Sete coisas para se fazer nos últimos sete dias escrita por River Herondale


Capítulo 5
Sete chances de se encontrar em outras pessoas


Notas iniciais do capítulo

Obviamente Japão estaria aqui



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TÓQUIO - JAPÃO

Acordo e vou trabalhar, como normalmente faço. Pego o trem, tomo um café e faço meu trabalho metodicamente. É assim com todo mundo. É assim, e não mudará. Japão é uma potência, e é graças ao trabalho árduo que fazemos com muita disciplina.

Minha mãe costumava me cobrar uma namorada uns anos atrás. Mas agora ela parou, o que é um alívio. Ela deve ter percebido que ter trinta anos e não ter uma namorada é normal na onde moramos. Ou então ela apenas desistiu.

Mas isso não significa que eu nunca tenha desejado namorar, ou algo do tipo. Obviamente eu conhecia algumas garotas em uns restaurantes, mas namorar firme mesmo não. Mas hoje é sexta-feira, dia de ir para alguma festa e conhecer pessoas, e quem sabe, uma garota.

Quando volto para casa, ligo a televisão para ter uma temperatura ambiente enquanto procuro algo para comer na geladeira. Passo a mão no meu cabelo, e noto que preciso cortar urgentemente. Então ouço na televisão falar coisas estranhas, no qual não compreendo. Pego o prato da minha comida e sento na frente da TV.

É então que começo a entender. Mudo de canal, e tudo está sincronizado a mesma notícia. Fico chocado em notar que o mundo está acabando.

Sete dias para viver, sete dias para fazer o que sempre quisemos. Não parece realidade, é chocante notar como tudo que eu conheço pode acabar tão rápido e repentinamente.

Uma hora depois meu amigo Toshiro me liga, e eu atendo o telefone. Vejo que minha mão está trêmula. Ouço em sua voz que ele também está apavorado.

– Cara, eu nunca vou ver o fim do One Piece! Nunca! – Toshiro dizia nervoso.

– E você está preocupado com isso?

– Hiroyuki, eu sei que tenho trinta anos, mas One Piece é One Piece. Quer sair para beber?

– Beber? Mas tem algum bar aberto?

– Aberto ou não, quem se importa? Cara, a gente pode simplesmente entrar.

– Não sei se é correto.

– Não é. Mas temos escolha?

Me apresso em me arrumar. Concordamos em nos ver em meia hora. Quando chego na rua do bar, ouço Toshiro gritar.

– Hiro! Aqui! !

– Toshi, tudo bem? – pergunto enquanto o cumprimento.

– Bem do tipo “Oh, o mundo está acabando!”, mas bem. Na verdade já estou meio bêbado.

Estava bem cheio. Estranhei, mas então cheguei à conclusão que várias pessoas também gostariam de se embebedar para esquecer a realidade. Nos sentamos nas cadeiras na beira do balcão com o cardápio na mão. Toshiro pediu um drink, e eu pedi o mesmo.

Uma garota de cabelos longos e castanhos se sentou ao meu lado com outras duas amigas. Eu arrumei minha postura apressadamente. As garotas não costumavam ficar tão próximas de estranhos como ela estava. Ela tinha um cheiro de flores no qual nunca havia sentido antes.

Quando ela se virou, vi que não era japonesa. Tinha traços ocidentais, e era bem bonita. Engoli em seco ao notar como ela tinha mais curvas que suas duas amigas japonesas não tinham, e como ela gargalhava alto, sem nem colocar a mão na frente da boca. Ela não parecia ter vergonha de nada.

Quando fui pegar meu copo da mesinha em minha frente, ela esbarrou em mim. Ela pediu desculpa com um sotaque que apenas provava que era estrangeira.

– Oi. – ela disse, meio tímida.

– Oi. – respondi. Ela tomou um gole de seu drink e se aproximou mais ainda de mim.

– Qual seu nome?

– Hiroyuki. Mas me chamam de Hiro. – respondi, meio apreensivo. Normalmente eu que tenho que puxar o assunto.

– Então prazer te conhecer, Hiroyuki, mas que te chamam de Hiro! Posso te chamar de Yuki?

– Yuki?

– É. Todo mundo te chama de Hiro, então quero te chamar de Yuki. Gosto de me sentir exclusiva.

Fiz uma careta bem humorada. Ela nem me conhece e quer se sentir “exclusiva”? Definitivamente não é como as japonesas.

– Ok. E como você se chama?

– Olívia. – ela respondeu. – Sou da Argentina.

Ah, pensei. Isso explica tudo.

– Mas caso esteja se perguntando, eu moro em Tóquio faz três anos. Sim, eu queria voltar para Buenos Aires, e não, não vou voltar. Passar meus últimos dias na cidade que me abraçou faz sentido.

– Você trabalha com que?

– Quer dizer trabalhava, né? Não importa. Cara, eu estou muito bêbada, me desculpe. – e então ela começou a rir loucamente.

Fiquei meio assustado, mas não me afastei

– Yuki?

– O quê?

– Você não tem dona, né?

Dei risada com ela dizer “dona”.

– Não tenho dona.

– Imaginei. Parece que todos os japoneses não conseguem mais namorar! Qual o problema de vocês? Nunca, NUNCA um cara chega em mim. Eu sempre tenho que agir como uma vadia e me atirar neles, como estou fazendo agora.

Ela estava agindo de modo tão direto que fiquei levemente espantado.

– Você sempre faz isso, ou é por causa do fim do mundo?

– Sempre. Na verdade eu sempre vivi minha vida como se cada dia fosse o último, então não, não é por causa do fim do mundo.

O telefone dela começou a tocar, e ela atendeu apressadamente, dançando no ritmo do toque da música.

– Oi! O quê? Sério? Claro, claro que vou! Amanhã que horas? Perfeito. Posso te ligar mais tarde? Estou em um bar aqui. Ok, tchau.

– Yuki, o que você acha de ter a noite da sua vida amanhã?

– Como assim? – não estava entendo nada, e o fato de ela me chamar apenas de Yuki não facilitava.

– Minha amiga me convidou para uma orgia. Vai ser em uma casa de spa, e já que elas estão abandonadas vamos aproveitar. Elas me pediram para convidar mais alguns amigos, e então? Você quer ir?

Tudo soava estranho. Mal nos conhecíamos, mas o convite era tentador. Eu já estava aceitando o fato de que seria impossível arrumar uma namorada até o fim do mundo, mas se eu fosse nesse lugar pelo menos teria a chance de aproveitar meus últimos segundos de um modo bom.

– Então? Você topa?

– Uhum. Quer dizer, sim. Eu vou.

Olívia sorriu, e então esticou a mão para eu entregar o celular para ela, assim podendo marcar seu número no meu telefone.

– Japoneses são tão safados. – ela tinha um sorriso malicioso no rosto enquanto digitava. – Sei que já tirou minha roupa mentalmente. Duas vezes.

Ela devolveu o celular para mim, e entregou o seu.

– Marque seu número aí.

Eu marquei, e então ela se levantou, terminando seu drink em um só gole.

– Nos vemos amanhã então? À meia noite no Spa Sakura, você sabe qual estou me referindo.

– Spa Sakura? É tão chique. – comentei meio que inconscientemente. Só os mais ricos da cidade visitavam esse spa.

– Vamos morrer. Não é como se não merecêssemos o melhor.

E ela saiu do bar com as duas amigas atrás. Parecia um tsunami, daqueles que surgem do nada e vão embora do nada, mas deixando danos irreparáveis. Os danos físicos podem até ser reparados, mas os internos? Não, nunca são. É modificado para sempre.

Quinze minutos depois já está insuportável ficar naquele bar. Todas as pessoas do lugar ficaram imediatamente desinteressantes. Digo ao Toshiro que estou de saída. Ele segura meu braço, me encarando.

– Por quê? Não está se divertindo?

Toshiro está com uma garota no seu colo. Ela dá risadinha com a mão no rosto, e então mexe no cabelo liso e preto dele.

– Você claramente está se divertindo mais que eu. Não quero atrapalhar.

– Hiro, tem certeza?

Tento dar um sorriso a ele.

– Tenho. Eu te ligo amanhã.

Vou embora de trem, e no fundo do trem tem um casal se beijando selvagemente, me deixando constrangido com os sons dos beijos. Tenho vontade de gritar para eles irem para algum quarto, mas não quero passar de chato. Eles deviam ter feito aquela lista de sete coisas para o fim do mundo, e um dos tópicos devia ser beijar em lugares públicos. Bem interessante.

Abro a porta do meu apartamento, e deito exausto na minha cama. Minha mente estava em um turbilhão de pensamentos. Decido pegar meu celular para ver se Olívia mandara alguma mensagem para mim.

Nada.

Mas eu esperaria até amanhã. Estava disposto a isso.

***

Estro no spa, e ouço muitas risadas da sala onde tem uma grande banheira com detalhes em ouro na borda. A banheira era famosa do Spa Sakura, e várias vezes era mostrada na TV. Vejo que há pelo menos quinze pessoas nuas com champanhes na mão, brindando e rindo. A maioria são japoneses, mas umas seis pessoas dali são estrangeiras.

Vejo que Olívia está na banheira em tamanho de piscina bebendo champanhe. Parece entediada e desinteressada. Ela também está nua, mas não vejo direito pois a água distorce seu corpo. Engulo em seco por encarar tanto seu corpo. Decido ir até ela, mostrar que vim.

– Oi Olívia! Fiquei esperando que fosse me ligar, mas como não ligou eu tentei ligar para você. Estranhamente o número não existia, e fiquei com medo de você ter passado o número errado sem querer. Enfim, como está?

Ela olha para mim com o mesmo desinteresse que vestia em seu rosto.

– Te conheço?

Uma pontada atingiu meu coração. Como assim ‘te conheço’?

– Olívia, você me convidou para isso. Eu vim aqui nessa festa porque você me convidou.

– Por que está me chamando de Olívia? Eu não sou nenhuma Olívia.

Claro que era. Eu reconheceria a Olívia. Ela esteve em minha mente o dia todo.

– Pessoal, vamos começar nossa festa! Imaginem que somos todos romanos, que o Império Romano não caiu, e que orgias são nosso principal passatempo. Divirtam-se!

As pessoas ao meu redor começam a se beijar. Fico assustado quando duas garotas se beijando começam a me beijar, uma na boca e outra no pescoço. Elas arrancam minha roupa, e quando vejo estou como todos. Eu ficaria horrorizado, mas não parecia tão horrível assim. Estava me divertido, e estávamos todos iguais, pele sobre pele.

Perco Olívia da minha visão, e sou arrastado entre as pessoas embriagadas de champanhe e drogas. Não há pudor, não há sentimentos. Continuo fazendo o que devo fazer até não aguentar mais.

Estou na piscina bebendo o champanhe e rindo com algumas pessoas. Noto que em nenhum outro momento vi Olívia e sei que não deveria me importar. Sei, mas não consigo. Imediatamente estou saindo da sala da banheira, procurando-a nas outras salas do Spa.

Encontro-a enrolada em uma toalha, bebendo champanhe direto de uma garrafa e com os olhos inchados. Ela me encara, e então resmunga, se levantando.

– O que está fazendo aqui?

Percebo que estou pelado, mas não tem nada com que me cobrir. Ela joga a toalha do banco ao lado para mim, qual eu enrolo na minha cintura.

– Não te vi na Orgia. Achei estranho.

– Eu nem deveria ter vindo, mas minha amiga me obrigou.

– Sua amiga?

– É. Eu odeio essas coisas.

– Odeia? – não parecia odiar. No bar estava tão atirada e segura de si que odiar essas coisas não fazia sentido.

– Odeio. Por que duvida? Nem me conhece.

– Eu só vim porque você me convidou. Olívia, você tem que se lembrar! Foi ontem, e me disse ser da Argentina.

– Você só pode ser louco! Não sou da Argentina e muito menos me chamo Olívia.

Estava eu mesmo louco? Não, ela era Olívia.

– Me chamo Petra, e sou da Grécia. Nunca estive na Argentina antes.

Ela falava com muita certeza, mas como poderia? Era a mesma garota do bar.

– Eu quero sair daqui. Você me tira daqui?

Olívia não parecia ser do tipo que faria esse pedido. Era tão confiante, e esta aqui, Petra, esta soava assustada com tudo.

– Tiro, claro. – falei sem pensar direito. – Vou só me vestir.

Saio correndo e pego minhas roupas espalhadas pelo chão, vestindo-me apressadamente. Duas meninas gritam:

– Hiro, já vai? Não tínhamos combinado de passar toda a madrugada aqui?

– Preciso mesmo ir. Obrigado mesmo assim.

Encontro Olívia – ou seria Petra? – vestida e me esperando.

– Vamos aonde?

– Nem sei seu nome ainda. Como se chama?

Como não sabe meu nome? Mesmo assim, respondo impaciente.

– Hiroyuki.

Andamos pelas ruas, que estavam estranhamente movimentadas. Ela estava quieta ao meu lado. Tentei puxar assunto, ver onde daria essa história de Petra.

– Então... Petra. Por que está em Tóquio?

– Nasci e morei na Grécia a vida toda. Mas vim para cá encontrar um namorado que conheci na internet, mas ele me abandonou dois meses depois. Uma amiga que conheci aqui tentou me arrastar para a orgia então, dizendo que eu poderia esquecer ele então. Mas não esqueci. Ele continua me assombrando.

Ou você é uma ótima mentirosa, ou Olívia era idêntica a você, pensei. Passávamos por uma ponte, o rio corria abaixo de nós, sem parar. Como se o fim do mundo não assustasse eles.

– Faltam apenas cinco dias para o mundo acabar, e nunca mais verei ele! Eu aprendi japonês por ele, eu vim sem nada da Grécia por ele! Ah, Yuki, o que eu faço?

– Yuki?

– Me desculpe, foi sem querer. Hiroyuki.

– Olívia me chamou de Yuki.

– Deve ser apenas uma coincidência. Não é como se só essa tal de Olívia te chamasse de Yuki, né?

– Na verdade sim, era só ela. As pessoas costumam me chamar de Hiro.

Petra engoliu em seco.

– Olha, Olívia é como você. Mesma altura, mesmo corte de cabelo, mesma voz! Pare de me enganar, e diga quem realmente é!

Ela começou a chorar e se virou, indo em direção à beira da ponte.

– Ei, o que está fazendo?

– Vou me matar! Afinal, não vamos todos morrer mesmo? Esse meu coração partido está doendo demais para suportar!

Agarro-a pela cintura o mais rápido possível, arrastando-a do perigo da morte. Ela me olha chorando e descontrolada.

– O que pensa que está fazendo? Deixe-me morrer! É minha escolha!

– Ninguém vai morrer. Não agora. – digo, e ela me abraça fortemente, como se segurasse em mim como o único ponto fixo do mundo.

– Me leve para a casa, Yuki. Estou com medo.

Ela me diz o caminho, e entro no trem com ela. Ela dorme no meu ombro durante o percurso, e então chegamos no ponto em que ela me diz ser para parar. Acordo-a, e ela resmunga.

– O que aconteceu?

– Chegamos. Onde fica sua casa?

Descemos do trem, e ela me leva entre as ruas até a quitinete em que mora. Ela abre a porta e me diz:

– Obrigada. Por me acompanhar e ter me salvo.

– Não foi nada.

– Foi sim. Foi tudo. Me salvou de mim mesma. Obrigada.

Ela me abraça mais uma vez, e diz:

– Posso te ver amanhã?

– Sim. Podemos sim.

– Quer marcar meu número?

Tiro o celular do bolso e ela dita o número.

– Engraçado termos nos encontrado em uma orgia. Espero que não pense mal de mim! Podemos nos ver naquela praça das cerejeiras? São lindas, e estamos na época do florescer delas.

Faço que sim com a cabeça e ela tenta sorrir, mesmo com tristeza.

– Então nos vemos amanhã. Pode ser umas quatro da tarde?

– Pode sim. Até mais, Yuki.

– Até.

Eu saio e volto a pegar outro trem. Eu moro do outro lado da cidade, e estou com muito sono. Não há escolhas.

***

Acordo e é meio dia. Penso no dia anterior e noto quão louco foi. Lembro de Olívia/Petra, e penso em como pude acreditar naquela história.

Óbvio que Petra era Olívia. Eram idênticas. Nem irmãs gêmeas seriam tão parecidas. Mas as personalidades eram completamente diferentes, o que estava me perturbando.

Usando a mente, pensei na probabilidade de ela estar mentindo ou ter algum distúrbio. Seria imprudente não pensar o contrário. Estava ansiosa para vê-la hoje e tirar conclusões com meus próprios olhos.

Saí de casa antes do tempo marcado e fiquei rondando toda a praça. As cerejeiras estavam floridas, o rosa prevalecia belamente e muitas pessoas estavam fazendo piquenique ali. Considerando que ninguém mais estava trabalhando, as pessoas estavam aproveitando a oportunidade de descansar embaixo de uma daquelas árvores, algo que raramente podemos fazer.

Rodei pela praça, procurando evidências dela. Nada.

Foi quando vi uma garota idêntica a ela correndo.

Saí em disparada atrás dela, e quando a alcanço, arranco com força o capuz de sua cabeça. Ela me encara horrorizada e diz:

– Está maluco?

– Petra?

– Quem é Petra?

– Olívia?

– Olívia? – ela parece confusa.

– Oras, quem é você?

– Wilhelma.

– Como?

– É alemão.

– Cala a boca! Você não é alemã. Você é quem? Petra? Olívia? Nenhum dos dois? Pare de mentir para mim!

– POR QUE SE IMPORTA? – ela grita, e sai correndo de novo.

Corro atrás dela, e ela começa a gritar, pedindo ajuda? Qual o problema dela? Torço o nariz, e cubro sua boca com minha mão, calando-a.

– Eu só quero conversar.

– Maníaco! Perseguidor!

– Ei, para!

Ela está chorando.

Não sei o que fazer. Mas sei que é ela. Os olhos, eles não mentem. Ela olha para mim de cima para baixo e se joga nos meus braços.

– Cansei disso. Não quero mais. – ela diz entre soluços.

Levo-a até um café, no qual está abandonado, mas as mesas ainda estão ali na calçada. Delicadamente pergunto:

– Quem é você?

– Não sei. – ela me responde. – Desde que eu cheguei no Japão não sei. Eu acordei no hospital sem saber meu nome, de onde eu vinha ou qual era minha língua nativa. Disseram que sofri um acidente. Não sabia quem eu era e minha única saída foi tentar achar uma nova eu. Todo dia sou uma nova, Yuki. Todo dia e ainda não me achei.

As lágrimas borraram todo seu rímel, e está crua na minha frente. Não é estereotipada como Olívia ou Petra. Ela é ela agora.

Toda a fragilidade dela me dá a força que sempre me faltou. Sinto que posso devolver essa força a ela também.

Seguro sua mão que está em cima da mesa e olho-a com carinho.

Espero que ela entenda.

– Vamos andar na praça? As cerejeiras estão lindas. – tento mudar o rumo da situação. Não sou bom em palavras, muito menos e ações. Mesmo com trinta anos ajo como um pré-adolescente em certas situações.

Ela enxuga as lágrimas e faz que sim com a cabeça.

É reconfortante do seu modo, as flores rosadas, as pessoas rindo. Ignoro o fato que vamos morrer. Ela ali do meu lado faz com que algo surja dentro de mim no qual é novo e não sei nomear.

Quando começa anoitecer, levo-a comigo para o trem. Decido que vamos para minha casa porque ela não parece estável o suficiente para fazer isso sozinha. Durante todo o percurso não abriu a boca a não ser quando eu perguntava algo. Suas respostas eram sempre “sim” ou “não”.

Abri a porta do meu apartamento, e ela entrou. Liguei a televisão, e comemos lamen. Ela não falava nada. Fui tomar banho, e voltei para a sala. Ela continuava na mesma posição. Sentei ao lado dela, apreensivo.

– Pode falar alguma coisa, se quiser.

Ela olhou para mim.

– O mundo está acabando mesmo, não é?

– É o que dizem.

– Acho que... se for para passar meus últimos dias de algum modo, quero passar bem.

– Eu imagino que a maioria quer.

– Eu nunca vou descobrir que eu fui.

– Não diga desse modo.

– Mas posso começar de novo, não é? Tenho quatro dias, mas é o suficiente.

– Como fará isso?

– Com você.

Tento processar essa informação. Ela quer ficar comigo?

– Não sei se posso te ajudar.

– Você pode. Eu não sou Olívia, ou Petra ou Wilhelma. Eu posso ser quem eu quiser.

– E quem você quer ser hoje?

– Eu quero ser sua.

Decidimos que ela se chamaria Shizue. Ela me contou de suas personalidades no qual ela já ocupou, e disse sobre as coisas que realmente gostava. Me contou que já mentiu gostar de rosa quando na verdade sua cor favorita é vermelho. Me contou que não sabe nada do passado, e queria saber como eram seus pais, ou se tinha irmãos.

– Não pensei que o mundo acabaria e nenhuma dessas respostas seriam dadas. – ela murmurou.

Dividimos minha cama de casal. Ela me olhava nos olhos enquanto eu ajeitava meu travesseiro, e ela sorria. Parecia pela primeira vez em paz.

– Eu gosto de ser Shizue.

– Eu gosto da Shizue. – eu disse.

Ela me beijou. Foi algo breve e simples. Foi algo rápido e genuíno.

A emoção intensa também pode ser propagada nos menores gestos.

Shizue se ajeitou na cama e fechou os olhos.

Queria ter dito a ela algo antes.

¨¨¨

Quatro dias passam rápido. Tínhamos apenas isso de tempo para estar juntos. Não é como se as crises dela não fossem raras; ela acordava de madrugada gritando, apavorada. Somando o fim do mundo mais o fim de tantos sonhos causa isso nas pessoas.

– Yuki. – ela sussurrou um dia depois que foi morar em casa. – Quero sair de Tóquio.

– Como?

– Pegue um carro. Se eu ficar parada enlouqueço.

Durante os quatro dias eu dirigi. Eu nunca tivera um carro, mas o fim do mundo proporcionara várias concessionarias de carros escancaradas para pegar qualquer carro que desejasse. Dentro de um compacto amarelo nós viajamos.

– Para o horizonte. – ela disse. – Até o mar.

O pôr do sol era mais bonito no interior japonês. As plantações de arroz abandonadas me davam melancolia, mas a respiração de Shizue ao meu lado lembrava que tínhamos uma missão.

– Não quero me sentir triste. – ela sussurrou enquanto tentávamos dormi de madrugada. Abaixamos nossos bancos e deitamos. Não era confortável, mas estávamos o mais próximo um do outro possível, e era nesse lugar que eu queria estar. – O mar nos conecta com o mundo, não é assim?

No último dia de viagem parei o carro em um templo. Todas as memórias da minha infância me atingiram em peso, como se me lembrasse que estava no fim. Orei no pé da estátua enquanto Shizue me esperava no carro. Faltava poucas horas para acabar essa aflição.

Estacionei o carro na beira da praia rochosa em que chegamos. O céu estava colorido em vermelho, laranja e amarelo. Shizue pegou minha mão, e tinha lágrimas em seus olhos.

– Vamos?

– Aonde?

– Entrar no mar.

– Não acho boa ideia...

– Ora, vamos.

Ela me arrastou até a água, molhando minha calça. Fazia anos que não entrava no mar. A sensação era boa, essa de pertencer. Sentia uma energia boa, e tudo estava positivo, por mais que fôssemos morrer. Fiquei imaginando o que Toshiro estaria fazendo agora. Ou que minha mãe estaria. Por opção decidi não falar com eles. Não é como se eu fosse bom em dizer adeus.

– Vamos mais para o fundo? – ela me perguntou com os olhos brilhantes em lágrimas.

– Por quê?

– Só vamos.

A água já estava nos meus joelhos. E então na minha cintura. Quando vi estava no meu peito.

– Não acho que devamos ir tão fundo.

– Mergulhe.

– O quê?

– Mergulhe. Mergulhe inteiro.

– Você quer que eu me entregue?

– A onda vai te levar mesmo assim.

Eu a abracei beirando ao desespero, e passei a mão pelo seu cabelo molhado.

– Eu te amo.

– Eu também te amo.

– Nunca disse antes.

– Nem eu. Não que eu me lembre. – ela falou, apoiando seu rosto na minha mão.

A onda nos engoliu juntamente com o calor do meteoro.


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Notas finais do capítulo

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