Exílio Soturno escrita por Kirialini


Capítulo 4
Arquivos em Claro




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27 de Outubro de 2014.

Ponto de Vista de Salsicha:

A poeira que toma conta desses livros me causa espirros incontroláveis. Velma, muito pelo contrário, está com os olhos brilhando diante do acervo da biblioteca da Universidade de Boston, enquanto sussurra para si mesma alguns nomes estrangeiros que não conheço ou sequer consigo pronunciar. Fred e Daphne já estão há um tempo escorados no balcão, conversando com a bibliotecária e tentando conseguir alguma informação útil na resolução do caso.

— Salsicha — Scooby diz para mim. Ele parece um peixe fora d'água nessa biblioteca e eu também, mas sinto que não é isso que o incomoda. — Podemos dar o fora daqui? — só agora nota suas pernas chacoalhando e sua voz trêmula.

— Não precisa ter medo, Scooby — eu acaricio sua cabeça. — É só uma biblioteca? O que pode ter de tão ruim além de livros?

— Livros de...m-magia n-negra? — seus pelos se arrepiam.

— E que tal esse? — eu tento acalmá-lo, disfarçando o pouco de medo em minha voz, e retiro um livro da estante. — Um livro de receitas ilustrado — os olhos de Scooby se igualam aos de Velma e me sinto melhor vendo-o mais confortável.

Daphne e Fred se afastam do balcão e vêm em nossa direção e Velma, que estava camuflada em meio aos livros, faz o mesmo.

— Conseguimos uma lista de todos os livros emprestados às garotas do orfanato nas últimas semanas - Fred diz, nos mostrando a tal lista em suas mãos. — Infelizmente, teremos que analisar livro por livro.

— E em que um livro poderá nos ajudar a achar meninas desaparecidas? — eu pergunto, vendo sentido algum nessa tarefa.

— É a melhor... — Daphne se corrige. — É a única pista que temos.

— Isso até retornarmos ao orfanato e falar com a senhorita Prestcot — Velma finalmente fala algo. — Tenho certeza que ela nos dará alguma direção.

— Acho que não precisamos, olhem — Fred aponta discretamente com a cabeça para a porta da biblioteca.

Uma mulher engomadinha acaba de entrar, acompanhada de algumas meninas uniformizadas. Ela fala com as garotas algo sobre seguir o de sempre e começa enumerar as instruções. Esperamos ela terminar de falar e caminhar até nós, e a impedimos de seguir em frente no corredor.

— Senhorita Jacquelyn Prestcot? — Velma toca em seu ombro e ela confirma sua identidade. - Somos detetives e estamos investigando os desaparecimentos.

— Muriel me falou de sua visita. Fico feliz por quererem nos ajudar — ela sorri.

— Podemos fazer algumas perguntas sobre as meninas? — Daphne pergunta.

Ela desvia seu olhar para as garotas do orfanato, como se estivesse averiguando se aquele era um bom momento, e então vira-se para responder Daphne.

— Vamos sentar — ela aponta para uma mesa que está logo atrás de nós.

Ponto de Vista de Velma:

Jacquelyn Pretscot aparenta ser uma mulher de um pouco mais de 30 anos, sua seriedade é acentuada pelo que veste: um vestido preto, recatado e elegante. O pingente de seu colar me chama atenção, é uma coruja, símbolo de Athena, deusa da sabedoria e da estratégia. A ave dourada não repousa em seu peito, está constantemente sendo alisada por seus dedos, uma espécie de compulsão. Procuro não manter meu foco nisso enquanto faço as perguntas.

— Diretora Muriel nos contou que faz pouco tempo que você trabalho no orfanato — Eu começo. — Imagino como deve ter sido difícil enfrentar uma coisa dessas logo de cara.

— Não me diga — ela continua com a mão no pingente. — Era a primeira noite que eu passaria lá, a Sra. Endollyn teve que ficar fora por uns dias, então me deixou responsável — seu olhar é vago. — Foi muito generoso de sua parte ter confiado a instituição na mão de uma novata.

— Um pouco insensato, não acha? — Fred está desconfiado. — Afinal, ela pareceu se importar bastante com as garotas para deixá-las com alguém pouco conhecido.

— Oh — ela tenta explicar. — Talvez tenha me expressado mal. O orfanato não ficou apenas em minhas mãos, outras pessoas de confiança, selecionadas pela diretora, estavam ao meu lado.

— E quando notaram que Alice e Margaret haviam desaparecido? — Daphne pergunta.

— Depois de verificar se tudo estava conforme, era a hora de eu finalmente me deitar — ela suspira. — Eu não sabia o quão aterrorizante seria aquela noite.

— O que aconteceu? — Salsicha engole seco.

— Eu era uma delas — sinto a fragilidade em seu olhar. — Eu estava na situação dessas crianças, me sentia perdida, abandonada, tudo o que eu queria era alguém que se preocupasse comigo. Eu estava num longo corredor e sangue pingava do teto, então a avistei e corri até ela — ela dá uma pausa. — Uma figura feita de fumaça negra. Naquele momento, senti que meu dever era segui-la para onde quer que fosse. Eu estendi minhas mãos a ela e quando senti seu toque — ela hesita um pouco — minha mão se desintegrou em cinzas, desencadeado a mesma reação pelo restante de meu corpo.

E, outra vez, sou lembrada do pesadelo que continuo tendo. Quero parar de ouvir aquela história, mas não posso fazer isso, precisamos de alguma pista.

— E o que houve depois? — tento deixar meus sentimentos não transparecerem.

— Eu acordei. Corri até o dormitório e haviam duas camas vazias e... — ela passa a mão na testa — o resto da história vocês já sabem. Eu deveria ter me esforçado, sabe — ela fala de forma histérica. — Deveria ter insistido em conversar com elas, procurar saber o que estavam sentindo, saber por que estavam tão estranhas.

— Jacquelyn — Daphne chacoalha a mão esquerda dela. — Que história é essa?

— Dias antes dessa noite, o comportamento delas mudou. Tenho certeza que foi por causa do livro, isso só ficou claro para mim depois do ocorrido. Elas ficaram obcecadas por ele, estavam cada vez mais fechadas e indiferentes, não dormiam, não comiam — ela cobre seu rosto com as mãos. — Pensei que fosse mais uma daquelas crises de adolescentes.

— O livro é um dessa lista? — Fred entrega a folha a ela.

— Esse — ela aponta com o dedo, após correr os olhos pelo papel. — "Maneiras e Princípios Fundamentais por Ashcan Raft Rover".

— Não foi devolvido — Fred constata após ver o nome da obra na lista.

— Eu sei, recebemos várias ligações daqui solicitando a devolução do livro. — ela olha para a bibliotecária. — Procurei em cada canto daquele lugar, mas não há sinal dele.

— Precisamos encontrá-lo — Fred diz a ela. — Pode ser a chave para o mistério, por favor, nos avise se achá-lo.

— Por favor — ela segura as mãos dele, as aperta com força e me olha nos olhos. — Nos avise se achá-las, garçon — em seguida, ela cobre a boca com a mão, como se repreendesse a si mesma, por estar quase chorando imagino eu. Ela direciona seu olhar para as garotas que trouxe consigo. — Acabamos por hoje, essas garotas precisam de mim, do meu apoio. Elas, mais do que ninguém, sentiram a falta de Margaret e Alice, são como suas irmãs mais velhas.

Não insistimos para que continuasse a conversa devido ao seu estado, o pouco que falamos foi o suficiente para deixá-la visivelmente abalada. Nosso adeus torna-se a palavra chave para ela se recompor e voltar as garotas do orfanato e para retornarmos à Máquina de Mistério e ficamos ali por um tempo, com ela estacionada.

— Aquela mulher pirou na batatinha — Salsicha diz com os olhos arregalados.

— Pelo fato de ela achar que todo o mistério se resume a um livro? — Fred pergunta.

— Cedo demais para descartar essa hipótese, você sabe — eu advirto.

— Quê? — Salsicha está confuso. — Estou falando de ela achar que Fred é um garçom, o que não seria uma má ideia né, Scooby?

— Garçons têm comida — Scooby lambe os beiços.

— Oh, Salsicha - Daphne vira-se para ele. — Garçon significa "garoto" em francês — ela ri, mas é interrompida por uma chamada no seu celular. — Alô?

Ponto de Vista de Daphne:

Eu não sei como dizer isso a ela, não há qualquer forma de deixar isso mais suave. O que pode ser pior do que perder alguém que você ama? Eu não saberia dizer. Mas a pequena amostra que eu tive todas as noites, o sonho em que Fred queima por mim, foi intensa o bastante para saber que a dor é insuportável. E agora estou em frente a Mirabelle, uma mulher que, por mais que tenha sido rude em nosso primeiro encontro, tem uma lado sensível, tem um lado mãe. Qual seria a pior coisa que uma mãe poderia escutar?

— Senhorita Mirabelle - eu começo e pela minha expressão, ela já deve imaginar que o que tenho a dizer não é bom. — Quando nos pediu para que investigássemos o paradeiro de sua filha, liguei imediatamente para uma amiga nossa que mora em Salem, Arlene Wilcox.

— O que houve? — seu tom já se encontra alterado.

— Quero que saiba que não será por causa disso que pararemos de procurá-la - eu tento preparar o terreno.

— DIGA-ME! - ela está gritando.

— Sua filha — estou tentando não perder a postura. — Ela sequer chegou em Salem.

— Não pode ser possível — ela balança a cabeça repetidamente para um lado e para o outro em negação.

— Mas não se desespere — eu tento acalmá-la. — Isso aumenta as chances de ela ainda estar na cidade, o que facilita nossa investigação.

— E o fato de que aumenta as chances de ela estar em perigo? — eu não respondo nada, minhas desculpas esfarrapadas de nada adiantariam. — Se retire imediatamente, Srta. Blake — ela aponta à porta. — Por favor.

Eu não penso duas vezes e saio de seu escritório. Essa é umas das únicas situações em que não posso culpá-la por sua arrogância, por isso, não discuto. Não sei o que estava pensando em tentar lidar com isso sozinha, com certeza foi um desastre.

E poderia não ser?, penso.

A turma foi bem compreensiva quando pedi para falar a sós com Mirabelle. Apenas se entreolharam e não hesitaram em ficar esperando no furgão. Quando saio do edifício, encontro eles olhando pela janela, como se estivessem esperando para ver como me saí. Eles até tentam disfarçar quando veem que os notei, mas não têm sucesso. Devo estar acabada, sinto meus ombros e olhos pesados como se uma âncora os puxasse com toda a força em direção ao show.

— Preciso de um lanche — falo quando entro na van. Salsicha e Scooby apoiam minha causa. — E precisamos conversar — eu me aproximo dos ouvidos de Velma e cochicho.

Conseguimos voltar a tempo ao hotel, era hora do almoço e o buffet estava servido. Eu não estaria com tanta fome, se não estivesse nervosa como nos últimos dias. Ignoro totalmente a mesa dos frutos do mar, porque sou alérgica, mas em compensação, as outras mesas não são perdoadas. É nessas horas que eu sei o quanto Salsicha e Scooby são felizes.

— Agora eu preciso de um descanso — eu digo a turma, depois de comer a última coxa de galinha. — Até mais tarde — eu olho de forma intimidadora para Velma.

— Acho que vou também — felizmente ela entendeu meu recado. — Se eu achar qualquer coisa sobre o livro, aviso na hora — ela se retira da mesa junto comigo.

Chegamos no quarto e logo sento na minha cama e ela se posiciona sentada a minha frente. Não posso mais esperar um segundo sequer.

— É o seguinte — eu começo um pouco nervosa. — Sabe o sonho que o Fred teve? Eu também tive um tão assustador quanto.

Eu descrevo a cena e sinto arrepios em todo meu corpo a cada detalhe. Vejo que Velma não fica para trás e está tremendo discretamente.

— Velma — eu digo segurando sua mão. — Você não teve um sonho desses também, teve? — sua expressão facial me responde.

Quando achava que o meu sonho já bastava para me deixar atemorizada ao extremo, descubro que estava errada. Acho que essa vida atrás de monstros, por mais que em sua grande maioria falsos, têm nos afetado sem termos notado. Quero dizer, nunca temos um verdadeiro descanso.

— Quando acordei, tive medo que fosse real — algumas lágrimas correm pelo rosto de Velma, o que me deixa no mesmo estado. Poucas coisas conseguem fazer isso com ela. — Desculpe por não ter contado antes — eu lhe dou um abraço a fim de lhe reconfortar.

— Devemos abrir o jogo com os rapazes — eu sugiro e continuo segurando sua mão. — Só assim podemos seguir focados no mistério.

— Você tem razão — ela enxuga seu rosto e eu, o meu.

— Há outra coisa — eu digo para ela, meio envergonhada. — É sobre Fred e eu, mas prefiro dizer a todos juntos.

— Só não faça parecer que é algo chocante — ela me diz e nós duas rimos.

Ponto de Vista de Salsicha:

Tudo bem. O lance da Daphne e do Fred nunca chegou a ser um mistério, mas em contrapartida, os sonhos me deixam trêmulo e batendo os dentes. Scooby está na mesma situação que eu, ou até mesmo pior. Por mais que sejam situações diferentes, posso ver ligações, como o carinha sinistro e debochado que conversa com eles. O que não faz sentido é as situações em que foram colocados: Fred escrevendo livros, Daphne queimada por bruxaria e Velma sendo pintada? Certo, bruxas têm livros, mas o que a pintura tem...

— Bruxa de Oakhaven — Scooby repete várias vezes, seguindo minha linha de pensamento.

— Não é óbvio, pessoal? — eu digo a eles. — Scooby está certo, Sarah está por trás de tudo isso - começo a enumerar as evidências. — A fogueira que havia no sonho da Daphne, Fred estava escrevendo um livro e Velma estava sendo pintada. Tudo remete a ela — Scooby balança a cabeça em concordância.

— Olha, Salsicha — Fred começa a descontruir minha teoria, que novidade! — Confesso que faz um pouco de sentido, mas Sarah foi aprisionada novamente em seu livro junto com Ben, e no fim, esse livro acabou queimado, lembra? Não há como ela estar por trás disso.

— Eu discordo, Fred — Velma o interrompe. Finalmente alguém nos apoia. — Salsicha têm toda a razão, bem, não da forma que ele pensa. Lembram quando Daphne desistiu de levar Beau ao seu programa após o "acidente" na ilha? Ela queria que esquecêssemos e superássemos tudo aquilo. Depois disso, prometemos nunca mais tocar nesse assunto. Porém, ocorreram os eventos de Oakhaven logo em seguida, e fizemos o mesmo com eles, o deixamos na caixa do esquecimento.

— Não estou entendo, Velma — estou incerto do que ela quer dizer.

— A questão é que, apesar do combinado, todos nós andamos remoendo essas lembranças desde que aconteceram. O fato de que Oakhaven é a poucos minutos de Boston, despertou o medo em nosso subconsciente, medo de que tudo aconteça outra vez, e provocou os sonhos que tivemos. E, como se não bastasse, quando foi a última vez que tivemos algum descanso físico, mental ou espiritual por completo?

— Você deve estar certa, Velma — eu digo a ela passando a mão em seu ombro, os outros consentem, menos Scooby, que me olha com estranheza. — Agora preciso de um lanchinho pós-sobremesa. Você vem, Scooby? — ele não pensa duas vezes. O pessoal, apesar das caras de espanto, não falam nada.

Enquanto percorremos o corredor, converso com Scooby:

— Se isso tudo fosse por medo, por que não tivemos sonhos tenebrosos como os do resto da turma? — eu pergunto. — E dessa vez, apesar de nunca ter sido bom em geografia, eu sabia que estávamos perto de Oakhaven.

— O que faremos, Salsicha?

— Não sei, Scoob — eu passo a mão em sua cabeça. — Como se detém magia?

Antes que ele possa sugerir qualquer coisa, esbarramos sem querer em alguém. Olho para o rosto do homem e o reconheço, Velma o citou em seu discurso há pouco tempo atrás, era Beau Neville, o jardinei... digo, detetive.


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