser sua esposa e a outra mais velha, provavelmente sua mãe, choravam desesperadas sobre o corpo. Ao longe na senzala ouvia-se ainda o batucar de tambores num ritmo frenético e contínuo. Enquanto olhava em direção a senzala, sem dizer uma palavra sequer, um dos escravos que estava mais próximo disse que a batida era um ritual para protegê-los de demônios. Robert o olhou surpreso.

– Demônios? Que demônios? .

– Não sei dizer ainda, senhor – disse o homem negro – Desde que o homem da medicina foi morto, junto com o seu cavalo, coisas estranhas têm acontecido, cada vez com mais freqüência. Todos estão preocupados. Existem crianças na senzala, senhor. Os homens não saem mais de dentro depois que o sol se põe. Alguns animais menores têm sido encontrados mortos sem uma gota de sangue sequer, o senhor compreende? Nem se dez morcegos africanos se apossassem de um cachorro dariam conta de sugar seu sangue até a última gota em apenas algumas horas.

– Você não me disse nada a respeito de animais sem sangue – falou Robert, enquanto andava ao lado do escravo, afastando-se dos outros escravos.

– Não trazemos nossos problemas ao senhor, compreenda. Somos escravos nesta terra. Nossa vida se resume a trabalhar e tentar conseguir algum dinheiro para comprar nossa liberdade.

Enquanto pensava nos animais secos foi invadido por um estranho pensamento que não lhe agradava. Era inevitável não lembrar no estranho gosto por carne crua de Lia. Não podia conceber que a frágil menina fosse capaz disso. Não mesmo. Voltou-se aos escravos. Ordenou ao que respondia por eles que o homem fosse sepultado ao lado da senzala e que deveriam manter guarda durante a noite. Disse também que não deveriam sair sozinhos, seja para o que fosse. Sempre deveriam estar em dupla. Algum animal selvagem está solto pelas redondezas, disse, e temos que nos precaver.

Os vivos levaram seu morto e foram chorar e sepultá-lo.

Quando a noite caiu, todos estavam reunidos na mesa de jantar. Ao longe os batuques na senzala se faziam ouvir e Robert estava realmente incomodado com os pensamentos que rondavam sua cabeça. Olhava para Lia, sentada à mesa, com a pele pálida, com um sorrisinho de canto de boca, cortando a carne mal passada com a faca e colocando na boca em seguida. Parecia sentir prazer ao senti-la na boca, de modo que chegava a fechar os olhos ao saboreá-la. Robert pegou-se imaginando Lia, cortando a cabeça do escravo, educadamente com os talheres e provando seu gosto. Sentiu náuseas e levantou-se da mesa, desculpando-se. Sua mulher tentou ajudá-lo, mas ele indicou que tudo estava bem e foi-se em direção ao lavabo. Lia, por sua vez, não se abalava. Era como se nada estivesse acontecendo ao seu redor.

Naquela mesma noite, como de hábito, Robert colocou suas filhas em seus aposentos e por via das dúvidas trancou as portas de ambos os quartos. Lia estava aparentemente feliz e agradeceu seu pai pela preocupação.

– Você ainda não se lembra de nada, Lia?

– Não, papai. Nada. Apenas...

– O quê? Apenas o quê?

– tive um estranho sonho e só me lembrei muitas horas mais tarde. Naquela mesma noite em que o senhor me achou na margem do rio. Sonhei que estava deitada na minha cama e a janela se abriu com o vento. Um grande vulto preto pairou sobre mim. Lembro de ter sentido uma enorme paz e fui envolvida pelo manto negro. Saí pela janela, voando, e senti a liberdade de fluir nos céus como se fosse fumaça. Eu não tinha peso algum no corpo. De repente fui assolada por uma terrível dor. Meu ventre se contorceu como que dando um terrível nó e eu comecei a cair das alturas. Parecia que iria me esborrachar no solo e morrer, mas enquanto eu caía, vi lá embaixo o enfermeiro montado a cavalo correndo pela estrada. Sem saber como, eu ia direcionada para ele e no momento em que me aproximava, a velocidade diminuiu e assentei sobre ele como uma mortalha. Lembro de ter cessado a dor imediatamente e... Não me recordo de mais nada. O sono se foi e adormeci continuamente, até que fui acordada por você, debaixo daquele velho tronco – disse a menina, parecendo recobrar a normalidade por alguns instantes.

Seu pai estranhou, pois sequer comentou com a jovem sobre a morte do enfermeiro, mas relutava em ligar uma coisa a outra naquele momento. Despediu-se dela com um beijo na testa, cobriu-a com uma manta e saiu do quarto, trancando-o atrás de si. Permaneceu sentado na sala de estar, tomando uma dose de whisky do Tennessee . escorava sua espingarda nos joelhos quando sua esposa entrou na sala.

– O que está havendo, Robert – perguntou ela – Por favor, não minta para mim. O que está havendo com Lia?

– Eu não sei Amélia. Para ser sincero, eu também gostaria de saber – parou por um instante com o olhar fixo na lareira, e prosseguiu – Os escravos falam em maldição, em demônios bebedores de sangue, em rituais malignos, mas não sou dado a crenças, mas...

– O que foi? Vamos logo, diga!

– O enfermeiro foi morto na noite em que saiu daqui. Lia sonhou que o atacava e... Eu não sei, Amélia. É tudo muito confuso – fez uma pausa e em seguida prosseguiu - Recebi uma carta. Dr. Bogard pediu que enviasse-mos Lia ao Missouri. Não sei se é uma boa idéia. Não quero transferir nossos problemas àquele bom homem, compreende? Devemos continuar tentando por aqui.

– Continuar o quê, homem? Nem sabemos do que se trata! Nossa filha aparece dias como um cadáver em vida e no dia seguinte aparece como um bebê rosado. Não anda mais durante o dia e passa as noites em claro trancada em seu quarto. Acha mesmo que está resolvendo alguma coisa?

– Fui procurado por Insala – disse fitando-a nos olhos.

– O escravo?

– Sim, o escravo. O comprei há dois anos de um vendedor inglês. Ele trabalhou na Inglaterra por muitos anos e disse que algo parecido aconteceu com a filha mais velha do seu senhor - Enquanto falava com sua esposa, lá em cima no segundo andar, do lado de fora do quarto de Lia, uma tênue fumaça negra, inodora, saía por debaixo da porta, como uma nefasta neblina. Ela subiu em seguida, em direção a cadeado que bloqueava a entrada do aposento. Ao adentrar ao buraco da chave, o cadeado imediatamente destrancou-se – Primeiro alguns animais apareceram mortos, sem que sangue fosse derramado – prosseguiu Robert – Em seguida foram escravos e parentes próximos. Ninguém ouvia um grito sequer. Todos se recolhiam à noite e ao acordarem deparavam-se com os corpos, muitas vezes em seus próprios quartos, secos como palha, sem uma gota de sangue. Disse que certo dia, a menina simplesmente desapareceu. Foi encontrada morta, alguns dias mais tarde, no celeiro. O estranho é que não conseguiram identificar a causa da morte. Não havia marcas no corpo ou nada que identificasse a causa do óbito. Porém as mortes continuaram acontecendo.

Os escravos, apavorados, faziam seus rituais religiosos, e após uma noite de muitas batucadas na senzala, uma das escravas, a mais velha delas, procurou o seu senhor. Ela era escrava, porém entre os negros ela era algo como uma rainha em sua terra e dizia-se que falava com os espíritos. Ela o disse que as forças do além revelaram que sua filha, supostamente falecida, é quem estava causando as mortes. O homem tomou isso como afronta e mandou que a velha escrava fosse açoitada trinta vezes, e assim foi feito. Após sair do tronco onde fora chibateada, a velha mulher olhou-o nos olhos e disse que nem duzentos açoites mudariam o fato de que a sua menina é quem estava trazendo desgraça. Segundo conta, meses passaram-se e as mortes continuaram. Certa noite ouviu-se tiros na casa principal e gritos. Os escravos, mesmo assustados, correram para ver o que estava acontecendo e conseguiram ver, ao longe, a menina, nua, branca como vela, sair da casa correndo veloz como um animal... correndo de quatro pés, compreende? Ao entrarem na casa, toda a família estava morta, com suas gargantas dilaceradas. Disse ainda que o senhor da casa foi encontrado morto com os olhos arregalados, numa sinistra expressão de horror. Na manhã seguinte os escravos, liderados pela sua matriarca, seguiram juntos ao cemitério, onde a menina havia sido enterrada num pequeno mausoléu. A porta de ferro estava destrancada e o caixão jazia dentro de um bloco de granito negro. Arrastaram o pesado tampo de pedra e ficaram estarrecidos com o que viram. O caixão, dentro do bloco, estava destampado e a menina jazia como se estivesse dormindo. Seu peito chegava mesmo a subir e descer, num movimento característico da respiração, contudo não esboçou o menor sinal de ter ouvido as palavras de lamentação e terror dos escravos. Permaneceu imóvel. A matriarca fez sinal para que todos se afastassem do esquife. Ela estendeu ambas as mãos sobre o corpo da menina e começou a fazer um tipo de conjuração. Dizia palavras numa língua desconhecida. Quando disse a última palavra, a menina abriu seus olhos e sua boca, soltando um silvo terrível, porém não conseguia se mover. Entenderam que era por causa do encantamento que a velha havia proferido. Disse que os olhos da menina estavam enegrecidos, sem parte branca alguma e que seus dentes se projetaram animalescamente. Ela abriu uma sacola e de dentro sacou uma grande estaca de madeira e uma marreta. Colocou a ponta do objeto sobre o coração da menina morta, que grunhia sem poder se mexer, como se estivesse atada por fortes cordas, contudo nada havia ao seu redor. Pediu que um dos escravos cobrisse o rosto da menina com um tecido, em respeito ao que ela havia sido. Em seguida bateu com toda sua força na base da estaca, que com um terrível som, da caixa torácica se quebrando, destruiu o coração da garota que soltou um urro gutural e desfaleceu em seguida. Todos se reuniram em volta do caixão novamente e viram que o corpo começou a putrefazer em questão de pouquíssimos instantes. A alma da menina iria agora descansar, segundo eles.

Robert encarava as chamas na lareira, sem ao menos piscar. Amélia não proferiu palavra alguma num primeiro instante. Dividia-se entre a incredulidade e o assombro. Naquele momento ouvia-se apenas o crepitar das chamas quebrando o silêncio.

– Estou com medo, para lhe falar a verdade, Amélia. Algo dentro de mim gostaria realmente que o escravo estivesse errado, ou mentindo, mas por outro lado, algo me diz que ele está certo.

– Está dizendo que está pensando em enfiar uma estaca de madeira no peito de sua filha? Você só pode estar brincando! – aumentou o tom da voz.

– Quer falar baixo?! Não sabe que Lia não tem dormido a noite?! – Enquanto ainda falava, Robert olhou instintivamente para o alto, em direção ao corredor do segundo andar, onde ficavam os quartos, e sentiu o sangue gelar nas veias, ao ver que Lia, pálida como uma vela, estava de pé no alto da escada, imóvel, fitando-o com um olhar medonho.

(continua...)


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