Imperfeitas escrita por Isadora Nardes


Capítulo 4
Vanessa.




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Tive que esperar por meia hora até minha mãe chegar.

Eu me enfiei no caso e conferi meu rosto no espelho. Eu havia tirado a maquiagem do concurso e substituído por uma mais leve. Meus olhos ainda estavam um pouco vermelhos. Minha mãe se virou pra mim, e perguntou:

–- Como foi?

Ela estava empolgada. Minha mãe era uma das poucas pessoas na minha casa que ainda estava empolgada com o concurso. Eu olhei pra ela. Os cabelos eram iguais aos meus. Os olhos também.

–- Eu...

Como diabos eu ia falar aquilo? “Eu não sou a melhor”? “Eu não consegui”? “Não sou o suficiente”? Eu não queria desapontá-la, mas não podia mentir. E seria ótimo soltar a verdade, porque eu tinha a sensação que isso seria algum tipo de chave para a liberdade. Ou, pelo menos, aquilo ia arrancar uma máscara.

–- Eu... Perdi.

O sorriso da minha mãe se desfez. Ela virou pra frente e começou a dirigir. Tinha algo nos seus olhos que eu não identifiquei. Após minutos de silêncio, perguntei:

–- Está brava comigo?

–- Estou chateada – ela esclareceu. A raiva pareceu emanar dela. Ela encostou o carro numa vaga livre do estacionamento e bateu as mãos no volante. – Porra! Era sua chance... A culpa é do Harold. Aquele bicha de armário! Sempre soube que ele era um imbecil. Lembra quando ele foi com você ver o vestido? Ele escolheu o pior. Ah, e ainda era o mais caro!

Fiquei ouvindo o desabafo raivoso dela. Era melhor que estivéssemos estacionadas, até porque, mesmo com raiva, eu não queria morrer naquele instante. Mas aquele papo me irritava.

A culpa não era de Harold.

A culpa era minha.

Eu havia me livrado da dieta uma semana antes da primeira fase do concurso. Minha meta era caber no meu antigo vestido de seda, e eu consegui caber nele.

Mas eu não deveria ter parado.

Só que eu estava cansada. Porque aquela não era eu. Eu queria estar com outras garotas normais, não com aquelas anoréxicas ridículas do concurso. É claro que eu era a mais ridícula de todas, mas eu entrei no concurso porque minha mãe estava se projetando em mim.

O prêmio não seria meu.

Seria dela.

De forma que a derrota não era minha.

Era dela.

Eu a desapontei.

Senti lágrimas de frustração me queimando nos olhos. Eu havia aberto mão de tempo livre pra estar na academia. Havia deixado de comer para entrar naquela porra de concurso. E tudo isso foi em vão.

Eu abri a porta do carro. Já começava a escurecer. Eu comecei a correr, e ouvi minha mãe me chamando. Mas eu não parei, pois minha frustração me movia. E havia frustração demais.

***

Parei na frente da minha casa. O carro da minha mãe não me seguiu. Eu toquei a campainha impaciente, várias vezes, até meu pai atender. Ele deu um sorriso:

–- Conseguiu?

Não respondi. Empurrei-o para o lado, e passei pelo sofá da sala, onde meu irmão, Carl, mexia no celular. Eu estava raivosa, de modo que fui subir as escadas sem nem olhar para ele. Carl virou a cabeça, e gritou:

–- Ui, alguém te superou, saco de ossos?

Aquilo foi demais.

Normalmente, eu só teria mandado ele se fuder.

Mas eu estava desapontada, com raiva e triste.

Então eu me descontrolei.

Larguei minha bolsa na escada e desci os poucos degraus atrás de mim. Eu pulei em cima do sofá e joguei Carl para o lado. Peguei o celular dele e atirei na parede. As peças voaram pela sala e eu comecei a sacudir Carl.

Não havia o que falar.

Eu só queria arrancar aquele sorriso da cara dele. Na base do tapa.

Ele grunhiu e pediu socorro pro meu pai. Mas o papai não o acudiu. Por fim, eu bati as duas mãos no peito de Carl, e gritei com ele:

–- Sim, porra! Me superaram! Eu não consegui! Está feliz? – eu dei um tapa na orelha dele. – Está feliz?

Ele não respondeu. A expressão de dor dele não me comoveu. Eu saí de cima dele, e dei de cara com meu pai, que estava estupefato.

–- Se controle, filha! – ele disse.

Senti vontade de rir.

Me controlar.

Certo.

Eu havia controlado minha dieta, meu corpo, meu cabelo, minha pele, minha língua. Mas não conseguia controlar a mim mesma.

–- Vai se fuder – eu disse.

Eu poderia ter batido nele também. E vociferado e chutado o saco dele. Mas eu só subi as escadas e me sentei na cama.

Agora que a raiva havia sido solta, ela não ia voltar tão cedo.

E eu estava me sentindo vazia.

Tentei chorar. Ia ser muito bom mesmo. Mas eu não consegui. Eu tentei e tentei. Assassinei-me verbalmente, mas não saiu uma única lágrima. Será que a minha última cirurgia havia secado todas elas? Isso não estava nos efeitos colaterais...

Eu bati as mãos na cama, de frustração.

Eu não consegui ganhar o concurso.

Não consegui me controlar.

Não consegui nem chorar.

Era uma inútil.

Vi a empregada no corredor. Ela pôs a cabeça pra dentro, e perguntou:

–- Precisa de alguma coisa?

–- Preciso que você saia! – eu gritei. Levantei-me e bati a porta, alguns segundos depois que ela retirou a cabeça do batente.

Eu me virei. Andei pelo quarto, furiosa comigo mesmo e com todos à minha volta, e bati as mãos na porta do closet. Eu virei o rosto para a janela.

Uma mulher estava me encarando.

Ela era magra, muito magra. Tinha cabelos cor de cobre. Olhos verdes azulados. Uma expressão de frustração. Vestia uma calça jeans chique, uma blusa rosa, uma sapatilha da mesma cor e um cardigã bege. O nariz dela era perfeito, bem moldado e redondamente bonitinho. Os lábios tinham um tom de rosa. A pele era bronzeada.

Aquela não era eu. Não podia ser eu.

De repente, aquela mulher se despedaçou. Pedaços dela voaram em diferentes direções. À noite me encarou em seu lugar. Eu arfei. Uma pedra estava no chão, perto da janela.

Eu me sentei no chão.

Meus lábios tremeram.

Eu queria chorar, e ainda não conseguia.

Gritei. Estendi o braço e peguei a pedra. Levantei-me, e a mulher voltou a me encarar. Dessa vez, ela tinha uma pedra nas mãos, e lábios trêmulos. Eu levantei o braço, e ela também. Eu joguei a pedra, e a pedra da mulher veio em minha direção.

A mulher estilhaçou-se novamente. Os pedaços que restaram dela se partiram e cintilaram um pouco noite afora, depois despareceram na escuridão.

Era o que eu queria fazer.

Era o que eu havia feito comigo mesma.

Eu estava em cacos.

Por nada.


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Notas finais do capítulo

Essa é uma das melhores personagens que eu já criei, se me permitem dizer. Adoro a Vanessa, e adoro mais ainda poder mostrar todos os ângulos dela. Como os outros vêem ela, como ela se vê, com as competidoras a vêem...



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