The Untouchable Family escrita por Isadora Nardes


Capítulo 2
Vinicius Mortnyr




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Após terminar de escrever o relatório que o Sr. Krastburn fez da morte de Amelia, eu voltei para a sala de interrogatório. Murilo tinha razão; o Sr. Krastburn já havia se recomposto. Agora, brincava com um fio solto em seu moletom cinza.

Estava frio. Eu senti o ar cortar minha blusa de lã enquanto me sentava. Eu estendi a foto de Vinicius, nauseando-me com aquela cena.

Vinicius Mortnyr – 13 anos – namorando – sem filhos – morto por espancamento.

–- Sr. Krastburn – eu chamei Aurélio, que parecia estar totalmente alheio a tudo. Ele levantou os olhos, observou a foto, deu de ombros e disse:

–- O Viadinho. Difícil de matar, mas foi legal. Oxe, aquele filhinho de mamãe só tinha pose de machão. Um covarde total se quer saber. Haha, foi legal saber que ele não ia espancar ninguém, o imbecil.

Eu encarei o Sr. Krastburn. Como ele podia sentir tanto prazer em tirar uma vida dessa maneira?

–- Por que o chama de “viadinho”? – eu perguntei. Vi os lábios de Aurélio tremerem novamente. Ele lutava com uma lembrança, parecia.

–- Porque Gabriel me chamava assim.

***

Estava frio. Aurélio estava com as mãos inquietas enfiadas nos bolsos. Olhava para as árvores – para o topo delas, cada vez mais alto. Agora, não temia olhar para o céu. Esse Deus do qual eles tanto falavam... Ele não existia.

“Eu não preciso abaixar a cabeça”, Aurélio pensou, com satisfação, “pra nenhum filho da puta”.

–- Olha lá! – Aurélio reconheceu a voz de Gabriel, ao longe. – O viadinho!

Ouviu risadas. Não respondeu. Ignorou aqueles imbecis. Não precisava olhar, nem falar com eles. Era melhor do que aquilo.

–- Viadinho, viadinho! – ouviu vozes em coro. Aproximando-se. Irritava-o, mas ele apenas continuou ignorando.

De repente, pareciam mais próximas. Ele sentiu algo bater em seu pé, e ele caiu. O asfalto molhado ralhou-lhe o rosto e as mãos.Ele sentiu a respiração vacilar.

–- Sabia que viadinho cai fácil? – ouviu a voz de Gabriel perto de si.

***

Eu comprimi os lábios com o relatório dele. Teríamos de confirmar depois – ir atrás de testemunhas, testemunhas oculares, provas. Mas parecia-me bem verdadeiro. Parecia que a dor era real.

Umedeci os lábios. Não; ele era um monstro. A dor dele... Não era remorso. E o que ele fez com aquelas pessoas... Foi uma crueldade muito grande.

–- Conte-me os detalhes da morte do Sr. Mortnyr, Sr. Krastburn. – eu disse.

–- Hm... Eu o levei pra uma praça. Essa praça, St. Mônica. Estava de noite, era um bairro bem calmo. Ele nem gritou. Viados não gritam, haha. Bom, eu peguei esse galho de árvore e... Paum! Na barriga dele – o Sr. Krastburn fez o movimento como se acertasse alguém com um pedaço de madeira. – Depois nas costas e na perna, por último na cabeça. Queria que ele sofresse, e muito.

–- Por quê?

–- Por que Gabriel me fez sofrer, dããã.

–- Relate.

***

Aurélio sentiu algo em suas costas. Algo duro e pesado; concluiu que era um pedaço de madeira. Depois, sentiu a pancada de novo, mas em seu estômago. E elas continuaram, em qualquer lugar e em todo lugar.

A cada intervalo de dois segundos, Aurélio tentava se levantar, sem sucesso.

Quando aquela dor toda acabou, ele ficou encolhido, na ponta da rua, xingando baixinho e se contorcendo. Abriu levemente os olhos e enxergou a placa da praça: St. Mônica.

Ele grunhiu, e depois de dois minutos conseguiu se apoiar nos braços, e obrigou suas pernas a aguentarem seu peso. Apoiou-se na placa da praça e sentiu as pernas tremendo.

Uma dor terrível tomava conta de seu corpo. Não precisava de diploma universitário para saber que tivera uma hemorragia interna em algum lugar. Engoliu em seco, e deu um passo. Doeu. Mais outro, e esse doeu mais ainda. E cada passo doeu mais que o anterior, mas ele continuou andando, com lágrimas estúpidas brotando nos olhos.

***

Eu fitei o Sr. Krastburn. Ele matara um garoto de 13 anos por que seu irmão o espancara anos atrás?

Eu limpei a garganta. Vi uma mecha de meu cabelo cair do coque, mas apenas fiquei olhando-o balançar de acordo com a mudança do ar condicionado. Levantei os olhos para Aurélio novamente.

Ele me fitava, com raiva. De repente, eu comecei a contar os anos que ele ficaria na prisão, se conseguíssemos prendê-lo por todos os crimes. Quatro anos por cada sequestro, o que daria... 20 anos. Vinte e cinco anos por cada assassinato é um total de... 125 anos. 125, mais 20...

–- 145 anos – eu disse, alto.

–- Ah, sim. Perpétua – ele disse, dando de ombros. Aquele detalhe irritou-me profundamente. Como ele podia dar de ombros numa situação como aquela?

–- Você nem tem medo? – eu perguntei, apática.

–- Medo?

–- É. Medo de ir pra cadeia.

Ele deu de ombros.

–- É só mais um lugar, ora. Se esse povo besta acha que matar quem merece é crime... O que eu posso fazer?

–- “Povo besta”? – perguntei.

–- Sim. Vocês se acham tão no direito de julgar todo mundo, e nem tem base moral pra isso. Nem filosofam um pouco sobre se as pessoas merecem ou não serem mortas. Então, eu resolvi fazer isso.

Eu desviei os olhos. Agora, quem precisava se acalmar era eu.

Respirei fundo e voltei meu olhar para ele. Eu disse, numa voz uniforme:

–- Relate a morte de Vinicius.

***

Vinicius sentia dor em todos os lugares de seu corpo.

Não tentava pensar quem era aquele cara, simplesmente tentava correr. Mas não havia um segundo em que a dor parasse. Ele grunhia, e tentava gritar, mas não conseguia.

O ar quase não o alcançava. Porque diabos ele? Fora porque havia pixado o muro da Igreja? Fora porque havia dado um fora em Terra Wydworn e em seu traseiro do tamanho de bolas de basquete?

O homem era uma máscara irreconhecível de amargura e dor.

Quase podia sentir suas artérias rompendo. Não conseguia nem abrir os olhos. Na calada da noite, não havia ninguém para ver seu sofrimento. Estava sozinho, com um estranho que o torturava e o xingava.

Quando a dor parou, Vinicius achou que poderia simplesmente se levantar e ir embora.

Estava redondamente enganado.

O homem o levantou pelo colarinho, e bateu seu corpo contra uma árvore. Vinicius sentiu o pouco ar que lhe restava escapar. O homem bateu em sua cabeça, que latejou, enquanto Vinicius sentia o sangue escorrendo por seu couro cabeludo.

–- Seu viadinho – ouviu a voz do homem. Não ousou abrir os olhos. – Vai mentir que me espancou agora, seu bichinha? Vai me chamar de “viadinho” agora?

Vinicius, por mais curioso que estivesse não respondeu, nem perguntou nada. Ouvia o vento batendo nas folhas, que caíam no chão. Ouvia a respiração do homem e sua própria respiração. Ouvia suas mãos tateando no tronco da árvore, procurando por uma ajuda que não veio.

–- Responda! – o homem berrou. Vinicius até acharia bom, com alguma esperança de que alguém pudesse ouvi-lo, mas estava ocupado demais procurando ar. – Responda pra mim! Vai me chamar de “viadinho”, Gabriel?

–- Não... Sou... Gabriel – Vinicius tentava dizer. O homem bateu Vinicius na árvore novamente. Doeu mais.

–- Mentiroso! Sua bichinha mentirosa! Vai me chamar de “viadinho” de novo?

–- Não...

–- Hã?

–-... Não sou Gabriel...

–- Argh!

O homem desistiu de bater Vinicius na árvore, e jogou-o no chão.

–- Você é um covarde! – Vinicius sentiu o cuspe do homem em seu rosto. – Um covarde! Você é uma bichinha covarde, Gabriel. Uma bichinha covarde!

Vinicius grunhiu. Estava sendo humilhado porque outra pessoa chamara aquele homem de “viado”?

–- Seu... Viadinho – o homem disse, por fim. Vinicius sentiu uma grande pancada na cabeça, e depois, mais nada.

***

Aquela narração perturbadora, detalhista, soturna e com uma ponta de satisfação do Sr. Krastburn deixou-me fora de órbita. Eu não falei nada quando recolhi meu fichário pela segunda vez e saí da sala.

Passei pela sala antecedente da sala de interrogatório e continuei andando pelo corredor. As sombras de pessoas que passavam por mim nada eram a não ser mais vítimas do ódio de alguém.

As luzes do corredor precisavam ser trocadas, pois piscavam freneticamente, como que em uma crise de epilepsia. Passei por elas direto, assim como passei direto pela sala de espera, onde a Sra.Krastburn, cujo primeiro nome era Shirley, e sua filha, Carrie, aguardavam ansiosas. Era bastante grosseria ignorar a esposa de um psicopata em decadência, mas eu o fiz, sem nem perceber.

A luz fria do banheiro me recebeu com uma satisfação inesperada, assim como a solidão que eu aguardava.

(...) não se deixe abalar. Continue firme.

Eu encarei meu reflexo no espelho. Eu era uma mulher bem sem-graça, com uma aparência bem sem-graça, que vestia roupas sem-graça e falava coisas sem-graça. Por que, então, no meio de toda a minha sem gracisse, eu estava tão perturbada?

Eu sempre fora bastante rígida, sem nenhuma pitada de fragilidade, mas eu nunca havia ouvido algo tão estranho. Na faculdade, o estudo dos casos não me preparou pra ouvir aquilo. Murilo não havia me preparado pra aquilo. A escola jamais poderá ensinar alguém a ser forte de alma.

Antes de continuar pensando na minha sem gracisse, minhas mãos automaticamente apertaram a torneira, e se firmaram em concha, catando água e jogando em meu rosto. Fora algo completamente involuntário.

Xingando baixinho, eu arranquei duas folhas de papel toalha da máquina ao meu lado. Odiava essas reações inesperadas; meu subconsciente esquecera que eu estava totalmente maquiada?

Ah, eu ia ficar parecendo a Taylor Momsem!

Retirei a maquiagem escorrida antes que ela escorresse mais, e consegui secar a água antes que fizesse mais estrago. No final, ficou apresentável o suficiente para eu não parecer uma menininha ridícula e irracional que não controla as próprias mãos.

Quando eu abri a porta do banheiro, trombei com a esposa do Sr.Krastburn Ela pareceu surpresa em me ver, mas eu a contornei e driblei sua filha, voltando para o corredor com luzes epilépticas.

Passei por ele, apertando os olhos, e a antessala de interrogatório me recebeu com as indagações e protestos de meus colegas. Eu os ignorei totalmente, incluindo Murilo, e voltei a abrir a porta da sala de interrogatório, que rangeu novamente.

Puxei a cadeira e sentei, descansando as costas, numa posição curvada. Quando eu me tornara assim tão indiferente? Fiquei surpresa comigo mesma. Normalmente, eu faria as perguntas e sairia, depois voltaria sozinha pra casa, comeria alguma coisa sozinha, dormiria sozinha, acordaria sozinha, e depois tudo de novo.

Mas eu senti uma curiosidade tremenda pela psicopatia daquele homem.

Eu fitei o Sr.Krastburn Em seus 43 anos, leves sombras de rugas começavam a aparecer. A barba desalinhada não tinha contraste com sua camisa cinza uniforme, nem com sua calça jeans gasta.

Eu limpei a garganta, lembrando a mim mesma de interrogá-lo, e sentei ereta. Tirei a foto da terceira vítima do fichário, e estendi-a na mesa.


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