Imperfeitas escrita por Isadora Nardes


Capítulo 3
Janete.


Notas iniciais do capítulo

Lamento não postar muito. Fiquei sem internet. para compensar, vou postar todos os capítulos que já estão prontos.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/596947/chapter/3

Eu só berrei junto com elas pra me misturar.

Eu não estava nem um pouco histérica. Aliás, eu nunca ficava histérica. Nem desesperada. Nem apavorada. Eu podia ficar naquele camarim pra sempre, até uma hora que eu não ia mais controlar meus impulsos e começar a matar todas aquelas menininhas estúpidas ali.

Bem, nem todas eram tão estúpidas.

Yolanda, por exemplo, era mais inteligente. Chutou a porta e ainda fez Harold, o viado, ficar raivoso. E aquilo era um dom. Mas Vanessa? Ah, era um porre ter que fingir que eu me importava com aquela menininha chorona. Detestava o cabelo cor de cobre perfeito que ela tinha, detestava o corpinho magrelo e a bunda enorme dela, detestava os olhos azuis esverdeados que eu queria pra mim.

Eu me cobri com uma toalha que me emprestaram e fiquei muito contente ao ver que um estagiário estava me fitando. Aliás, vários estagiários estavam fitando várias garotas. Afinal, éramos garotas com rostos 100% em corpos 100% perfeitos, com pernas 100% perfeitas e quadris 100% perfeitos. É claro que as pessoas – em particular, os homens – iam olhar para nós.

Era estranho me sentir daquele jeito. Porque eu já me sentira muito, muito incomodada com aquilo. Principalmente na rua – os homens passavam pela rua, em seus carros, e eu estava na calçada, e eles colavam os olhos em mim. Alguns ainda botavam a cabeça pra fora da janela e gritavam: “Gostosa!”, ou “Eu comia!”; pra mim, aquilo sempre fora o nível mais extremo de filha da putagem que alguém podia chegar. Porque aqueles caras realmente achavam que as garotas gostavam de cantadas assim. Ok, toda garota gosta de se achar gostosa. Não adianta dizer que não, porque é verdade. Mas elas não precisam de cantadas grosseiras pra se acharem gostosas; elas só precisam se olhar no espelho e se acharem bem o suficiente.

Bom, pelo menos as garotas normais.

Eu não achava nada sobre meu corpo. É claro que eu era obrigada a fazer dietas e mais dietas, exercícios e mais exercícios, cirurgias e mais cirurgias, tudo pra ter aquela barriga de tanquinho, mas nunca era o suficiente. Sempre surgia outra dieta. Outro remédio milagroso. Outro exercício estúpido. Outra cirurgia pra corrigir aquele erro mínimo, que ninguém se importava se existia ou não.

A maioria das garotas daquele concurso era magérrima. Magras demais. Algumas, nem chegavam a ser bonitas: eram doentes. A maioria me causava repulsa. Elas realmente achavam que valia a pena? Valia a pena deixar de comer, desmaiar no meio da rua e virar anoréxica? Tudo por causa de uma coroa e uma faixa? Por causa de um prêmio estúpido dizendo que elas eram melhores do que qualquer outra menina na rua?

Eu não achava que valia a pena. Era só um concurso idiota.

Mas eu precisava interpretar o papel. Fiz-me de burra enquanto os outros me acudiam. E os únicos que não olhavam para nós eram os assistentes gays – eu até que gostava dos assistentes gays, porque eles, em geral, eram sinceros como os homens e delicados como as garotas. Bom, não que não existissem homens delicados ou garotas sinceras, mas, no geral, os homens ali eram bastante babacas, enquanto as garotas eram bastante falsas. Por isso, eu tratei de preservar amigos gays, porque eles eram bastante úteis.

***

Tivemos que voltar para o camarim para vestir nossas roupas. No próximo dia nós teríamos a próxima fase do concurso. Eu esperava, sinceramente, que não fosse alguma coisa relacionada com simpatia, porque eu não era muito boa nisso.

Yolanda estava encostada na parede. Eu me aproximei dela.

–- O que foi que Harold te disse? – eu perguntei. Estava morta de curiosidade. Ela deu de ombros, e disse:

–- Algo sobre não ganhar o concurso nunca.

Eu a examinei. Ela tinha traços fortes, que ela sempre dizia que detestava. Mas, pelo menos, ela sabia se maquiar, então ficava bonita – bonita o suficiente para aquele concurso, e isso era pra lá de bonita. E fora que ela era uma das poucas que não era anoréxica. Tinha uma barriga magra, sim, mas não parecia doente. Tinha uma pele brilhante. Peitos grandes, uma bunda na medida certa. Olhos lindos. Cabelo com cachos impecáveis.

E, ainda assim, os outros pareciam achar que ela não se encaixava no padrão daquele concurso.

–- Porra – eu reclamei. – Aquele viado é um imbecil.

–- Eu não vou ganhar, mesmo – ela disse. – Eu não sou muito boa pra ganhar coisas.

–- Tudo o que você precisa fazer pra ganhar alguma coisa aqui é ser comível.

–- As outras garotas são comíveis.

–- E você também é.

Yolanda me fitou.

–- O que mais? – ela perguntou.

–- Fingir – eu disse. – Fingir um sorriso.

–- Isso eu faço bem.

–- Eu também. Fingir ser simpática, fingir se importar, fingir ser burra, fingir estar apavorada... Tudo aqui é fingimento, querida. Você acha que essas meninas são magras naturalmente? Acha mesmo que os narizes delas são desse jeito? Acha que todas elas têm esse cabelo natural? Haha. Elas são tão falsas quanto a macheza do Harold.

Eu puxei um cigarro. Vanessa veio me encher o saco.

–- Amiga, você não pode fumar aqui – ela disse.

Ignorei-a. Mas ela continuou:

–- Você me ouviu?

–- Não sou surda – retruquei. Ela pareceu ofendida.

–- Se você fumar, eles podem te desclassificar!

Fiquei surpresa por ela saber o significado da palavra “desclassificar”. Porém, eu simplesmente acendi o cigarro bem perto do nariz de Vanessa. Ela virou o rosto.

–- É contra as regras – reclamou ela.

–- Vai cagar regra pra lá – eu disse. Yolanda riu, enquanto se enfiava numa blusa que tirou da própria bolsa.

–- Eu vou contar para Harold! – Vanessa disse, em tom de desafio. Eu a fitei. Tinha uma pele falsamente bronzeada, olhos cor de mel, um nariz fino e comprido. Lábios eternamente crispados. Cabelo cor de cobre.

Como aquela criatura tinha chegado a concorrer o Miss Brasil? E, agora, no Miss Perfeição? Será que ninguém tinha noção que aquela garota era pateticamente produzida? Uma garota de fábrica, feita com milhões de outras.

E eu vim com um defeito de fábrica.

Eu amava esse defeito.

–- Aquela bicha velha não pode fazer nada – eu soltei. Algumas garotas olharam pra mim. Eu puxei Yolanda, e disse: -- Aquela bicha amargurada realmente não pode fazer nada.

Ouvi uma garota rir. Era Teresa; tinha cabelos pretos ondulados, era pálida, com um nariz pontudo e lábios brancos rachados. Era bonita, mas sempre tinha que exagerar no blush, porque sua pele nunca pegava nenhum tom. Ela era magra, e realmente parecia doente, mas também não era tão burra. Ela disse:

–- Harold só late, não morde – se aproximou de mim e puxou minha cartela de cigarros. Eu acendi o isqueiro, e observei a ponta do cigarro se acender quando ela inclinou a cabeça. Ela tragou um pouco e soprou a fumaça pra cima, perto do ar condicionado. – O máximo que ele pode fazer é jogar um pouco de maquiagem fora.

Algumas outras garotas deram risadinhas. Vanessa inflamou as narinas. Pegou o celular e começou a gritar com alguém no telefone, mas eu já estava me enfiando em uma calça jeans.

Eu amava ultrapassar aqueles limites hiperextraordinariamente ridículos.

***

Com a mochila jogada sob o ombro, eu andava arrastando os pés. Por sorte, era uma quarta-feira de noite, horário de hush, então todos os babacas que tinham carros estavam cansados demais pra buzinar ou assobiar pra quem quer que fosse.

Eu observei alguns restaurantes, enquanto andava. A maioria tinha famílias brancas, de classe média alta, que poderiam estar felizes, conversando e rindo; e, ao invés disso, estavam todos de cabeça baixa para seus telefones celulares. A maioria tinha pele pálida, resultado de muito tempo sem tomar sol. Parecia uma mistura de zumbis com vampiros. Sempre fazendo a mesma coisa, dia após dia, dizendo para si mesmos que a vida deles não era uma merda.

E, ainda assim, era uma merda menor que a minha vida. Eles, pelo menos, estavam juntos. Eles, pelo menos, não tinham que tentar agradar a todos, sem nunca ser o suficiente. Mas eu? Eu estava sozinha. Eu tinha que ser a melhor, sozinha, sem ninguém para me ajudar. Certo, tinha Harold, mas Harold estava pouco se fudendo para o que eu fazia ou deixava de fazer; para ele, tudo estava bem desde que ele conseguisse manter nossos corpos magrelos.

A dor começou a retirar minha respiração.

Onde estava a maconha quando eu precisava dela?

Comecei a correr. Eu queria que meus pensamentos permanecessem ali, plantados, enquanto eu corria pra longe deles. Mas eles me seguiram. Eu corri, corri e corri, até que meus membros pararam de protestar e simplesmente se jogaram no chão.

Arfei, de joelhos sob o solo. Puxei uma cartela de cigarros da minha mochila, e um isqueiro. Acendi o cigarro, e rastejei até o canto do muro. Puxei a fumaça para meus pulmões e depois a observei sair. Era a dor. A dor indo embora. Eu a puxava pra dentro de mim, a guardava, depois soprava ela fora.

E ela ia me matando aos poucos.

Depois de algum tempo, me levantei. Tinha um lugar onde eu precisava ir. Um lugar aonde eu ia desde que completara 18 anos. Entrei no ônibus, inquieta por não poder fumar ali dentro, e pulei algumas quadras antes da fábrica.

A maioria das garotas do concurso iria achar aquele lugar asqueroso. Era escuro e isolado, sujo, cheio de lagartixas e aranhas. Mas eu adorava, porque ninguém se atrevia a entrar ali – pelo menos, ninguém se atrevia a entrar ali pra me encher o saco.

Empurrei a lâmina de papelão que bloqueava a porta lateral. Depois que o eco do papelão tombando cessou, eu desfrutei do silêncio. O único barulho era minha respiração. E as coisas em minha mente.

Eu subi os andares da fábrica. O metal estava enferrujado, e, ocasionalmente, eu temia que ele desabasse e me deixasse cair a uns bons sete metros do chão. Mas eu espantava o medo; afinal, minha vida não era grande coisa a se perder. Provavelmente ninguém daria pela minha falta até algum noiado ou algum adolescente – ou um adolescente noiado – entrasse ali.

De qualquer maneira, eu cheguei ao terraço. Andei alguns passos para a esquerda. Da ponta, podia-se ver a casa de Vanessa. Eu podia ver o quarto dela. Vasculhei no chão do terraço até achar uma pedra. Joguei-a no telhado. Ela apenas rolou. Peguei mais algumas e uma delas acertou a vidraça do quarto de Vanessa. Eu me abaixei, rindo sozinha.

***

Mas, não importava quantas coisas estúpidas eu fizesse, no fim do dia eu continuava sozinha.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Imperfeitas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.