The Untouchable Family escrita por Isadora Nardes


Capítulo 1
Amelia Wornswood


Notas iniciais do capítulo

Parte 1 O interrogatório A crença em uma fonte sobrenatural do mal não é necessária. O homem, por si só, é capaz de toda maldade. - Joseph Conrad -



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Eu abri a porta de plástico, que rangeu pelo chão, cortando o silêncio supostamente perpétuo que pairava na sala. A sala de interrogatório tinha paredes pintadas de bege-claro, e um chão de lajotas cinza pontilhadas de preto. Dei alguns passos. O Sr. Krastburn estava relaxado, com a cabeça para baixo. Assim que a porta rangeu, ele levantou o rosto.

A primeira coisa que eu notei em seu rosto foram os olhos. Azuis. Um azul inebriante, com fios do que eu jurei ser prateado. Mas não era só a cor que me intrigava – ele olhou direto para mim. Seus olhos eram perfurantes. Pareciam abrir um buraco na minha consciência, fazendo-me sentir invadida. Eu abaixei os olhos. O pouco que eu consegui capturar de seu rosto depois disso mostrava um nariz arredondado e não muito grande, com uma boca que era uma linha marrom clara e fina no rosto. Sua barba por fazer estava despenteada, mas nem por isso ele parecia menos eletrizante. Eu puxei a cadeira de plástico que jazia, intocada, a frente da mesa. Sentei-me. Eu lembrei-me do que Murilo havia me dito:

–- Aurélio Krastburn. Ele vai tentar te atingir, Martha. Não se deixe intimidar. Ele vai usar suas armas narcisistas; não se deixe abalar. Continue firme. Ele cortará você no meio da frase, mas não quero que fique desorientada por conta disso. Ele se mostrará sádico. Vai agir como se tudo aquilo fosse muito normal. Apesar disso, se você perguntar os motivos, ele vai se abalar. Quando terminar com cada uma das vítimas, você volta pra cá. Quando você voltar a falar com ele, ele já vai estar composto novamente. Cuidado. A melhor arma que ele tem é a ironia, o sarcasmo, a arte de achar-se muito inteligente.

O Sr.Krastburn pareceu me avaliar com os olhos. Eu coloquei a pasta que estava na minha mão na mesa. Notei que minhas mãos estavam suadas – não entendi por que. Acho que ele percebeu. Eu fingi que estava tudo bem.

Abri a pasta, novamente vendo a imagem que embrulharia o estômago de qualquer um. Acima da foto, havia a ficha:

Amelia Wornswood – 37 anos – casada –dois filhos – morta por estrangulamento.

Ele examinou a foto, com indiferença.

–- Sr.Krastburn – eu disse, estendendo a foto e virando-a para ele. – O senhor sabe por que está aqui?

–- Hm... – ele pareceu pensar. – Não sei... Ah, pera... Não, não sei mesmo.

–- Por causa dela – eu apontei para a foto. – Amelia Wornswood.

–- Eu sei ler – o Sr. Krastburn interrompeu. Ele cortará você no meio da frase.

–- E – eu continuei. – Por causa de Vinicius Mortnyr, Pedro Castelloneur, Delilah Barques, e Priscila Artner – eu fui estendendo as fotos enquanto falava. Ele olhou-as com indiferença, como se visse aquilo todo dia, depois arqueou as sobrancelhas, como se lembrasse de algo.

–- Ah – ele disse. – Os assassinatos.

–- O senhor está confessando? – eu perguntei.

–- Dããã – ele fez uma careta, como se aquilo fosse óbvio. – Como se não estivesse na cara.

–- Precisamos de detalhes para incriminá-lo, Sr. Krastburn.

–- Detalhes? Hm, a Amorinha foi bem fácil de matar. Gorda, lenta. Nem correu... Coitada.

–- “Amorinha”? – eu perguntei.

–- Sim. É eu dei apelidos, sabe? Foram meus bichinhos de estimação por uma semana – ele deu de ombros.

Ele vai agir como se tudo aquilo fosse muito normal.

–- “Bichinhos de estimação”? – eu indaguei.

–- É – ele disse, como se fosse óbvio, novamente. – Ah, vai dizer que vocês não perceberam que ela ficou um tempo no porão?

–- No porão – eu murmurei. – O que houve no porão, Sr. Krastburn?

–- Eu enfiei aquelas amoras na garganta dela – ele disse, com indiferença. – Ela conseguiu cuspir, a vadia. Com o pescoço amarrado, ela conseguiu cuspir! Ah, ela pensava que eu ia deixar assim. Humpf, nem fudendo. Eu apertei as mãos no pescoço dela – ele arqueou as mãos como se elas estivessem no pescoço de Amelia -- Ela ficou vermelha, depois roxa, como uma amora. Hahaha! Por isso o nome Amorinha, entendeu? Bom. Depois, ela ficou pálida, e foi só. Eu a deixei lá, onde vocês acharam.

***

Amelia sufocava. Sentia o gosto das amoras em sua boca. A garganta dela as apertava, e o líquido escorria, para fora e para dentro. Ela sentia seu oxigênio escapando, ao mesmo tempo em que tentava empurrar as amoras pra fora da boca.

–- Isso – o homem de barba ria – Haha, isso.

Sentiu as amoras saírem, uma a uma, e o rosto do homem foi ficando furioso. Ela sentiu a si mesma botar pra fora o que havia comido horas antes – o vômito passou pela sua garganta, fazendo questão de deixar rastro, depois ela viu que seu almoço jazia no chão.

Sentiu o ar entrar. O gosto de vômito estava ali, misturado com o de amoras, mas ela não se importava. O ar entrava, e isso era o bastante. Por um momento, pensou em gritar ou correr.

Porém, sentiu novamente o ar escapando-lhe. Sentiu dedos em seu pescoço. Estendeu inutilmente as mãos, para tentar afastá-los, mas eles continuavam ali.

–- Vadia – o homem dizia. Tudo o que via dele era seus olhos azuis escuros e prateados. – Então, você quer cuspir? Você cuspiu seu filho, como se fosse veneno na sua boca!

–- Ar... -- Amelia sufocava. – Ar...

–- Ah, você quer ar? – o homem perguntava. – Seu filho ficava sem ar de tanto soluçar atrás da cama, e você não fazia nada, sua vadia! Agora vai ficar sem ar.

Ela se debatia, mas parou. Era inútil. Estava cansada, e seus membros nem se moviam mais. Sentiu o sangue subir, depois descer, depois não sentiu mais nada. O ar se fora totalmente.

Ela sentiu-se fria por um momento, e, num último lampejo de visão, viu a satisfação do homem. Sua visão escureceu. Não sentia nada em nenhum lugar. Depois, ouviu-o dize, com certo sarcasmo:

–- Amoras.

***

–- Sr. Krastburn, você sentiu algo quando a viu sufocar?

–- Claro – ele disse. – Foi ótimo. Simplesmente ótimo. Eu era... O rei do mundo. Não, rei não; eu era um deus. Isso, eu era um deus. Ela estava ali, e eu podia fazer o que quisesse com ela. Eu decidi que ela sofreria, e foi ótimo.

Ele se mostrará sádico.

–- Por quê? – eu perguntei.

–- Por que o que?

–- Por que o senhor a fez sofrer?

–- Ela mereceu.

–- O que ela fez para merecer?

–- Foi quem ela é. Isso basta, pra mim.

–- E quem ela era?

O Sr. Krastburn mostrou-se inquieto, pela primeira vez desde que eu entrara. Umedeceu os lábios, e ficou encarando a paisagem para fora da janela. Eu segui seu olhar. O céu estava rosa, e uma araucária era a única árvore que se podia ver pela janela. Era fim de tarde, por isso os únicos barulhos que se faziam ouvir naquele subúrbio eram os pássaros cantarolando levemente nas árvores.

–- O filho dela... – o Sr.Krastburn continuou, devagar. – Ela... Ela era diferente com ele. Ela o amava menos. O tratava como se ele não merecesse nada.

Ele falava de uma maneira que eu jamais havia o ouvido falar. Era quase... Humano. Tinha um toque de compaixão.

–- E por que o senhor se importava? – eu perguntei.

–- Pois foi dessa maneira que a vadia da minha mãe me tratou – ele explodiu. Perdeu a compostura. Bateu as mãos na mesa, e me encarou, com uma voz que parecia justificar tudo o que ele havia feito. – Achando sempre que Gabriel era... Melhor. Mais digno. Uma ova. Pro inferno todos eles.

–- Relate – eu ordenei. Ele começou.

***

Aurélio estava sentado, encolhido, com as mãos inquietas no colo. Olhava para baixo. Estava curvado. Seus olhos não se atreviam a levantar para encarar a mãe.

Ele não via uma luz projetando-se sobre ele, como esperava. Uma sombra – a sombra de sua mãe – a cortava. Cortava sua luz, sua esperança, e projetava o que, depois, viria a ser a causa de todo aquele massacre.

Mas ele não sabia, ainda. Nada sabia. Era só uma criaturinha magra e baixa ouvindo gritos e sermões, sendo castigado, sem saber o que havia feito de errado. Apenas ouvia. Por quê? Por que ela gritava? Por que apenas com ele? Seu irmão o observava, à distância. Parecia rir. Era uma coisa que não o irritava; o entristecia. Por que ele ria?

Ele rangeu os dentes. Os gritos de sua mãe aumentavam.

–- Garoto, você nunca faz nada certo! Por que você não podia ser mais como Gabriel?

–- Por que eu tenho que ser mais como Gabriel? – ele murmurou, sem entender. Um soluço formava-se na sua garganta, e entrecortou sua respiração.

–- Moleque! – a mãe levantou o rosto de Aurélio, com um movimento brusco. – Para de chorar, parece uma marica! Por que você tem que ser como Gabriel? Por que ele foi para a olimpíada de matemática, você não! Por que ele tira boas notas, você não! Por que não foi ele que fez seu pai ir embora, foi você! Por que não foi ele que quebrou a janela da Matilde, foi você!

O garoto sentiu mais soluços virem. Seus olhos arderam. Por que ela estava dizendo aquilo?

Uma lágrima escorreu pelo seu rosto quente. Sua mãe endireitou as costas, e olhou-o como se não pudesse acreditar que ele estava chorando. Chorando! Como ele ousava? Como ousava chorar em frente a seu irmão?

–- Ah, chorando! Meu filho chorando! Meu filho mais velho, chorando! Ah! Você é um aborto, mesmo. Sabia que eu nunca deveria ter tido você? Eu enfrentei quatro horas de parto, amamentei durante dois anos, só pra sair essa... Coisa! – a mãe fez um movimento repentino com a mão, como se Aurélio fosse insignificante. – Você não é nada, comparado a ele. Nada.

Aurélio não parava de chorar. Não conseguia, não queria, sei lá; a questão é que as lágrimas não paravam de vir. Os soluços o faziam perder o ar, que ele lutava fervorosamente para recuperar.

Ah! Por que ela o odiava tanto? Por quê? Ah, porque ele tinha que ser tão horrível? Tão fracassado? Por quê? Por que ele não podia ser como Gabriel? Inteligente, o favorito...

Aurélio era tão excluído! Ninguém gostava dele. Ele chegava à Igreja, e as pessoas o mediam de cima a baixo. Ele chegava à escola, as pessoas riam. Ele chegava à colônia de férias, as pessoas se afastavam.

“Ninguém” Aurélio pensou, com tristeza, “Ninguém me quer”.

A mãe continuava falando, mas Aurélio não ouvia. Não queria ouvir. Nem olhava mais pra mãe. Olhava pra baixo, onde era seu lugar, onde ele deveria estar, para onde ele deveria olhar. Não era digno de olhar pra cima; não era digno de olhar para sua mãe, ou para seu irmão, nem para Deus. Na Igreja, pregavam que Deus amava a tudo e a todos; Aurélio não se sentia amado assim. Achava que nem era digno de ser amado por Deus; incrível, invencível, o criador do universo! Não, Aurélio não merecia ser amado por Ele; sentia-se renegado, e não culpava ninguém. Era um fracasso, uma renegação, um aborto, uma inutilidade.

–- Você me ouviu, moleque? – ouviu a mãe dizer, por fim. Aurélio, cansado de tudo e de todos, levantou a cabeça, com seus enormes olhos azuis (sem nenhum brilho, o que não é normal numa criança) fitando a mãe, e disse:

–- Sim, mamãe.

A mãe o observou. De repente, surgiu algo que parecia ser pena. Mas passou, e o olhar raivoso voltou a ela.

–- Você tem os olhos de seu pai – ela disse. – É um fraco, que nem ele.

Aurélio levantou-se. Não ficou parado. Ele correu – não podia mais ouvir aquilo. Não conseguia. Era muito doloroso – estava tudo na frente dele, mas ele não conseguia encarar.

–- Covarde – ouviu Gabriel murmurar, ao passar por ele.

Isso só o fez ficar mais triste. Mais lágrimas escorriam.

“Minha culpa” ele pensava.

Seus pés descalços batiam no chão. Enquanto corria, seus braços balançavam ao seu lado. Os gritos de sua mãe foram deixados para trás, mas não as lembranças. Elas voltavam com tudo.

As garotas, com seus vestidos rosa, azuis, verdes, brancos e amarelos, com renda, rindo dele. Os garotos, com suas pequenas camisetas sociais e seus sapatos engraxados, como se fossem adultos, riam também.

Todos riam dele.

“Minha culpa”.

Ele empurrou a porta do banheiro, e depois a empurrou de volta para fechá-la. Passou a chave. As mãos tremiam, e ele as colocou no rosto. Sentiu-as suadas, misturando-se com as lágrimas no rosto.

“Minha culpa”.

Inclinou-se para a pia, abriu a torneira e jogou água no rosto. Ela misturou-se com o suor de suas mãos e com suas lágrimas. Ele bufou. Os soluços diminuíam. As vozes em sua memória agora não lhe causavam tristeza, mas irritação. Ah, que estupidez.

“Minha culpa”, seu pensamento insistia.

Olhou-se no espelho. Seu nariz era um triângulo, porém era mais redondo na ponta. Seus dentes eram totalmente retos – uma coisa que não deixava a desejar nele. Seus olhos eram meio apertados, e suas íris azuis eram cintilantes, com um fundo um pouco prateado. As sobrancelhas pareciam ter sido feitas com giz de cera e régua, pois era uma linha reta e grossa um pouco acima das pálpebras. Sua franja era um pouco despenteada, mas seu cabelo loiro era reluzente. Sua pele inteira era opaca.

Ele sentiu os lábios tremerem.

“Não é minha culpa”, ele rebateu, para sua mente.

Não, não era culpa dele. O pai não havia ido embora por causa dele – havia ido embora por causa de sua mãe. Não a aguentava mais. “Uma mulher com manto de tempestade” [1].

“Não é minha culpa”.

As pessoas riam dele, mas isso não importava. Foda-se o que eles pensavam. Eram um bando de bastardos.

“Não é minha culpa. É culpa deles”.

Sim! A culpa era deles. Apenas deles.

***

Ele terá uma base moral que ele considera sólida na mente doentia dele.

Eu me levantei. Ele tremeu os lábios pálidos. Eu me permiti observar um pouco o rosto dele; sua barba era um pouco longa, mas ele não parecia o tipo terrorista; nem era assim que o perfilamos. Ele não parecia descuidado. Sua cabeça tinha bastante cabelo branco, despenteado. Ele era magro, baixo, atarracado. Porém, os olhos dele eram como espadas.

Ele parecia lutar contra algo que crescia dentro dele; dominante, espalhava-se por sua mente, devorava sua alma.

Eu afastei meus olhos dele e me levantei. Tínhamos o suficiente para prendê-lo pelo assassinato de Amelia. Mas ainda faltavam quatro vítimas.

[1] Citação do filme A Menina que Roubava Livros.


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