Sete coisas para se fazer nos últimos sete dias escrita por River Herondale


Capítulo 4
Sete chances para não ter outras chances




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SÃO PAULO – BRASIL

Eu nunca havia bebido vodca antes.

Qualquer bebida serviria. Para quem não tem costume em ingerir álcool, cada gole tinha um efeito devastador. A bebida rasgava, driblava a coerência, e eu já sentia que estava ficando tonta.

Não tinha saída. Eu não conseguia achar uma solução plausível. O fato era simples e devastador: o mundo estava acabando.

Tomei de ingerir outro gole da bebida que queimava o caminho que percorria. Eu estava sozinha. Eu estava sentada no chão do quarto da minha república e eu não tinha nenhuma reação. Cada um encararia o fim de algum jeito. É vergonhoso admitir que estou encarando com medo e sem nenhuma reação.

A parte sã que ainda sobrava em mim gritava que eu deveria tomar as rédeas da situação. Que eu deveria sair daquele quarto e agir de algum modo. Mas eu não queria. Eu tinha medo de como o mundo iria se despedir de mim.

A república era um grande prédio perto do metrô, e no meu andar só ficavam os quartos das meninas. Era essa a regra. Um andar de meninas, um de meninos. Na manhã várias meninas já tinham partido para a casa dos pais, pegando ônibus ou os próprios pais buscando-as. Minha melhor amiga Mariana havia se despedido de mim antes de ir:

— Queria que você fosse comigo.

— Eu também.

— Então por que não vai? Melina, meus pais moram em um sítio maravilhoso no interior. Tenho certeza de que adorará passar os dias na piscina, no rio, contar histórias de terror no porão. Além de quê, eu tenho vários primos caipirões que tenho certeza que dá para se divertir.

— Eu passo. Obrigada. – E nos abraçamos. A verdade é que a ideia de ir com ela era tentadora, mas eu não podia. Sabia que todos estariam melancólicos por conta do fim, e que estar entre um momento tão íntimo em família e não pertencer ao círculo era como se eu roubasse um momento tão especial de Mariana. Ela não merecia isso.

Antes da hora do almoço todas as meninas do meu andar já tinham ido embora.

Dei conta quando desci pelas escadas que o prédio havia sido abandonado pelos funcionários. Seu Bene, o porteiro que anos trabalhara aqui, simplesmente tinha ido embora também.

A parte boa: ninguém estava olhando as câmeras de segurança ou as chaves reservas da sala de chaves.

A parte ruim: estava desprotegida.

Mas quem não estava? Todos estavam desprotegidos, a Terra não era mais segura como antes. A Terra se explodiria.

E eu me explodiria também.

Lembrei que Roberta, a garota maluca que cursava História, guardava bebidas no seu quarto. Entrei na sala de chaves, a qual eu arrombei com um martelo que encontrei em uma das gavetas da mesa de seu Bene a maçaneta e peguei a chave pendurada na placa correspondente com o número do quarto de Roberta. Subi rapidamente no andar do quarto dela e abri.

Na mini geladeira dela tinha vários tipos de bebida que eu desconhecia o sabor. 51, Smirnoff, cerveja, até vinho e champanhe no qual acredito que ela usava quando um dos vários caras vinham na sua casa depois de uma festa.

Escolhi a vodca, pois lembro do meu primo João sempre chegar bêbado em casa e eu perguntar o que ele sentia. Ele sempre respondia:

— Não sinto. A vodca tomou conta dos meus sentidos.

Eu ficava assustada. Principalmente com seu olhar oblíquo.

— Ei, não conte para a mãe que eu bebi, beleza? Ela não precisa saber disso. – E entrava no seu quarto, se trancando e não saindo mais.

Eu deveria ter uns doze anos quando isso acontecia. Ele naquela época tinha dezenove. Comecei a morar com minha tia aos dez, quando meus pais faleceram em um acidente de carro. Tudo tinha mudado, meus pensamentos, prioridades. E meu primo era louco.

E eu perguntei novamente como ele se sentia quando chegou de outra festa. Cada vez mais ele chegava mais tarde. Minha tia era enfermeira e fazia plantão na madrugada, então ele aproveitava essa oportunidade.

— Não sinto. A maconha tomou conta dos meus sentidos. – Ele disse, e não esperou para ver minha reação. Só entrou em seu quarto e se trancou.

Eu ficava assustada. Principalmente com seu olhar avermelhado.

O primeiro gole da vodca queimou tudo. Eu lembrei dos passos tortos do João quando voltou de sua primeira festa. Então tomei outro gole. Lembrei do cheiro de bebida do João quando voltou da segunda.

Bebi mais um e mais um e mais um. O caminho até meu quarto parecia infinito.

Tomei o último gole sentada no chão do meu quarto. Lembrei da cor embranquecida do João no seu caixão, minha tia chorando. Ele tinha apenas 21. Eu tinha quatorze e tudo ficou mais desestruturado do que o normal. Fico imaginando qual seria a resposta de João se ele tivesse chegado da festa. Se ele diria: “Não sinto. A morte tomou conta dos meus sentidos.”.

Dormi aquele dia com gosto de vodca, meu corpo tremia de exaustão. Não é como se eu tivesse um lugar para voltar. Minha tia com a morte de João ficou desmotivada, e sair para a faculdade e ter uma vida independente era tudo no qual eu me agarrava. Planejar meu futuro e correr para que tudo funcionasse era meu passatempo favorito. Era minha forma de fugir e desvencilhar da casa que cada vez mais desmoronava.

E uma notícia maldita é dada pelos jornais de todo o mundo, espalhando a maravilhosa notícia de que o mundo inteiro está com os dias contados. Obviamente eu fiquei muito feliz com isso.

Viver para morrer. Tudo bem, isso é normal. Mas pelo menos eu gostaria de estar preparada para morrer, pelo menos ter vivido do jeito que sempre quis. Vou morrer e a única coisa que fiz em toda minha vida foi... estudar? Não consigo pensar em mais nada que eu tenha feito, o que me incomoda intensamente.

Acordo de manhã com a maior dor de cabeça e ressaca do mundo e decido tomar banho. Quando saio nem ponho roupa. Moro sozinha e o mundo está acabando e isso é o máximo de ousadia que posso atingir nessa minha vida pacata que mantive pelos meus 20 anos.

Olho para o lado e vejo que em cima da minha mesa de estudos está a pilha de folhas que imprimi. O rascunho de meu primeiro livro que nunca poderei enviar para a editora, todas as páginas que me dediquei por dias empilhados e que acabarão em nada.

Nesse momento fico enraivecida, sangue quente sobe pelo meu rosto e começo a jogar as folhas por todo meu quarto, gritando. Sou muito concentrada, nunca me descontrolo, mas nesse momento foi impossível. Naquele momento todos os meus sonhos estavam espalhados pelo chão.

Foi quando alguém entrou no meu quarto com tudo e eu tomei o maior susto de minha vida. Acrescente ao fato de que eu estava completamente sem roupa. Me joguei para baixo da minha cama, me envolvendo com o lençol caído.

Era Gabriel. Merda, justamente ele? Gabriel era o típico universitário babaca que ao invés de estudar prefere beber nesses barzinhos perto da faculdade e colecionar ficadas. O que nós ignoramos é o fato que nos conhecemos desde o ensino médio, quando ele não tinha os músculos nem o estilo de hoje.

— O que você está fazendo aqui? – Gritei com ele, mais envergonhada do que com raiva.

— Eu ouvi você gritar e fiquei preocupado, só isso. – Dava para ver uma malícia por trás de suas palavras.

— Pare de me encarar, cacete! Saia do meu quarto.

Gabriel olhou para o chão e vi seus olhos fixarem na garrafa de vodca vazia no chão.

— Bebeu tudo sozinha?

— Dá para você simplesmente sair?

— Não acredito... Mel, você é uma santa!

Estranhei ele me chamar de Mel. A maioria das vezes imitávamos que não existíamos, e poucas pessoas não me chamavam pelo nome completo.

— Gabriel, eu pedi para você sair. E posso saber o que está fazendo no andar das meninas do prédio? A maioria se mandou para suas casas.

— Eis que acaba de descobrir que não vou me mandar para minha casa, porque não quero passar meus últimos dias no tédio que é viver em família. E estava no andar feminino porque estava ali com a Nanda do curso de Direito.

“Estava ali com a Nanda” significa “Transei loucamente” no vocabulário dele. Se a transa fosse ruim ele nem se daria o trabalho de dizer. Se fosse no mínimo decente ele poderia dizer algo do gênero.

— Acho que você se esqueceu que estou nua e você no meu quarto. – Eu disse apontando para o lençol enrolado no meu corpo.

— Ok, estou saindo.

Vesti meus shorts vermelho velho e uma camiseta qualquer e vi que Gabriel me esperava no corredor. Torci o nariz.

— Não vai embora, não?

— Não. Queria te convidar para sair.

Senti um leve tremor. Nada mais fazia sentido, principalmente ele.

— Por quê? Só porque é fim do mundo e sua única meta da lista de sete coisas para fazer nos últimos sete dias é ficar com o máximo de meninas possível?

— Não. É que sou muito cavalheiro e já te vi pelada. A ordem natural das coisas seria sair primeiro e depois ver você como veio ao mundo.

Meu rosto enrubesceu. E por algum motivo o julgamento dele sobre meu corpo me incomodava mais que o aceitável. Torci para que ele não tivesse reparado como meus peitos são pequenos.

— Só porque é o fim do mundo vou aceitar sair com você. Em outras circunstâncias não aconteceria.

Saímos e vi que a rua estava um caos. Carros e mais carros faziam filas de congestionamento para se mandar de São Paulo. A boa notícia era que ainda hoje os transportes públicos da cidade iriam funcionar. Gabriel e eu pegamos o metrô que agora era grátis. O que é dinheiro quando o mundo irá acabar?

— Você fez lista de metas como o governo sugeriu? – Gabriel me perguntou. O metro estava completamente vazio, o que era estranho e bom.

— Não. Não é como se tivesse metas para apenas cinco dias que me sobram.

Me irritava essa iniciativa do governo. “Realizem seus sonhos mais loucos” “Vamos nos despedir da vida em grande estilo” ”Vivam cada segundo, eles são preciosos”. Besteira.

E Gabriel era bonito. No ensino médio eu era totalmente apaixonada por ele, mas ele nunca reparou. Estava ocupado demais sendo um garoto fantasma na sala de aula. Ele não era participativo, não falava muito e não tinha amigos. Ele era um tipo de mistério que eu queria desvendar. Considerando que ele não era nem de longe feio – cabelo preto, topetinho da moda, naquela época bem magro e alto. Um nariz muito bem moldado e dedos longos de artista – Eu só conseguia pensar quem é que ele escondia por trás daquele capuz da jaqueta na última carteira da sala.

Hoje ele estava diferente. Seu cabelo tinha um corte simples e rente a cabeça. Não era mais magrelo. Ir na faculdade a pé todos os dias resultara em músculos e agora ele deixava a barba. Era atraente pra burro, e as meninas fariam fila para ficar com ele se ele sugerisse.

Me perguntei o que ele fazia comigo naquele momento.

— Por que você não está com a Nanda, afinal? Ela ficou na cidade se não me engano.

— Ela foi para a casa de uma amiga dela na zona sul. Parecia irritada com minha presença.

— Ou então nessa casa vai ter orgia, o que é melhor que ficar só com um só cara.

— Se fosse orgia eu com certeza teria sido convidado. Então descarte essa ideia.

Revirei meus olhos. A prepotência dele me irritava em diversos graus.

Quando vi, estávamos na rua Augusta. Olhei desconfiada para ele.

— Os bares não vão abrir. Não tem motivo algum para isso.

— Exatamente. Nunca mais abrirão, então podemos entrar em um dos bares e beber à vontade. Não é como se pudessem nos prender, afinal.

Não sei porque concordei, mas já estava lá dentro. Entramos em um bar no qual a porta era de vidro e Gabriel quebrou a porta com um pedaço de tijolo que encontramos na rua. O barulho de estilhaços despertou um alarme, no qual quebramos com os pedaços do mesmo tijolo.

— Eu não sei nem porque concordei com isso. – Eu disse enquanto tentava não pisar em nenhum resto de tijolo ou vidro.

— Você deveria relaxar. Você não terá muitas chances para desperdiçar, não acha? – Ele disse.

Não suportei isso. A naturalidade em que as palavras saíam dele, em como podia ter gente não enlouquecendo como eu estava. Como é que alguém podia continuar ok sabendo que o mundo que você conhece vai simplesmente ser destruído?

— Você não existe. – Eu chacoalhava a cabeça sem parar, como se isso afastasse a realidade. – Se ainda não ficou claro, as pessoas irão morrer. Você vai morrer! Morrer não é tão simples quanto você imagina. Morrer significa que tudo que você conhece não vai existir mais. Você entende isso? Você realmente acha que beber vai evaporar toda essa realidade? Que agir fazendo loucuras vai diminuir o impacto da dor? Não vai. Eu não sei porque vim até aqui com você.

Vi o horror em seus olhos. E então ele começou a falar bem calmamente, como se eu fosse muito burra e não tivesse a capacidade de entender se ele falasse normal:

— Se desesperar também não vai adiantar. Reconhecer a realidade é uma coisa. Dar importância a ela é uma escolha. Eu escolhi usa-la como uma oportunidade para diversão, e deveria ser grata por eu ter te convidado para ser parte dela.

A arrogância despertou mais ainda a fúria em mim.

— Ah, claro. Me desculpe se não valorizei a honra que é ser convidada por vossa majestade a esse passeio, oh, príncipe perfeito Gabriel. Mas se me der licença, gostaria de felicita-lo que vá se foder.

Saí pisando duro do bar, e não olhei para trás. Não conseguia. Ele não sabia e nem poderia saber que ele sempre esteve inserido nos meus sonhos. Que ele sempre foi parte dos meus planos mais profundos e secretos no qual eu sempre lutei silenciosamente para realizar.

Estou vagando. São Paulo que costuma ser uma louca desordem ordenada estava mais vazia do que nunca imaginei ser capaz de ver. Agora ver lojas em estilhaços era comum. Shoppings eram saqueados por pessoas em busca de algo caro no qual sempre quiseram ter. Fiquei irritada com a ideia. Essas pessoas realmente acham que o colar de diamantes roubado de alguma joalheria milionária te fará superar melhor o fim do mundo? Eu deveria ter escolhido cursar Psicologia e não Letras para poder entender o que passa na cabeça das pessoas em sinal de desespero.

Uma menina me puxou pelos ombros, e eu gritei, com medo. Respirei com alívio quando vi que era Roberta, e ela estava toda suada e selvagem, seu cabelo pintado de vermelho empapado de sujeira. Em sua camiseta rasgada estava escrito “Protesto para o nada já que o fim do mundo não para. Desculpe-nos pelo transtorno, mas causar caos é nosso último conforto. Morreremos como rebeldes sem causa, mas não morreremos sem lutar, por mais inútil que isso seja”

— Pensei que tivesse ido embora. – Falei, depois me acalmar do susto.

— Não fui. Decidi ir na casa de um amigo da faculdade que chamou toda a galera de esquerda do curso de História para passar os últimos dias vivendo a anarquia. Preciso dizer que se tem uma coisa que o fim do mundo me trouxe foi a liberdade, e estou feliz como nunca estive antes!

Ela não estava normal. Seus olhos estavam obscurecidos por alguma substância, no qual supus ser droga. Em sua mão ela segurava um canetão.

— Então saiu em protesto?

— Sim. Eu sei, soa inútil, mas gosto da ideia de morrer lutando por uma causa que acredito. Gostaria de me ajudar nas frases que escreverei nesses cartazes?

— Eu tenho que ir. Mesmo. Mas espero que dê tudo certo aí nesse seu protesto. – Falei com leve desdenho. Não conseguia levar nada disso a sério no momento.

— Ah! Tudo bem então, Melina. Espero que esteja tudo bem com você, afinal. Aproveite enquanto pode!

Virei a esquina e vi um grupo relativamente grande em protesto. Acho que convidaram mais pessoas pela internet, já que ela não iria parar em nenhum momento no fim do mundo. Até jornalistas estavam em volta dos protestantes, gravando tudo para provavelmente passar no jornal número um do país. As pessoas me enojam. Me anojam por continuarem trabalhando, documentando momentos que no fim virarão nada, como se nada tivesse acontecido. Como se esse planeta que chamamos de Terra nunca tivesse existido.

Saí correndo para lugar nenhum. Vi que pessoas doentes e desesperadas entravam no hospital agora abandonado pelos médicos, em busca de provavelmente remédios. Vi no jornal que alguns queriam sedativos para assim morrerem dormindo, sem dor. Outros simplesmente queria usar os remédios de tarja preta como droga. A loucura da situação, de terem parado o tratamento de todos os feridos e doentes do hospital era revoltante. Sei que não adiantaria nada, mas a ideia me enojava.

Cheguei em casa extremamente tarde. Vagar sem rumo, correr, parar. Tudo contribuíra para as horas a mais de tempo de percurso até o apartamento que eu chamava de meu.

Encontrei um Gabriel sentado na minha cama, com o rosto ocultado pelas pernas que ele envolvia com os braços. Que merda ele fazia aqui? Por que se incomodava? Mesmo que em meus mais profundos e inocentes sonhos eu pudesse desejar que ele se preocupasse comigo, que ele mostrasse importar, não sei se estava preparada. Não. Talvez eu já estivesse totalmente enlouquecida a ponto de não saber raciocinar.

— Estou aqui a horas e você nunca chegava. Pensei que pudesse ter cometido alguma loucura.

Louca, loucura, enlouquecida. Essas eram as palavras mais presentes no meu dia.

— Eu estou bem, ok? Pode ir embora.

— Não vou até me certificar que você esteja totalmente bem.

— Como se você importasse com alguém a não ser você! Você já se amou, por acaso? Já pelo menos se apaixonou? A resposta certamente será não, contando com o fato de que sempre esteve ficando com qualquer uma que caísse na telha, iludindo-as, usando-as para então descartar. Isso me enoja, Gabriel!

— E você sempre se importou com isso, não é? – Ele tinha se levantado da minha cama.

— O que você quer dizer?

Na mão dele estava meu diário escancarado. Como ele tivera a coragem de ler meus pensamentos? Ali naquelas páginas onde eu dizia tudo, inclusive sobre ele.

— Como se atreve?! – Quase rasguei ele em pedaços tentando pegar o diário de sua mão. – Você não tem esse direito!

— Então você me via assim? Melina, você escrevia de mim, foi apaixonada por mim! Por que nunca disse nada? Por que nunca me procurou?

— Você não entenderia mesmo – Meu coração acelerado poderia pular da minha boca a qualquer instante.

— Você escreveu que esperava o melhor momento. Nos conhecemos desde o Ensino Médio e esse momento nunca chegou? Melina, como assim? Disse aqui sobre tantas coisas, tantos sonhos. Disse que quando estivesse em uma posição melhor eu poderia finalmente te notar e assim ficarmos juntos. Você tem sérios problemas com confiança, você sabia?

— Não tem o direito de achar que sabe mais sobre mim do que eu.

— Eu não sou o cara no qual você escreveu aqui nessas folhas. Eu não sou nem um por cento do que você idealizou em sua mente. O amor é cego desse jeito? Se for, fico feliz em nunca ter amado e morrer assim.

Ele jogou o diário longe e se dirigiu até minha porta. Eu estava congelada no mesmo lugar, sem conseguir engolir o momento.

— Me desculpe, Melina. Poderíamos ter sido alguma coisa se eu tivesse notado, mas já é tarde demais. – Ele fechou a porta, me deixando sozinha.

As lágrimas vieram acompanhadas com toda a fúria acumulada pelo dia estressante. Quebrei a garrafa de vodca na parede, baguncei todo meu quarto, mais do que ele já estava. Como Gabriel tivera a coragem de fuçar todo meu quarto e ainda por cima quebrar o cadeado de meu diário? O que despertara nele essa curiosidade?

Nesse momento, até pensei na probabilidade de ele ter tido sentimentos por mim também. Se essa fosse a real, meu Deus. Peguei o diário e o abri. Minha cabeça doía, meus braços ardiam.

Escrevi na última página. Escrevi aquela tal lista das coisas dos últimos dias. Mas minha lista foi diferente. Listei as sete coisas que mais desejei e nunca poderei ter. Listei os sonhos que deixarei no mundo.

Publicar vários livros

Ser bem-sucedida profissionalmente

Ser feliz ao lado de alguém que ame

Morar na beira da praia

Viajar pelo mundo

Ler todos os livros que guardo na minha estante

Gabriel

A número sete surgiu tão naturalmente quanto as outras. A importância da vida nele na minha era impactante de uma forma que nem eu mesma reconhecia. Ele foi minha única paixão, ele sempre esteve em meus pensamentos naturais durante todos os dias da minha vida como o pensamento natural de ter que ir ao banheiro ou sentir fome é. E tudo estava destruído agora.

A melancolia que aquela lista me despertou fez com que qualquer motivação se esvaísse. Amanhã não seria melhor que hoje, e o fim iminente do mundo arrastaria todos nós para a morte.

E uma motivação nasceu. Não. Eu não quero morrer junto com todo o mundo. Não quero ser mais uma entre tantos. Quero meu próprio dia de dizer adeus.

Uma música veio em minha mente. Uma música que falava sobre adeus, medo, morte. Uma música que parecia otimista até você enxergá-la como deveria enxergar. Uma música que era uma carta de suicídio de alguém que morreu por amor.

Escrevi em mais uma página do meu diário, no qual creditei como a última. Dei cada passo que creditei como últimos também. Respirei como se aquele ar fosse o último que entraria em meus pulmões. Chorei como se cada lágrima fosse a última capacidade válida que eu faria em minha vida.

A consciência que eu adquirira da capacidade de sentir vida, de viver, me fez perceber que durante toda a vida estive morta. Eu deveria ter abraçado mais, sorrido mais, amado mais. Deveria ter arriscado mais.

Mas hoje seria o último dia do espetáculo da minha vida.

Na música o cara havia morrido enforcado. Eu peguei meu diário e deixei na pia do banheiro, caso alguém me encontrasse. Amarrei a mangueira do jardim do prédio no cano do chuveiro e a envolvi no meu pescoço. Meu coração batia com tanta vida que me senti até culpada por estar disposta a parar seu trabalho. Me desculpe se isso me faz ingrata, coração. Você fez bem seu trabalho.

Empurrei com o pé a cadeira no qual estava me apoiando. O mundo se apagou com um baque, como um botão de emergência.

“A última carta”

Uma parte de mim acha que você vai me encontrar. Outra tem certeza. Sei que o trabalho funerário não está funcionando, mas sei também que entre viver pacatamente uma vida longa e viver uma vida curta e intensa, a segunda opção é a mais plausível. Pena que só notei isso agora.

Eu te amei. E morri te amando. Eu me fantasiava deitada nos seus braços em uma cama de casal confortável, você acariciando minha cabeça enquanto te conto sobre minha vida. Então imagino você me contando um pouco sobre você também, e dizendo que nunca teve coragem de se abrir desse jeito para ninguém. E então eu me sentiria verdadeiramente especial.

Imagino te contando sobre meu primo João, e chorando a morte dele. João foi o homem mais importante da minha vida antes mesmo dele ter se tornado homem. Ele nunca soube disso e nem mesmo se esforçou para isso. Mas eu apreciava sua força e coragem de enfrentar seus medos e depois ter a capacidade de continuar a viver. Ele sempre estava se superando até não poder mais.

João se matou. Pelo menos foi isso que os disseram após examina-lo. Nunca acreditei em que João teria feito isso. Ele não tinha motivos para se matar. Nunca acreditei porque ele estava na faculdade e teria um grande futuro, porque ele tinha vários amigos e uma mãe muito boa.

Mas daí cheguei na conclusão que talvez isso não fosse o suficiente. Que quando ele se trancava em seu quarto e colocava aquele rock antigo para tocar talvez estivesse chorando. Que talvez estivesse com o coração partido como eu.

No dia em que ele morreu ele usava uma camiseta do Nirvana. Kurt Cobain se matou. Julguei isso como uma dica, um recado.

Entrei no quarto dele uma semana depois do enterro. Minha tia ainda não tivera essa coragem e tudo estava como ele havia deixado. Um caos, seu notebook ainda ligado na tomada, sua cama cheirando João. Vi que em cima de sua cama tinha um pôster preso em fita crepe com a foto Kurt segurando seu violão.

Kurt morreu tão jovem. Era talentoso e cantava com todos seus sentimentos esvaindo em sua voz. Ele sentia, e sentia muito. Ele era excepcional demais para viver por tanto tempo.

Tirei o pôster da parede, sentindo que tirava um pedaço dos fragmentos que evidenciavam que João vivera e havia pisado na Terra. Atrás do pôster estava escrito “A última carta”.

Liguei seu notebook e vi que a última página visitada era a carta de suicídio de Kurt. Isso não podia ser coincidência. Julguei que sua camiseta era a pista para sua carta de suicídio que ele não escrevera. Ele usou as palavras de Kurt como as dele:

“Eu me sinto culpado por essas coisas além do que posso expressar em palavras”, “O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas sendo falso e fingindo como se eu estivesse me divertindo 100%.”, “Devo ser um daqueles narcisistas que só dão valor as coisas quando elas se vão.”, “Sou muito sensível. Preciso ficar um pouco dormente para ter de volta o entusiasmo que eu tinha quando criança.”, “Existem coisas boas dentro de todos nós. Eu acho que simplesmente amo demais as pessoas e isso me deixa muito triste.”, "E por que você simplesmente não aproveita?" Eu não sei.”, “Eu sou um bebê errático e triste! Eu não tenho mais a paixão, e por isso lembre-se, é melhor queimar de vez do que se apagar aos poucos.”

Gabriel, você mudou minha vida sem nunca desconfiar. Você foi um estímulo para eu querer alcançar as coisas. Eu só queria que você me notasse. Que notasse alguma poesia nesse meu jeito torto de ser. Mas fico feliz que você tenha sido a última pessoa com quem falei. E saiba que você ser o destinatário de minha última carta nunca foi dúvidas. Todas minhas cartas sempre foram destinadas a você.

Se existe um mundo pós vida, espero encontrar meus pais lá. Espero que eles me abracem e entendam minhas decisões. Espero de verdade. E daqui alguns dias, quando for sua vez e a vez de todos, quero que me procure. Quero saber se foi você quem leu essa carta mesmo.

A consciência da vida é um dos sentimentos mais intensos e transformadores que alguém pode sentir. Sempre estive morta. Só agora vivi.


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Notas finais do capítulo

Nunca pensei na vida que iria escrever uma carta de suicídio. São essas as coisas que a literatura nos proporciona, haha
Review? O que acharam da one-shot do Brasil?