Exílio Soturno escrita por Kirialini


Capítulo 6
Lagoa do Desespero




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27 de outubro de 2014


Ponto de Vista de Salsicha:


Sabendo que Beau esteve conosco na Ilha Moonscar, com Simone e Lena, que viu o que vimos, eu não deveria estar surpreso por ele não estar surpreso. Pelo menos, não exageradamente. Imagino eu que ele não seja tão cético quanto o restante da turma, que, depois de ficar cara a cara com zumbis, fantasmas e alienígenas, ainda custam a acreditar em mim e em Scooby quando descrevemos alguma experiência paranormal. Tudo bem que na maioria da vezes não passa de um mero mortal usando uma máscara, galhos de árvores sinistros, ilusões causadas pela luz ou qualquer coisa do tipo, mas mesmo assim não é motivo para descartar a possibilidade de uma ameaça sobrenatural real.
Por fim, a reação de Beau foi muito, muito menor do que quando descobri que tomate era uma fruta.
— Então vocês estão dizendo que tudo isso está sendo causado por uma bruxa fantasma? – ele franze a testa, limpa seus pulmões e volta a falar. — Se é isso mesmo, como nós, pessoas normais, poderíamos detê-la?
— Eu acho que nossa melhor aposta é achar o tal livro — eu digo. — Se foi ele mesmo que alterou o comportamento das órfãs, ele pode não ser um livro comum.
— Livro mágico — Scooby complementa.
— Se eu estiver certo e este livro for realmente cheio de magia, ele pode conter algum contrafeitiço, uma receita para cura...ou se... — eu umedeço meus lábios com a língua e engulo a saliva — ...se não acharmos nada para despertar Fred e as garotas, pelo menos teremos alguma chance em ajudar os desaparecidos – Scooby esfrega seu pescoço na lateral externa de minha perna numa tentativa de me confortar.
— Tenho certeza que acharemos um jeito — Beau dá um tapinha um tanto desanimado em meu ombro. — Acho que devemos continuar de onde paramos — ele sorri.
— Era exatamente o que estava prestes a dizer — sorrio também, só que mentalmente.
A lua toma o lugar do Sol no céu, que agora estava escuro. Beau passou a noite onde diabos estava hospedado e eu e Scooby decidimos permanecer ali na sala de espera do hospital, onde a cadeira não era coisa alguma confortável. De vez em quando, um enigma pousava em minha mente, “não lembro de ter dormido, mas muito menos de ter ficado acordado”, devido à alguns pequenos cochilos que tinha a sorte de desfrutar naquelas condições. Volta e meia, Scooby acordava num salto por causa de algum pesadelo que o fazia ganir por certo tempo.
Nosso próximo passo antes do acidente era visitar a universidade, dessa vez em busca de relatos dos alunos e funcionários, visando algum depoimento que pudesse esclarecer alguns fatos e nos desse um novo rumo. Então, como o plano era continuar de onde havíamos parado, é para lá que vamos logo cedo. Beau nos leva em seu carro azul cinzento.
— Não desanimem – ele diz de olho na estrada, mas de vez em quando seu olhar encontrava Scooby no banco de trás pelo retrovisor. – Vocês já superaram muitas coisas, só as que eu presenciei são muitas: zumbis, criaturas gato, fantasmas em filmagens e em espelhos...vão passar por isso numa boa — seu sorriso me parece sarcástico, mas posso estar deixando minha antipatia por ele falar mais alto.
— Mas... — Scooby começa mas se cala no mesmo instante — Esquece.
Após nossa chegada à universidade, Beau tomou seu rumo em direção a área esportiva e nós seguimos em direção ao refeitório, porém determinados a não se distrair com a comida. Paremos por um segundo na porta de entrada e observamos um pouco a situação. Dentre várias mesas com diferentes tipos de alunos, uma me chamou a atenção e achei que seria uma ótima forma de começar o “interrogatório”. Uma menina de óculos e de cabelos emaranhados comia um cachorro-quente, aparentemente supersuculento, e às vezes falava sozinha de boca cheia. Ela estava sozinha na mesa, quando me aproximei e perguntei:
— Com licença — eu disse acenando com a mão e Scooby fazia o mesmo. — Será que posso me sentar?
— Vocês viram a placa? — ela disse estreitando os olhos um pouco confusa, e apontou para uma placa que proibia animais.
— Mas ele não é um animal — Scooby diz para a moça, olhando para ela como se a achasse maluca.
— Nós temos autorização — eu digo antes que haja alguma confusão. — Aliás, qual é o seu nome? — eu vou direto ao ponto. — O meu é Salsicha Rogers e este é meu companheiro Scooby-Doo, será que podemos conversar um pouco sobre os recentes desaparecimentos? — Eu me sento do outro lado da mesa.
— É... — ela pensa um pouco, como se estivesse digerindo as informações ainda. — Pode ser. Meu nome é Marceline Fleach, o que querem saber?
— Quero saber o que pode me dizer sobre Joanne Brunhild — eu limpo a garganta. — Você a conhece?
— Joanne Brunhild — ela pensa um pouco. — Como eu posso começar a explicar Joanne Brunhild? Sabe... — ela diminui o tom de voz e se aproxima de mim, quase se debruçando sobre a mesa. — Se vocês perguntarem a todos por aí, vão dizer que ela é perfeita, que o cabelo dela é maravilhoso e tudo mais, mas isso é tudo bajulação, por ela ser filha da reitora — ela olha para um lado e para o outro, como uma fora da lei. — Mas ela mal aparece nas aulas, eu a vi poucas vezes no ano...e estamos no mesmo curso.
— Então, perguntar se você notou alguma mudança de comportamento dela seria estúpido, não é? — eu a questiono.
— Um pouco — ela sorri.
Bem, Marceline estava certa. Das próximas cinco pessoas com quem conversei tive que ouvir muita, mas muita babação de ovo. Não é de se surpreender, com a imagem que a reitora insiste em passar aos outros, não dá para sentir nada mas medo.
Eu e Scooby damos uma parada assim que o refeitório fica quase deserto. Nossa animação não está conosco.
— É inútil — Scooby diz cabisbaixo.
— Eu sei — saio da postura e sinto peso nos ombros. — Não somos nada sem o pessoal. Não vemos as coisas como a Daphne, não temos o cérebro da Velma, nem a coragem e direção do Fred — eu olho para Scooby, ele está arrasado. — Eu sinto desapontá-lo, amigão, mas não sei como podemos ajudá-los. Essa coisa de fazer perguntas não vai levar a nada.
— A ajuda não vai chegar como mágica — Scooby coloca as mãos na cabeça em preocupação.
— Espera... — eu digo satisfeito. — Tenho uma ideia, mas temos que fazer isso sozinhos.
— Você não confia em Beau — eu lanço a Scooby um olhar de afirmação.
— E mesmo que confiasse, não poderia contar a ele...
Vamos até a biblioteca da universidade, diretamente ao corredor de misticismo. Claramente, um setor pouco visitado, tem mais poeira que as tumbas de Gizé. Vou passando a ponta dos dedos pelos livros até encontrar o que procuro.
— ...C, D, E, F... — estou no caminho certo. — Fadas, achei.
Eu retiro o livro de couro da estante, suas páginas estão envelhecidas. No sumário, busco por uma coisa em específico: Como invocar uma fada – Página 169.
— Beau está vindo — Scooby sussurra da intercessão entre corredor de misticismo e o principal.
Eu arranco a página.
Velma me mataria se estivesse aqui, penso.
Coloco o livro de volta na estante e então retiro aleatoriamente outros dela. A poeira, ou melhor, a falta dela, te dedura. Não deixaria que ela entregasse o que estava à procura. Quando Beau finalmente chega ao corredor em que estou, dou uma disfarçada.
— O que estão fazendo aqui? — ele pergunta desconfiado.
— Procurando pelo livro — por pouco não gaguejo. Suor percorre meu rosto.
— O livro roubado? — ele me encara fixamente.
— Exato — e aí começa meu show de improviso. O que a Velma diria? — Por acharmos que ele foi roubado, este seria o último lugar que procuraríamos, o que o torna o esconderijo perfeito, não acha? — eu sorrio forçadamente.
— É — ele parece um pouco convencido e eu suspiro de alívio. — Achou alguma coisa?
— Não — eu respiro, finjo descontentamento e logo me recomponho. — E você, teve sorte com os depoimentos?
— Todos falam dessa menina como se fosse alguma santidade, essa reitora deve ser o cão mesmo...sem ofensas, Scooby — Beau dá uma piscadela para o agora confuso Scooby-Doo.
— Cão? Onde? — ele faz o que eu já esperava. Ninguém responde.
— Como assim — agora eu sou o confuso. — Pensei que você já a conhecia, quero dizer, se você está mesmo nesse caso, já deveria ter falado com ela, não é?
— Ah si-sim — ele gagueja um pouco. — Mas ela não me mostrou suas garras. Ela não é tola em arriscar sua reputação desrespeitando um homem da lei — ele diz sorrindo. Como sempre o faz.
— Bem — eu olho no relógio de parede a minha frente. — Já é quase hora do almoço, eu e Scooby já não pensamos muito bem de estômagos cheios, imagine vazios — dou uma risada forçada e deslizo a mão sobre a barriga. Scooby faz o mesmo. — Acho uma boa ideia fazermos uma pausa para comer, você vai adorar o buffet do hotel em que estamos hospedados, e dar uma checada na turma, para então continuar a procurar pistas — eu pisco para ele como ele mesmo sempre faz, mas pode ter soado estranho. — O que você acha?
— Por mim, tudo bem — ele diz um pouco hesitante. —Apesar de eu não estar com tanta fome.
Eu estava com fome, isso é verdade, mas não era apenas isso que tinha em mente. Era uma oportunidade a mais para planejar o que pretendíamos fazer. É claro que era possível unir o útil ao agradável, sendo assim, caprichei na hora de me servir. Batata frita, feijoada, macarrão com queijo, carne assada, carne cozida e umas coisas que tinham uma boa aparência mas não sabia o certo o que eram. Beau, pelo contrário, se contentou apenas com uma saladinha, junto ao frango grelhado, por isso terminou muito rápido.
— Vocês conseguem sentir o gosto de alguma coisa? — ele fala gesticulando, enojado. Um pouco irônico, acabei de vê-lo praticamente esvaziar um frasco cheio de pimenta-do-reino em seu prato
— Assim você me ofende — eu digo de boca cheia após dar uma dentada na coxa de frango e acabo cuspindo um pouco de comida em seu rosto.
Scooby ameaça rir, mas é interrompido por uma carranca sinistra.
— Acho que vou esperar lá na recepção — Beau diz impaciente e sai da mesa de forma grosseira.
Eu o sigo com o olhar até perdê-lo de vista.
— Cara feia pra mim é fome — Scooby diz após constatar que Beau havia mesmo ido.
— Deve ser mesmo. Você viu o quanto ele comeu? — eu rio brevemente e me viro para Scooby. — Agora que consegui espantá-lo, vamos ao plano!
— Plano?
— Ainda não pensei em tudo, mas começa com você despejando essa comida em mim? — eu digo com seriedade.
— Desperdiçar comida? — ele pergunta enquando uma única lágrima escorre de seu rosto desolado.
— É por uma boa causa — eu passo a mão em seu ombro, oferecendo conforto.
Um pouco hesitante, ele executa a ação de olhos fechados. Logo estou todo lambuzado de comida.
Vamos até a recepção onde Beau se encontra sentando batendo o pé por impaciência.
— O que houve? — ele levanta espantado, mas logo se entrega ao deboche. — Pensei que a desastrada do grupo fosse a Daphne — ele dá uma risadinha maliciosa.
— É — rio para socializar, apesar de não ter gostado da referência. — Vamos subir para eu me ajeitar, voltamos o mais rápido o possível.
— Tudo bem — sinto o aborrecimento em sua voz.
Saio rumo ao elevador sem mesmo conferir a expressão de Beau, que não deveria ser das melhores. Quando piso no elevador e volto meu olhar a ele, enquanto as portas se fechavam, confirmo o que suspeitava.
Estava ansioso para conferir a página e ver o que ela dizia, mas teria que esperar até entrarmos no nosso quarto. Felizmente, a espera não durou muito, em pouco tempo estamos lá dentro. A primeira coisa que faço é girar a chave da porta e em seguida retiro rapidamente a página de meu bolso e a leio sem mais delongas.
Após o término da leitura, encaro a folha em minhas mãos, tentando processar o que havia acabado de ler. Scooby me olha com dúvida e, de forma não-verbal, me pergunta o que está escrito no papel.
— Parece que devemos encontrar uma lagoa, um rio ou coisa do tipo para fazer isso — eu digo a ele e vou direto ao notebook da Velma para pesquisar sobre isso.
— E você acha que podemos confiar nessa coisa?
— Temos que confiar nessa coisa — eu digo com angústia. — Que outra chance teríamos?
— Como vamos atrás disso sem Beau na nossa cola? — Ele me questiona.
— Fazendo o que fazemos de melhor! — Eu lanço um olhar para Scooby como se ele entendesse o que eu queria dizer.
— Comendo? — Bem, parece que ele não entendeu levando em conta sua cara de estranhamento.
— Digo — me corrijo. — A segunda coisa que fazemos de melhor, Scooby...ou deveria dizer Vovó? — Levanto minhas sombrancelhas, pela sua cara, noto que dessa vez captou a mensagem.
Nunca se sabe quando você precisará de um disfarce para se livrar de uma fria. Por isso, sempre trazemos ao menos um na mala. Ainda mais quando os planos do Fred, sempre envolvem a gente como isca.
A prática é tanta que, quase que num giro, estamos dentro de nossos trajes.
— Por que eu trouxe logo a da Vovó mesmo? — Scooby diz enquanto visualiza sua imagem no espelho: um chapéu extravagante sobre uma peruca grisalha, óculos fundo-de-garrafa, um vestido todo florido, meias, uma sandália amarela e um guarda-chuva rosa pendurado no braço direito.
— Vejamos — eu começo a enumerar os motivos. — A de enfermeira estava para lavar, a de bebê iria ocupar muito espaço na van e Daphne te mandou ficar longe das botas dela. Com isso, sobraram essa e a de vaca, mas nenhum de nós iria querer ser o traseiro, sem falar que não iria se camuflar bem na paisagem — eu falo enquanto arrumo a gravata-borboleta de meu traje, um terno chique, barba postiça, monóculo e cartola. — Agora vamos, rápido! — eu apanho alguns Biscoitos Scooby de um pacote jogado em minha cama, para viagem.
Com a pequena pesquisa que fiz, descobri uma lagoa a dez minutos daqui, obviamente Beau sentiria nossa falta, então tínhamos que nos certificar de estar longe quando ele enfim o fizesse.
Ao chegar na recepção, nosso visual atrai muitos olhares, procuro evitar contato visual com Beau, que permanece sentado no mesmo lugar de antes. Sua mente parece distante, seu rosto, raivoso. Eu, distraído, esbarro numa senhora de nariz empinado, que deveria estar fazendo sua reserva no balcão.
— Perdoe-me, Mi lady — eu digo já pegando sua mão para beijar, antes que ela pudesse soltar os cachorros em mim. — Sua exuberância me distraiu — ela pisca para mim galantemente, coloca alguma coisa no bolso de meu paletó e se vai calada.
Seguimos até o lado de fora do prédio com pressa e, por sorte, o táxi que havia chamado enquanto nos arrumávamos já nos esperava. Entramos no veículo e instruo o taxista para nos levar ao nosso local de destino. Assim que ele dá a partida e vejo que estamos a uma boa distância do hotel, eu vasculho meu bolso em busca de algo, que só agora verifico que se trata de um cartão de visita.
Estilista Selma Beuchamp, eu leio para mim mesmo e Scooby se aproxima para ver do que se trata.
— Hmm...Garanhão — ele não se contem e solta várias gargalhadas. Um arrepio de aversão toma conta do meu corpo só de imaginar certa cena.
A trajetória até o parque onde a lagoa fica é acompanhada por uma trilha sonora organizada por Scooby e suas risadas, que cessavam apenas o suficiente para ele encher os pulmões de ar. Tentei não ligar, mesmo sabendo que o motivo era eu. Quando chegamos, ele estava exausto e ofegante de tanto rir.
— Já acabou, Scooby? — Eu pergunto, já irritado.
— Já... — ele respira fundo, para de rir, mas a cara de deboche ainda não se foi totalmente.
Olho ao redor e vejo poucas pessoas no parque, talvez seja o tempo, que está nublado e ameaça chover. Um começo de tarde arruínado pelo tempo. De primeira, não avistamos lagoa alguma, isso porque ela é cercada por algumas árvores. Mas, seguindo em meio as árvores, logo damos de cara com ele.
— Tá na hora, companheiro — eu digo e nós nos ajoelhamos à margem da água. Eu pego a página para ter certeza de que estava fazendo tudo certo. — Aqui diz que devemos banhar nossos rostos com essa água — seguimos a instrução. Eu uso apenas uma mão, a outra segura a página que leio. — E por último devemos recitar essa frase...— eu indico para Scooby a tal frase na folha — seguido do nome daquele que invocaremos. Certo, Scooby? — eu pergunto e ele afirma com a cabeça.
— Pro parvo sapientum invocaverimus te, Princesa Willow das Fadas — nós repetimos várias vezes, as primeiras saíram numa enrolação que só, mas no final parecíamos no caminho certo.
Um tempo depois vimos uma luz intensa, emergindo do fundo da lagoa, quando atinge a superfície, finalmente vemos sua imagem e nos enchemos de esperança, nossos olhos reluzentes deixam isso bem evidente. Observamos aquela pequena criatura que emana luz e energia com seu sorriso de criança travessa por alguns segundos, mas somos interrompidos pela mesma.
— Salsicha, Scooby — ela chama nossa atenção. — Não temos muito tempo, a conexão pode ser perdida a qualquer momento. Digam o que está havendo e... — ela nos olha da cabeça aos pés e dá risada, ruborizada— por que estão vestidos assim?
— É uma longa história, mas o problema são nossos amigos — eu começo. — Estou certo de que foram enfeitiçados e colocados num sono profundo. Não sabemos o que fazer — eu digo com desespero. — Precisamos da sua ajuda, por favor — junto minhas mãos, implorando.
— Não posso acreditar — ela leva a mão à boca com surpresa. — Posso tentar ajudá-los, as regras dizem que posso presenteá-los com duas coisas de meu mundo — ela acena com a cabeça, como se questionasse se estávamos preparados e nós afirmamos.
Ela toca a água com a ponta do dedo indicador e velozmente um frasco emerge até a superfície com um brilho azulado magnífico. Eu estico meu braço para apanhá-lo, mas não o faço. Primeiro peço permissão à fada. Ela consente. Quando eu o pego, reparo que o brilho na verdade vem do conteúdo do frasco, um pequeno galho.
— Esse galho pertence a uma árvore muito poderosa e importante para o nosso povo, Laguinmuir, acolhedora dos desesperados — apesar do sorriso em seu pequeno rosto, mesmo assim parece receosa. — Só tem um problema, para ela fazer efeito contra esse tipo de magia a qual seus amigos foram submetidos, será necessária uma certa aproximação de seu inimigo.
— Perto quanto? — eu digo com um pouco de medo e apreensão
— Perto o bastante para conseguir um gota de seu sangue — ela responde angustiada. — Assim que vocês tiverem uma gota de sangue inimigo no interior do frasco, a única coisa que precisarão é uma gota de sangue aliado para o antídoto estar pronto — ela mostra seus dentes numa tentativa de aliviar a tensão criada.
Deve ter notado como sua frase ainda assim nos causou tremedeira e bater de dentes, pois logo falou:
— Eu sei que é uma tarefa difícil, mas eu sei que conseguem — ela tenta nos incentivar. — Vocês me salvaram e sei que farão o mesmo com seus amigos — sua expressão transmite empolgação e esperança.
Seus dedos voltam a tocar a água e outro frasco emerge à superfície, mas dessa vez carregando um líquido verde resplandecente.
— Essa poção deve auxiliá-los na coleta do sangue — ela aponta para o frasco que flutuava nas águas da lagoa e eu o pego. — Se você bebe a poção Joniper, é presenteado com a habilidade de ver as reais intenções das outras pessoas para com você. Se a intenção for má, você verá um má nova face surgir no peito do indivíduo, sua verdadeira face.
— Obrigado, princesa Willow — eu sorrio agradecido.
— Obrigado — Scooby agradece.
— Eu fico feliz em retribuí-los pela ajuda — ela diz com seriedade. — Lembrem-se que a melhor arma é e sempre será a amizade de vocês — as águas se elevam até Willow como serpentes ao som da flauta de seu encantador. Ela as analisa preocupada. — Sinto muito, rapazes, mas meu tempo acabou. Boa sorte, eu acredito em vocês — suas últimas palavras ecoam enquanto ela é envolta completamente pelas serpentes, formando um vórtice, que em seguida se desmancha.
— Ela sumiu — Scooby diz passando sua pata na água.
— Quem sumiu? — diz alguém pelas minhas costas.
Mesmo de costas, sei de quem se trata. Antes de me virar, dou um gole no frasco com o líquido verde. Imediatamente, tudo ao meu redor começar a se distorcer e um zunido perturba meus ouvidos. Tento não demostrar meu incômodo e só consigo pois a situação passa rapidamente. Quando enfim, meus sentidos parecem voltar completamente a normalidade e eu me viro, escondendo os frascos em meus bolsos traseiros, concluo que a poção cumpriu sua promessa.
— Beau — eu rio para disfarçar. — Você deve estar se perguntando por que estamos neste lugar e com estas roupas, mas é claro que existe uma explicação lógica para tudo isso.
— Então diga — ele fala com um tom intimidador.
— Bem — eu começo, mas um trovão me interrompe, volto minha atenção ao céus e alguns pingos de chuva caem sobre mim. — Olha só, parece que o tempo deu uma piorada. Scooby — eu olho para ele e estendo minha mão. — Se importa em me emprestar seu guarda-chuva? Não quero pegar um resfriado — faço um discreto sinal com a sobrancelha.
— Ah sim — ele sorri falsamente e me entrega o objeto.
Eu tento armá-lo, mas sei que esse guarda-chuva está enferrujado de mais para exercer a função. Faço uma grande força com as mãos, mas o objeto continua do jeito que sempre esteve.
— Bem que Fred disse que preciso frequentar a academia — eu sorrio para Beau, que nos encara com um ódio mal enrustido. — Se importa sem dar uma mãozinha aqui Beau?
Ele vem até mim, sem dizer uma palavra, quando está prestes a colocar a mão no guarda-chuva, eu bato com a extremidade em sua cara. Ele cambaleia para trás com a mão sobre a cara e cai sobre a grama molhada após tropeçar numa pedra. Quando retira a mão do rosto, os dois estão ensanguentados. Ele olha fixamente ao sangue em seus dedos.
— O que você fez, seu magrelo maldito? — ele pragueja.
Após as ofensas, ele levanta num salto direto em cima de mim, como uma onça atacando sua presa. Suas mãos apertam minha garganta, impedindo-me de respirar. Scooby tenta impedí-lo mordendo seu braço, mas Beau o afasta com uma cotovelada no focinho. Os ganidos do meu amigo partem meu coração. Depois Scooby decide dar-lhe uma mordida na panturrilha que o faz berrar de dor. Ele tenta se livrar, chutando Scooby, mas felizmente ele esquiva de todos os golpes. Beau volta sua atenção a mim, que já estou ficando sem qualquer ar em meus pulmões. Quando começo a achar que não tem mais volta, ele solta meu pescoço e atinge o meu rosto com um soco.
— Posso não te matar, mas vou te machucar bastante — ele está quase espumando pela boca.
Scooby tenta atacar seu braço novamente, mas Beau o impede com outra cotovelada e eu me odeio por não conseguir me mover e defender meu melhor amigo. Sou atingidos por múltiplos socos, o que me causa tontura. Muita coisa passa despercebida diante de mim. Quando consigo recuperar o raciocínio, Beau já não está mais em cima de mim e sim, desacordado ao meu lado. Scooby está de pé a minha frente, trêmulo, ofegante, com uma grande pedra em sua mão. Ele a larga no chão e me dá sua pata, para me ajudar a levantar.
— Amigão — eu o abraço. — Eu vi. Eu vi sua verdadeira face. Era diabólica, tinha dentes enormes e olhos amarelos reluzentes, como o de um felino na noite— eu sinto um arrepio só de lembrar.
— Conseguimos o sangue — Scooby diz observando Beau ali jogado.
— Acho que sim — eu sorrio.
Eu me agacho perto do corpo e coleto a gota de sangue necessária de seu rosto. A respiração dele ainda é perceptível. Após isso, recolho a segunda gota necessária, uma minha, direto de minha testa. Quando a última gota cai sobre o galho, o mesmo se liquidifica, se tornando então uma poção violeta. O brilho envolve nosso olhar por alguns segundos, mas logo outra coisa nos chama atenção. Um flash de luz e puf, nenhum sinal de Beau ao nosso redor.
— Pra onde ele foi? — Scooby questiona, abismado com a situação.
— Temos que nos apressar — eu sinto um calafrio. — Ele pode ter ido atrás da turma.
Scooby salta de sua fantasia e não vejo mais a vovó, só o bom e velho Scooby-Doo. Não tenho a mesma facilidade, uma vez que não ando nu o dia todo, porém me livro dos acessórios bizarros enquanto corremos pela rua. Em pouco tempo, sou apenas um Salsicha de terno chique, sem barba, monóculo ou cartola, seguindo a direção indicada pelo GPS do meu celular. Nenhum táxi é avistado, por isso seguimos correndo.
Eu ligo para o hospital enquanto percorremos o caminho até ele. Alertando sobre Beau.
—...ele vai dizer que é da polícia, mas ele não é confiável, por favor — estou ofegante demais. — Não deixe ele entrar no quarto de meus amigos. Chame a polícia.
Poderia ser inútil, mas eu tinha que tentar impedí-lo.
Fugir de tantos monstros nos tornou ótimos corredores. Nunca pensei que agradeceria por isso. Quando me dou conta, estamos na porta do hospital. Na verdade, conseguimos um táxi.
Um enfermeiro vem pra cima de mim. Tinha esquecido dos ferimentos que Beau me proporcionou, só agora sinto a dor que eles me causam. Devia ser por isso que o taxista e a maioria das poesias na rua me olhavam atravessado. Apesar disso, recuso o atendimento e vou direto para os quartos, após comunicar rapidamente a recepção. Eles estão no mesmo quarto, os leitos divididos por cortinas.
Eu chego perto de Velma, que está na primeira cama. Quando toco seu rosto, sua bochecha trinca como porcelana, então ela começa a se despedaçar até se tornar poeira. Corro até Daphne e tenho a mesma visão perturbadora, e assim acontece com Fred também. Meus olhos já estão cheios de lágrimas. Me pergunto se chegamos tarde, se fui tolo ao pensar que tínhamos alguma chance.
— Scooby — eu me viro para trás a sua procura, mas não o encontro. — Cadê você, meu filho? — meu olhar percorre todo o quarto.
A porta se abre e a doutora adentra o local.
— Doutora — eu digo com a voz trêmula. — Onde estão meus amigos?
— Eu cuidei deles — ela sorri de forma maligna e vem vagarosamente até mim. — E agora cuidarei de você...— ela revira os olhos — já que ela não cuidou. — Quanto mais ela se aproxima, mais eu me afasto. — Confesso que não estou surpresa, mas de certa forma desapontada.
— Sarah? — eu digo descrente, apesar de ter sido um dos primeiros a levantar a hipótese.
— Você é mais esperto do que eu pensava — já estou na parede, não há mais como recuar, e mesmo se tivesse, não teria chance contra sua magia. — Vejo que ela o machucou — ela acaricia meu rosto. Fico sem palavras, imóvel e tremendo. — Boa noite, péssimos sonhos — ela beija minha testa.
Tudo ao meu redor desmorona, dando lugar ao breu.


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