Nesperim - A Irmandade Fantasma escrita por L S Gabriel


Capítulo 9
Capítulo 8 - Criados para Matar




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A maior parte dos dias, senão eles todos, Bernardi se encontra no novo quarto com os olhos presos no livrinho instrutivo que Felix o presenteou. Perde-se em tantas coisas estranhas e bizarras, mas interessantes e fascinantes; claro que, como todos os livros, tem suas partes menos excitantes, ou até mesmo entediantes – as quais Bernardi opta deixar para ler em outra ocasião.

Precisaria lutar contra a memória para lembrar-se de tudo que já leu. Primeiro acompanhou um pouco de história, especialmente como alguns Espectros participaram ou influenciaram em prol alguns momentos históricos. Rogue é um deles – um Espectro diabólico que arrastou uma horrorosa e temida fama pelo mundo. Apelidado, por algum motivo remoto, de Bicho-papão, ele torturava os Mortais através de pesadelos emparelhados à realidade, abordando os maiores pavores das vítimas. Certamente matá-las assim era um prazer pessoal, pois nunca devorava as vidas antes de levar as pessoas vitimadas à dolorosa loucura, a implorar a morte e até mesmo ao suicídio. Outro grande ícone a ser lembrado é Azillian – ou Espírito da Guerra, segundo o livrinho. Um Espectro extremamente ganancioso que possuía corpos, ou corrompia mentes, ou executava quaisquer atrocidades furtivas desde que conseguisse iniciar uma guerra entre os homens; e diversas marcadas no passado ele provocou. E enquanto as batalhas se desenrolavam e os corpos caiam, Azillian emergia e, incógnito, roubava as vidas fugitivas dos cadáveres estirados no campo de batalha.

Houve muitos outros Espectros tão diabólicos quanto eles que vagaram entre os vivos – e ainda há –, mas Bernardi não se lembrará deles detalhadamente, embora tenha notado bem que os Espectros já estruturam diversos planos genialmente ardilosos e místicos, mas todos tinham o mesmo objetivo principal: devorar ou roubar vidas.

O porquê, já não bem recordado por Bernardi, veio algumas páginas à frente, as quais o ragazzo caiu saltado, pois os arrepios constantes não o permitiram a continuar ler mais histórias macabras. Deparara-se com outro capítulo sobre os Espectros – a natureza deles. Seres mortos, por outro lado às regras de vossas existências assemelham-se às dos seres-vivos. Assim como qualquer ser vivo faz com seus alimentos, os Espectros caçam e devoram vidas para saciar uma fome infinita. As vitalidades digeridas lhe dão forças para evoluir e também os concede forças para continuarem vagando neste mundo por mais um tempo. Do contrário, um Espectro desnutrido há um número considerável de dias, perde as forças, e seu corpo – chamado pelo livrinho de Carapaça – sofre falecimento por falta de vitalidade, o que concederia a condenada alma que o habita, liberdade para finalmente seguir o caminho pós-morte. Como se estivesse se livrado de uma maldição.

A pesquisa termina nos meados da folha seguinte, porém, sob ela destaca-se uma nota aparentemente escrita à mão, e a cor mais vigorosa das letras revela que não na mesma data da pesquisa.

Em algumas ocasiões alguns Espectros roubaram vidas, mas não devoraram todas. Usaram as restantes para executar Rituais diabólicos. Raramente pode-se presenciar um fenômeno assim, pois não é comum Espectros irem contra sua natureza... Mas não quer dizer que não possa acontecer. Cuidado.

O ragazzo recuperou-se rapidamente dos arrepios para então virar a página. Posteriormente, deparou-se coma continuação descrevendo o processo evolutivo dos Espectros – também semelhante ao de uma espécie viva. São chamados de Recém-Nascido nos primeiros dias de existência; Médios quando já têm crescido por ter devorado algumas vidas; Maduros quando evoluem ainda mais; e Colossais que, diferentemente, não tem nenhuma descrição alguma quanto essa etapa... A não ser outra nota no rodapé da página:

O mais alto nível evolutivo já alcançado por um Espectro, o que não quer dizer que seja o último. Então, novamente, cuidado.

Nesta madrugada, ele ocupa o tempo que deveria usar para vencer a insônia, folheando mais páginas. Agora, acompanha os relatos dos Servos da Morte mais aclamados durante os séculos. A brutal perseguição da Santa-Inquisição contra eles; a triste história de alguns que se sujeitaram a ela para proteger os Mortais, e foram julgados, acusados e queimados diante os maravilhados olhos das pessoas que eles tanto zelavam. Adiante, lê sobre a relação espirituosa entre os Servos e o próprio Anjo da Morte. Lê sobre os ícones quando o assunto é os pioneiros das Artes Sombrias: os fundadores da primeira Irmandade da Nesperim – sim, aquele grupo citado no Conto da Origem dos Fantasmas. Aprende sobre a natureza dos Reencarnados através de umas trinta páginas realmente exaustivas, mas mais que interessantes. Enquanto acompanha-as, ele vem sofrendo inúmeros arrepios de fascínio – por exemplo, ao saber que a anatomia dos anjos e a dos Reencarnados é quase que idêntica da cabeça aos pés. Não estão “vivos”, se comparados com os requisitos que mantém os Mortais vivos; portanto, não são frágeis, física e psiquicamente ditos. Não sucumbem aos requisitos como: sono, exaustão precoce, às doenças...

Nem sono e nem fome?

Bernardi entende o mistério por trás dessa insônia que vinha durando há mais noites que seu corpo aguentaria normalmente. E também dessa estrondosa falta de apetite; desde que chegou, não sentira a fome apertar seu estomago uma vez sequer. Subia à cozinha e servia-se, porém apenas por tédio, e não por apetite, quanto menos fome. Certamente não acreditaria – assim como não acreditaria em nada do que leu –, se não tivesse comprovado na própria pele.

Você realmente sabe o que são Rituais? Repete mentalmente o trecho lido, receando quanto a entrar no capítulo. Inicialmente, encara o que virá como algo bizarro ou maligno – como as pessoas são acostumadas a imaginar ao ouvir essa palavra. Contudo, sua visão vem mudando ao descobrir a verdade. Os Rituais foram – e, ao que tudo indica, ainda são – cerimônias milenares criadas pelos anjos para iniciar um grande evento mágico. Dependendo ao que pretendiam provocar, usavam diversos atributos: desde danças a sacrifícios. E por causa de alguns anjos caídos, muitos Mortais presenciaram o poder dos Rituais. E, o mais impressionante, é que alguns Mortais tiveram a genialidade para aprender os conceitos e repassar alguns deles, como a clarividência, persuasão, ilusionismo, segredos para ampliar a metalurgia, simbologia, alquimia, medicina... Outros usaram os Rituais de péssimas formas ou objetivos, portanto muitos Mortais repudiam o nome ritual pelo o que muitos já fizeram diabolicamente com eles.

Inusitadamente, Bernardi espia o relógio enganchado à parede e acompanha os ponteiros chegarem às seis e meia da manhã. Até então não descansara nem por um segundo. Talvez não seja uma má ideia parar, mesmo não sofrendo o mínimo de sonolência ou cansaço. Aceita o quão crucial é confortar a mente um pouco na normalidade de um cochilo inocente. Finalmente, afastas as mãos do livrinho atirando-o na cabeceira, e afunda o rosto no travesseiro, repousando as vistas na escuridão dos olhos pregados.

Antes dos ponteiros encontrarem às dez horas, alguém faz presença no quarto além de Bernardi, cujo tem acordado do frágil sono. Nervan veio até ele, não apenas para uma visita cordial – claro que não –, e sim convocá-lo para o primeiro dia da árdua preparação e treinamento. Sem muitas palavras, ambos partem pelos corredores até o espaçoso parlamento, arena... sei lá.

– Um Servo da Morte tem que ser extremamente preparado, não só para enfrentar os ardilosos Espectros, mas para qualquer situação. Há várias coisas para aprender. Porém começaremos pelo essencial: os primeiros passos como uma criatura das sombras.

– Como assim primeiros passos? – indaga Bernardi curioso.

– Ora, o princípio antes de você começar as Artes Sombrias. Os dotes que você inconscientemente tem, no entanto não sabe como usar. É da natureza dos fantasmas, assim como respirar é a de um ser-vivo. Encare sua situação como a de um bebe prestes a aprender a andar. Observe bem.

O rapaz encara a extremidade mais longínqua e dispara galopante, não demorando nada, numa velocidade inumana, a estar prestes a chocar-se feio contra a parede do parlamento. No entanto, uma escuridão – subitamente manchando a parede ao milésimo que o rapaz a tocou – devora imediatamente o corpo dele. E antes que Bernardi consiga correr os olhos por todo o ambiente atrás dele, Nervan emerge do chão, obscuramente enevoado, brotando de um punhado de sombras. Ele consegue ser rápido o bastante para assistir a boca e os olhos de Bernardi escancarando de perplexidade.

– Você, você, você... – engasga encontrando a fala –, estava lá atravessando uma parede e,agora, está aqui, como se nunca tivesse saído.

– Como é fantástico desmanchar-se em sombras e mover-se como tal. Mas sabe o que é tão excitante quanto?! A primeira vez – ele comenta surpreendendo o rosto do ragazzo sorridente de fascínio. – Então por que você não tenta, hã?!

O sorriso subitamente desmancha-se de nervosismo.

Nervan pousa a mão contra as costas do ragazzo, empurrando-o gentilmente dois passos adiante.

Tentar repetir a proeza de Nervan não é tão simples quanto olhar. Bernardi está estagnado, sem saber o que e como fazer. Constantemente flagra seus olhos espiando sobre os ombros, encontrando os espectadores olhos de Nervan, que, não deixam aparentar, porém estão entediados de esperar uma atitude. Até que então ele decide se pronunciar – será que é porque vira as primeiras gotas frias de suor fugindo pela face pensativa do aprendiz?

– O que houve? Tente não ficar nervoso.

– Eu... não sei exatamente o que fazer e nem como começar – confessa ele mal conseguindo entreolhar Nervan firmemente.

– Mas é claro que você não sabe; afinal nunca fez isso antes. Lembra quando eu disse que é como se estivesse reaprendendo a andar?! Você não sabe detalhadamente como consegue caminhar, mesmo assim o faz perfeitamente... Isso também vale às sombras. A resposta é: instinto.

– Ainda não entendi exatamente o que devo fazer.

– Você entende sim! – retruca Nervan confiante, aproximando-se rapidamente. Ele pinça o antebraço de Bernardi e, consequentemente, assiste a pele apertada enegrecer-se assustadoramente. – Não adianta mentir ou negar. Sente, não é mesmo?!... É indescritível a sensação, porém, é um frenesi. Um pavor que ela acabe consumindo-o junto aos seus medos, atiçando e devorando seus nervos. Não tema. Se entregue a ela e ponha-a para fora.

Cabisbaixo, o rosto amedrontado do ragazzo não encontra maneira de esconder que essa medonha explicação não passa da pura verdade. Infelizmente. Ele prega os olhos buscando afogar-se em concentração, respirando e suspirando, calmamente, sem parar – como se assim acalmasse a alma diante todos os seus medos, até os mais profundos. E, quando o mundo à sua volta realmente parece que desapareceu, ele surpreende algo vivo escorrendo por seus braços, deslizando e atravessando variados pontos do seu corpo, à medida que alastra-se e escolhe os lugares que irá atiçar mais arrepios. Finalmente Bernardi espia o que tanto lhe rodeia – assim como desejado, seu corpo está parcialmente esfumaçando. As sombras querem terminar de possuí-lo, mas hesitam como se um sentimento barrasse-as – o nervosismo de Bernardi.

– Continue. Você está quase lá – encoraja-o Nervan com franqueza.

Então ele permite-se soltar o ar preso. Os ombros parecem despencar alguns centímetros. Gradualmente termina de sombrear-se, entretanto Bernardi ainda sente-se sólido. Seus olhos espiam Nervan sobre os ombros, que o encara com aprovação, antes de indicar visualmente a parede e acenar que sim, sugerindo uma tentativa.

Ele entrega a atenção à parede mais próxima, ponderando os primeiros passos da corrida até ela. Ele reconsidera umas três vezes, mas logo... “um... dois... três”e dispara em passos largos, que logo o deixam a poucos centímetros da parede.Entretanto, Bernardi parece perder a velocidade.Seus pés derrapam hesitantes, porém tarde demais,porque... POOOOOOM...

Ele estoura contra a parede e desaba no chão, estirado – reconstituindo-se das sombras, que começam a evaporar. Morto nos primeiros segundos, até começar a gemer e retorcer-se como uma minhoca, enquanto xinga a parede com todos os palavrões já inventados pelo homem.

Entrementes Nervan mal aguenta continuar lutando para abafar as gargalhadas.

– Você acabou hesitando. Eu disse que não podia sentir medo – alega o rapaz contendo arduamente os risos.

Bernardi ainda permanece chafurdando-se, apertando fortemente a cabeça, resfolegando dolorosamente. Sinceramente, um comportamento excessivo, mesmo para uma batida forte... A menos que...

Apaga-se drasticamente o sorriso de Nervan, assim que Bernardi começa a urrar fortemente de dor. As lâmpadas tremeluzem e morrem enquanto, subitamente, as paredes e o teto soltam farelos e lascas, sofrendo rachaduras que saltam como veias latejantes, como se o lugar, de repente, estivesse entrando em falência. E está. Mas, por Deus, o parlamento pára de ser sacolejado. Revive-se a iluminação. As paredes voltam à aparência vigorosa como se há segundos não estivessem prestes a desabar. Ainda suspirando apavoradamente, agora, Bernardi se vê enganchado contra a parede, tendo o pescoço enforcado por Nervan enquanto a outra mão do próprio empurra o seu diafragma. Os dedos dele relutam em afrouxarem, levando a entender que estavam– e estão – prontos em matá-lo se preciso for.

– Essa passou perto. Muito perto – ele murmura apreensivo, permitindo que os pés do ragazzo toquem o chão. – Mais um pouco, só mais um pouco, e você teria matado esse lugar. Você deve aprender a ter controle.

– Eu sei, eu sei... Não diga como se eu quisesse que isso acontecesse. Não era da minha vontade, ok?! Aliás, nada que vem acontecendo vem sendo da minha vontade – resmunga Bernardi aproveitando o momento propício para dizer tudo o que vinha lhe incomodando. – Eu não pedi para morrer aquela noite. Muito menos pedi para reencarnar. Não pedi para ser um fantasma. E não pedi para ser um Servo da Morte.

– Mas aceitou ser um, então, mio caro, é dever seu conter-se. E se tivesse acontecido em público; ou melhor, e se acontecer? Tem ideia de quantas pessoas poderiam morrer se estivessem ao seu redor?... não?! Portanto pare de sentir pena de si próprio e choramingar como um bambino mimado, e aceite quem você é – ralha o Servo erguendo o tom de voz autoritário. O que fez a cabeça de Bernardi pender de vergonha.

– Eu... não mereço isso – ele murmura, observando as mãos tremularem de pavor. – Isso em mim não é uma benção... é uma maldição. Eu não sou forte, benigno ou virtuoso como você. Sou fraco, egoísta e covarde.

– Você é mais ao que se permite notar. Não posso deixá-lo sair da Irmandade enquanto não estiver seguro de seus atos. – Nervan estende a mão, da onde nasce um cálido foco de luz, continuamente flutuando acima. Posteriormente, sombrias materializadas cercam o alvo cintilante, cujo explode em mil cacos ao ser destroçado brutalmente. A chuva dos fragmentos luminosos acaba como um dramático desfecho ao que Nervan começa a dizer. – Fomos criados para matar, nunca se esqueça disso. Mas não os Mortais, e sim os Espectros. E então, o que me diz de tentar de novo?

Para a surpresa de Bernardi, Nervan tem acabado de convencê-lo a tentar novamente. Como aceitara? Boa pergunta.

Com o passar dos dias – e quem diria que – a batalha para acostumar-se às sombras perderia gradualmente à dificuldade. Claro, houve diversos contratempos, e sempre ferimentos em diversas partes do corpo causados por sombras hostis – por sorte Nervan sempre sabe como resolver esses casos, curando-o quase que “milagrosamente”. E também não se converter totalmente em sombras antes de alcançar a parede, e rebater contra a mesma, voltando atirado ao chão, resmungando azedamente de dor, foi visto quase que todos os dias. Novamente sempre fora socorrido por Nervan, que até então não conseguia mais segurar os risos. Contudo, acaba vendo-se exatamente como Nervan tinha dito – um bebe aprendendo os primeiros passos.

A prática leva à perfeição – discursa o Servo, sempre que em momentos oportunos. Em momentos que Bernardi se surpreende refletindo que, a cada dia, vem crescendo a leve sensação de naturalidade quanto a esses poderes.

Começa o amanhecer de um novo dia – o fim de mais uma madrugada cheia em que Nervan fez Bernardi esquecer, por momentos, como é estar em estado sólido. Quebrando o silêncio do corredor dos quartos através de leves resfôlegos, Bernardi caminha ao seu aposento, acompanhado pelo Servo, cujo não deve tê-lo deixado sozinho nem por um segundo – e nem parar de tagarelar o quanto é importante aprender mais e mais sobre as Artes Sombrias e “bla, bla, bla”. É tudo o que Bernardi consegue extrair das palavras, enquanto concorda automaticamente com o rosto distante.

Alcançam o quarto, e Bernardi mal precisa cruzar o batente para surpreender um montinho de papel sobre o criado-mudo. Estranho. Não estavam lá antes de saírem.

– O que será isso? – pergunta Nervan ladeado a porta.

Bernardi já tem se adiantado em saber, tomando as folhas em mãos.

– São mios novos documentos – responde folheando as páginas–, e uma cópia do contrato da minha matrícula escolar.

Mio babbo deve tê-los colocado aí. Certamente percebeu o como você está mais controlável. Bom, afinal de contas, talvez seja mesmo uma boa ideia conviver um pouco com as pessoas lá fora. Quem sabe isso o faça parar de evitar as daqui.

Inesperadamente, ao invés de curvar um sorriso arreganhado, que se conteve há dias, Bernardi permanece com o rosto insatisfeito, sibilando um som rouco com a garganta. – Não importa– queixa-se ele, acomodando-se na beirada da cama. – Não vai ser a mesma coisa sem a minha família. A falta que ela me faz é enorme. Irreparável. O pior de tudo é que eles estão lá, crendo na minha morte, e eu aqui... Eu queria tanto que eles soubessem a verdade, apartar a dor deles e a minha; poder entrar na minha casa, abraçá-lo se sorrir como se nada tivesse acontecido. Poder ter de volta a minha rotina chata, porém normal. Poder acordar atrasado todas as manhãs, e ouvir minha madre resmungar comigo por isso; ouvir mio babbo me cobrar sobre os estudos, e sorrir de orgulho ao saber que tudo vai bem; e Lauren, minha bambina, perguntar-me “como foi seu dia? Sabe como foi o mio? Posso pegar as moedas na sua gaveta e comprar balas?”... O que eu não daria para poder voltar no tempo e aproveitar melhor as nossas horas juntos; eram divertidas. As conversas. As histórias na hora do jantar. Nossos fins de semanas... nossos momentos felizes. Momentos os quais tantas vezes eu desprezei.

Nervan resolve intervir antes que o remorso do ragazzo não provoque nada além dos suspiros pesarosos.

– Você não é mais a mesma pessoa e não pertence mais àquela família. Sabe muito bem que eles te enxergaram como o desconhecido que, de certa forma, você é. Então, a não ser que encontre uma forma de se reaproximar deles como um desconhecido... – comenta Nervan levianamente.

– Um desconhecido?! – ele repete tendo a atenção roubada por um pensamento. Pensamento que gera outros. E quando Bernardi percebe, seus olhos começam a se arregalar e encher de um brilho esperançoso, graças ao plano que teve. – Você me deu uma ótima ideia. Tenho que ir à minha antiga casa – revela rapidamente, pondo-se de pé e saindo apressado do quarto.

– Bernardi. Bernardi, o que vai fazer?... – indaga Nervan ao segui-lo.

Ambos saem galopantes da sede. Antes de atravessarem toda a Praça dos Anjos Caídos, Bernardi já tem explicado parcialmente todo o plano ao Servo, que imediatamente passa a protestar quanto a ele.

– Esse plano é arriscado para você e a sua família – argumenta ele, tomando a frente e barrando a passagem de Bernardi.

– Por favor, Nervan – insiste ele relutando Inutilmente em passar pelos braços firmes do rapaz. Finalmente desiste, e resolve apelar com as palavras. – Eu prometo não envolvê-los de forma alguma na minha vida de Servo da Morte. Eles são importantes para mim – implora ele desesperado. –Porque não tenta se por no mio lugar?! Você pode acordar todos os dias e ter sua família perto de você. Eu não.

Estranhamente Nervan parece ter tomado isso como um insulto, pois ele lentamente amargura o rosto e resmunga rabugento.

– Nunca mais fale de alguém sem saber sobre ele – intima-o, misteriosamente enfurecido. Para a surpresa de Bernardi, Nervan abre passagem e não transparece mais vontade de protestar. – Va bene... Mas você sabe bem o que acontecerá se eles ou outros Mortais souberem demais.

Contentado, o ragazzo avança seguido pelo Servo.

Finalmente chegam ao início da pacata rua onde reside, logo adiante, a casa da família Balleny. Nervan então decide separar-se de Bernardi, alegando que o ajudará de longe – o ragazzo não entende como, e quando resolve perguntar, Nervan tem desaparecido sem deixar vestígios. Sozinho, sucumbe rapidamente à preocupação, à medida que questiona mentalmente cada detalhe do plano. Cada passo torto que força adiante, deixa-o mais perto ao que um dia já pôde chamar de lar – só de imaginar chamá-lo assim de novo... Os suspiros fundos e o gélido frio no estomago acompanham-no até a frente da casa. Repentinamente os olhos saltam de espanto, assim como o coração latejante, quando, por coincidência, vê a madame. Balleny varrendo as folhas secas no jardim. Sua madre. Ele sente os olhos encherem, mas pouco, pois limpa-os rapidamente e luta arduamente contra esse sentimento amargo.Tem que manter o decoro, portanto,não pode demonstrar sentimento. Trêmulo, trava por alguns segundos. Quando sente que os suspiros fundos acalmaram sua ansiedade, sujeita-se à falsa serenidade, que o ajuda a aproximar-se.

Scusi... buon giorno, madame– empurra as palavras antes que elas travem.Entretanto, não é o único a sofrer de nervosismo. Mariana solta um curto pulinho e deixa cair a vassoura ao apontar os olhos ao rosto do ragazzo. Parece prendê-los nele; brilhosos como se estivesse reencontrando alguém que desejasse ver há anos. Seus lábios se contorcem querendo dizer ou perguntar alguma coisa, no entanto as palavras estão empacadas na garganta. Ela está quase o reconhecendo, Bernardi sente isso. Apenas falta um empurrãozinho...

– Me chamo Bernardi Gallic. Muito prazer – cumprimenta ele estendendo a enluvada mão direita. Tornou-se uma regra vital não sair da sede sem antes ocultar a mão cristalizada.

Os olhos de Mariana sobressaltam novamente. Dessa vez o espanto foi tão além dos suspiros que sua boca escancara espontaneamente. Ainda calada, por fim, encoraja um passo desajeitado à frente.

– Bernardi?!... – murmura ela ao clarear o rosto. Possivelmente, pela primeira vez em dias, está prestes a sorrir... Mas... então ela recua dois passos, afastando os seus olhos dele e a esperança de si, agora, tristonho outra vez. – Desculpe. Você me fez recordar uma pessoa querida – diz a voz fraca de rouquidão, entregando que há pouco fora perdida por conta de uma forte choradeira. – Mas no que posso te ajudar?

O rosto do ragazzo quase que não consegue esconder bem a frustração. A esperança abandona-o, mas não antes de presenteá-lo com uma gélida decepção sufocando seu coração. Todavia, esse resultado já era uma hipótese, e não o plano principal.

– Eu estou aqui porque gostaria de alugar o seu quartinho da garagem – responde ele ainda contracenando o papel de desconhecido.

– O quartinho da garagem? Como sabe sobre ele?

– Eu... Bem... – gagueja caindo novamente no nervosismo. Na empolgação em bolar o plano, porém, não supôs esse questionamento.

Diz que viu a placa no portão – sussurra voluntariamente a voz de Nervan em seus pensamentos agitados. Como? Bernardi não sabe.

– Eu vi uma placa no portão – repete por não ter encontrado uma desculpa melhor.

E quando os olhos vão averiguar além de Mariana, arregalam-se, pois realmente encontram uma placa pendurada no portão cinzento da garagem, informando “aluga-se um quartinho na garagem”.

– Que estranho. Simon deve tê-la pendurado ali. Mas não me lembro dele ter comentado algo sobre alugar o quartinho... – reflete a mulher.

– Então, posso ficar com o quarto? – disfarça Bernardi tentando puxar a atenção de Mariana de alguma suspeita.

Ela volta os olhos ligeiramente úmidos para o rosto de Bernardi, ainda desconfiando de alguma coisa.

– Você?! Mas é apenas um ragazzo. Onde está sua família?

Ele não demora em bolar uma resposta, porém necessita forçá-la, contra o desagrado. – Eu os perdi há muito tempo – mente com peso. – Ainda há pouco tempo, eu morava com uma amigada família no subúrbio de Cavaleiro Galeão, mas ela também faleceu.A casa será propriedade da família, e eu não tenho nenhuma aquisição sobre ela. Arranjei um trabalho aqui perto, no centro de Conde Caruso, e vou dormir lá todas as noites. Eu só preciso de um canto para ficar depois do colégio, estudar, relaxar e passar as tardes e os fins de semana. Viu?! Eu nem vou ficar aqui o tempo todo – mal ele percebe que o desespero está tomando-o gradualmente. – Eu não sou nenhum bagunceiro, arruaceiro ou vagabundo. Prometo pagar o aluguel em dia... Por favor, eu não tenho mais para onde ir.

Mariana não esconde a comoção que sente para com a história de vida de Bernardi. Ainda assim, ela reflete alguns segundos antes de dar uma resposta. – Você me parece um bom ragazzo. Eu não te prometo nada, mas acho que podemos experimentar e ver o que acontece. O que me diz?

Mille grazie. Prometo que não vai se arrepender – felicita-se ele, alargando um sorriso de orelha a orelha, sentindo o calor de a alegria fervê-lo por dentro. Uma sensação que há muitos dias não sentia.

Após acertar um dia para retornar à casa dos Balleny, Bernardi se despede de Mariana contendo a saudade pouco saciada. Após cruzar a segunda esquina evitando dar mais pulinhos alegrados – mas não deixando de moldurar o triunfante sorriso –, o ragazzo reencontra Nervan encostado contra um poste. O Servo também tem uma feição satisfatória iluminando seu rosto.

– Parabéns. Conseguiu o que tanto queria – admira ele conforme Bernardi vem se aproximando.

– Sim, graças a sua ajuda. Mas não entendo como sussurrou em mios pensamentos.

– Telepatia. Em breve, você conseguirá também.

– Bom, mal posso esperar. Acho que não temos mais o que fazer aqui. Vamos?!

Mas antes que Bernardi dê um passo...

– Posso te fazer uma pergunta? – pede Nervan drasticamente sério. – Seja sincero, por que escolheu o sobrenome “Gallic”?

O ragazzo arregala levemente os olhos. Nervan teria então pressuposto uma ligação?!...Não importa. Sinceramente, é inútil continuar escondendo.

– Por causa de mio nonno. O “Gallic” era alguém que ele admirava, e muitas vezes nos contou histórias sobre ele. Esperava que minha madre reconhecesse como uma pista a quem eu sou. Eu sei, fui egoísta e imprudente. E o Ser. Felix tinha razão: a marca da reencarnação é poderosa demais para ser superada por lembranças.

– Você foi avisado. Poderia ter evitado essa decepção. Mas, sinceramente, não fora de todo o mal a sua tentativa. Em raríssimos casos, alguns Reencarnados são reconhecidos como suas antigas vidas. O que ficou claro que não aconteceu e nem acontecerá com você, infelizmente.

– E por acaso aconteceu com você, eu imagino?! – retruca Bernardi.

Nervan pigarreia rouco, obviamente para ignorar o assunto. Ele dá as costas a Bernardi e avança adiante, retomando as mesmas ruas por onde eles passaram. O ragazzo segue os passos do companheiro, e resolve permanecer quieto, envergonhado por sua misteriosa, mas evidente, inconveniência.


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