Nesperim - A Irmandade Fantasma escrita por L S Gabriel


Capítulo 7
Capítulo 6 - O Jogo, o Trapaceiro e o Mundo Paralelo




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Bernardi sobressalta soltando um gritinho rouco quando um corpo encapuzado passa e pára diante ele. Alto, e vestindo impecavelmente todo o traje de Servo, o alguém permanece estagnado sem emitir um som ou gesto. Ao ver que já conseguiu aterrorizar a imaginação curiosa de Bernardi, o indivíduo então retira o capuz revelando um rosto jovem. Pele cor parda, cabelo negro, mediano e liso, franjado; olhos negros e sem vida; e uma notável cicatriz, que lembra muito um X, cruzando o queixo quadriculado. Bernardi estuda-o ainda mais, e se pergunta aonde foi que viu esse rosto frio e familiar. Luta para relembrar... e...

Ahhhhhh... – ele consegue. – Lembro-me de você! Você foi um dos sujeitos que me protegeu daquele homem bêbado no bar.

Ele acena em concordância.

E Bernardi tem aberto um sorriso de gratidão. – Eu não tive a oportunidade de agradecer, então, grazie – diz ele, estendendo a mão ao rapaz.

Contudo, o Servo encara o gesto com desprezo, deixando claro em seu rosto a nula vontade de se dar ao trabalho em contribuir a gentileza.

– Dennis Bungalli – ele revela, soltando uma voz suavemente grossa. Para ele, só de ter dito o seu nome já fora ser cordial o bastante. Ou até demais.

A rispidez não agrada Bernardi nem um pouco, embora mantenha firme a bom-senso.

– Por que estamos aqui?

O Servo não o responde e nem desprende o olhar profundo do convidado, espetando como um alfinete a calma de Bernardi. Este tenta desviar o olhar, porém, quando percebe, seus olhos já estão novamente alinhados aos dele, misteriosamente atraídos. Que irritante. A cada segundo, gosta menos e menos do rapaz.

– Vejo que já se conheceram – ecoa a voz de Felix, de repente. O homem ressurge adiante, tremeluzindo como a luz de uma vela fraquejando.

Ser. Felix, o que está acontecendo? Por favor, tire-me daqui – pede o ragazzo, ignorando o porquê de o homem estar idêntico a um holograma.

– Não posso!

– Como não? Você está aqui... Não está?

O homem tenta fazê-lo entender atravessando o braço pelo rosto pasmo de Bernardi, igual à luz do sol cruzando a vidraça de uma janela.

– Sou uma Projeção Astral. Não estou aqui fisicamente. Bom, não sei como explicar isso, mas vocês dois estão presos em uma dimensão separada. A única forma de voltarem é através de um jogo. Uma caçada, a qual você e Dennis serão adversários.

– Jogo? Que jogo? – indaga ele, de repente, pálido como um algodão. Totalmente o contrário da serenidade excessiva de Dennis.

– A chave é um colar de platina carregando um pingente com o nosso símbolo. Ele tem o poder de alinhar e abrir um portal entre as dimensões. O primeiro que achá-lo poderá voltar, e o outro ficará preso nesse mundo sem muitas esperanças de retorno.

– Espere. O senhor não pode fazer isso conosco e...

– Violações? – corta Dennis, pretensioso, nem um pouco abalado com as consequências do jogo.

– Sim, apenas uma: esse mundo é espiritual e instável, portanto, sinto que ele não suportará que tenham contato físico. Não se toquem, pois, aquele que provocar um toque, poderá ficar preso eternamente. Boa sorte.

Felix desaparece como uma chama apagada. O único som, agora, resume-se ao vento assoviando quando corre pelo chão – não mais alto que a respiração nervosa e pesada de Bernardi.

Ser. Felix? – chama-o encontrando a voz. – Ser. Felix...? SER. FELIX?

Nenhum sinal de vida se manifesta, exceto os passos de Dennis se distanciando. A furtada atenção de Bernardi acompanha o Servo indo às profundezas do cômodo, preste a escancarar uma porta grande de metal.

– Espera. Podemos achar o colar juntos – pede ele, ciente que o apelo também é uma desculpa para não ficar sozinho nesse lugar assustador.

– Você é surdo?! – retruca Dennis rude. – Não ouviu que isso é um jogo?!... Então é cada um por si.

Então ele desaparece atrás da porta recém-fechada.

Irritado, o ragazzo resmunga enrouquecendo a garganta. – Qual é o problema dele? –. Em seguida, toma um caminho contrário, atravessando uma flutuante escada em espiral sobre um abismo.

O tempo voa. Bernardi não aguenta mais subir essas escadas encaracoladas e serpenteadas, que parecem não ter fim; entrar em câmaras empoeiradas, frias e cinzentas de tantas teias de aranhas. Já abrira incontáveis túmulos, covas, caixões, e mexera em diversas pilhas de restos de ossos espelhados por todo o chão. Mas até agora... Nada! Chegou a encontrar alguns colares – latão e ferro enferrujado, ouro e prata –, mas nenhum deles era a chave. Infelizmente.

Após subir uma escada parafuso, e ter a impressão que andou boa parte dela de ponta cabeça ao abismo, ele luta para escancarar as metades de outra porta pesarosa de metal. Vence, ofegando. Põe os pés em outra câmara mofada. Certamente essa é a mais estranha e assustadora até então: uma antiga sala de tortura. Conforme avança, depara-se com esqueletos acorrentados nas paredes, outros enforcados no teto, e alguns atirados à margem dos crânios rolados pelo chão. O ar carregado de maus-pressentimentos – além do forte mau cheiro – ajuda a imaginação de Bernardi em dar arrepios no próprio, só de imaginar como e porque tantas vidas acabaram assim. No fundo da câmara, agacha-se diante um baú e empurra a tampa poeirenta. Mete as mãos e revira um punhado de moedas – cada uma murando um rosto barbudo e estranho, e símbolos substituindo valores ou datas. Nada de colar. Desistente, ele se põe de pé, mas não antes de estufar os bolsos com alguns punhados de moedas – quem sabe não são valiosas. Enojado e prestes a ceder à ânsia, ele começa a revistar às esburacadas vestes de todos os esqueletos ali jazidos. Nenhuma revista resulta algo proveitoso, a não ser pó para acinzentar as mãos dele. No quinto – um esqueleto estirado à parede –, encontra um relógio antigo e moedas furadas. No próximo, ele desembainha uma adaga, quase cortando-se com a lâmina oxidada. Mais alguns, e nada que não seja uma das diversas coisas inúteis que se pode imaginar. No último esqueleto, afunda o braço em uma bolsa, revira o nada até agarrar algo peludo, frio e seboso. Instantaneamente retira-o, e berra apavorado, arremessando o cadáver de uma tarântula – que mais parece uma ratazana – o mais alto que pode. Aos poucos, consegue devolver o coração ao lugar, sugando pesarosamente o ar e não encontrando nas mãos nenhum mau que o inseto morto possa ter deixado.

Retira-se da câmara e atravessa um túnel, subindo uma espécie de passarela. No fim encontra outra câmara fechada. Tenta abrir porta, no entanto as maçanetas estão relutantes e permanecem emperradas. Após uns puxões fortes, ouve as travas tilintarem ao caírem no chão. Talvez seja um bom sinal, pensa – para que travariam uma porta se não fosse para guardar algo especial?

Ao abrir uma das metades, subitamente, solta outro grito de pavor – culpa do grande espanto por um esqueleto despencar sobre ele, envolvendo-o num abraço. Com o coração na garganta, tenta soltar-se se debatendo incontrolavelmente, o que acaba de lhe fazer tropeçar e cair junto à caveira. Colam os rostos um no outro. Bernardi solta outro berro e levanta-se derrapando. Já o esqueleto permanece inativo, esparramado e sofrendo a falta de alguns ossos que a queda lhe arrancou. O rosto reluzente de suor ofega fundo buscando a calma, contudo, é atrapalhado pela raiva amargurando a sua feição.

– Cansei – queixa-se ele. – Juro que se eu sair daqui, fugirei do Ser. Felix, Nervan, daquele bar, de todos; sem pensar duas vezes. Bando de loucos.

Contra a vontade e paciência, ele entra e vasculha a câmara adiante – tão poluída que é possível ver as cinzentas nuvens de poeira trafegando pelo ar. Um brilho encontra-se bem ofuscado sob um montinho de poeira no fim da câmara. Algo cintila. Será o colar-chave? O ragazzo anda esperançoso em sua direção. Mas, de repente, é freado – um ligeiro zumbido cortara o ar; e Bernardi sente as primeiras gotas de sangue fugindo por uma das bochechas. Coloca a mão tateando o novo corte que, misteriosamente, ganhou. Caça visualmente o que te fez isso. Encontra a resposta adiante, enganchada na parede: um projétil sombreado, semelhante a uma flecha... Uma flecha? Como? Ele volta o olhar perplexo à porta. Dennis está vindo, deixando mais da metade da passarela para trás, carregando algo curvado e foscamente prateado. Diminuindo a distância, Bernardi descobre que se trata de um arco. E também consegue enxergar outro projétil sombrio ser materializado pelos dedos recuados do Servo. Outra flecha acaba de ser engatilhada e apontada contra ele.

Portanto, ele não perde tempo em disparar a curta distância à saída, e deslizar para a proteção de um pilar ladeado à porta, um milésimo antes da flecha estourar contra o pilar e estremecê-lo fortemente os blocos de pedra.

– PÁRAAAAAAAA... – esgoela Bernardi. – VOCÊ ESTÁ QUEBRANDO AS REGRAS. FELIX DISSE QUE NÃO PODÍAMOS NOS ATACAR.

– Corrigindo – ecoa a voz de Dennis com normalidade –, disse que não podíamos nos tocar!

– QUE INFERNO. PARECE QUE TODOS QUEREM ME VER MORTO.

– Pelo menos dessa vez alguém vai conseguir.

Fora a saída bloqueada por Dennis, há outra à esquerda do pilar, no fim de um curto corredor. Bernardi olha esperançoso para a entrada. Pouco distante, porém, é pressuposto que serão necessários uns quatro ou cinco passos para chegar até ela e se proteger na parede. Será tempo suficiente para Dennis lhe acertar uma flecha?...

TROOOOOOOOOOOOM...

Outro baque violento estremece o pilar, o que faz o ragazzo temer ainda mais em arriscar. As moedas pesam ao inclinarem no bolso da blusa. Ele volta notar a existência delas, e a do esqueleto bem diante de seus pés. Paira os olhos pensativos sobre ele, até concluir um plano. Sim, a ideia de distrair Dennis seria o que alavancaria uma fuga. Bernardi não espera duas vezes para pensar se vai ou não dar certo; já está sutilmente recolhendo o esqueleto do chão, e colocando-o sob o braço. Está quase pronto! Agora é só esperar de pé, escorado contra o pilar.

Os passos cautelosos do Servo vêm soando tão próximos que ele já deve ter os pés a poucos metros distantes. Agora centímetros. Mas, de repente, uma chuva de moedas é arremessada contra Dennis, cujo se protege virando o rosto – quando ele volta os olhos ao pilar, encara o esvoaçante rosto esquelético quase colado ao seu. Agilmente, ele arrebata a caveira contra a parede – atrás dos resmungos mudos, o contorcido rosto do rapaz esconde mal o pavor. Mas não a fúria. O motivo foi não ter conseguido ver o momento em que Bernardi alcançou o curto corredor.

Além da saída, o ragazzo agora salta os degraus de uma escada – uma das quatro que se trançam como galhos de uma árvore, sobre um precipício profundo –, o mais rápido que pode.

TROOOOOOOOW!

Apressa ainda mais a corrida após um baque acertar o degrau que acabou de deixar para trás; sente os pequenos cacos de pedras saltarem à frente. A essa altura, Dennis deve ter criado e engatilhado outra flecha. Ciente disso, a sensação de perigo faz Bernardi saltar para uma das escadas emparelhadas, aproximada por conta da corrida. Por um momento, enquanto suspenso no ar, assiste o segundo em que uma flecha, longa como uma lança, despedaça feio uns dois degraus junto ao de onde ele saltou. Então pousa, mas quase despencando do precipício: escorregando uma perna além da escada. Puxa-a de volta rápido e corre mais alguns passos, antes de outro estrondo – mais um degrau estourando por causa de uma flecha – fazê-lo tropeçar e rolar os últimos degraus da escada, e deslizar as costas pelo chão além de uma porta de metal. Bernardi contém os resmungos doloridos, ao invés, levanta-se, avança e trancafia a porta, atravessando arduamente uma barra grossa de metal, ali estrategicamente estendida, entre as fechaduras. Desconfia se aquela porta consiga segurar Dennis, entretanto deve ser o suficiente para atrasá-lo algumas horas – o suficiente para que Bernardi fuja sem se importar com o rumo, desde que o leve a um lugar longe dali.

Bernardi está perto de sucumbir à fadiga. Não aguenta correr nem mais um passo. Passara por tantos cômodos flutuantes, escadas, escadas, e escadas, e ainda nem sinal de um lugar calmo para confortar-se com segurança. Renova as esperanças ao encontrar uma majestosa entrada, onde poderia facilmente passar um par de elefantes ladeados. Atravessa-a, convencido que não terá fôlego em procurar outro lugar para esconder-se. Ofegando, escora as costas úmidas e quentes contra a primeira coisa que alcança: um pilar – um dos muitos que fazem duas fileiras simetricamente emparelhadas. Espiando tudo ao redor, vê-se em um gigantesco e plano saguão, de bela e desconhecida arquitetura, mesmo estando afetada pelo tempo. Sombrio, não por negligência, e sim por charme – lustres descendem unicamente os pilares. Rabiscos e desenhos – não, ou melhor, são hieróglifos –, civilizam tudo por onde os olhos de Bernardi pairam. Formas aparentando detalhes humanos ou não, figuras e símbolos desconhecidos, flamejando num brilho azul. Bernardi enxerga o fim das fileiras de pilares abrir-se no início de uma larga, porém curta escada. Os degraus são tão amplos que, com toda a certeza, correria um caminhão e sobraria espaço. Encarrapitado após o último degrau, cintilam cálices incendiados, iluminando um sarcófago, homenageando a estátua de um anjo sobre um pedestal, tendo em seu pescoço algo pequeno, mas cálido... Será que?...

O ragazzo anda poucos passos tentando encontrar um ângulo melhor para confirmar o que suspeita estar vendo. Mas, nesse instante, outros passos lentos batucam no silêncio: Dennis vem à sua direção, sem abaixar o arco.

– Te achei – diz ele calmo... calmo até demais.

Bernardi entreolha-o sentindo o coração latejar. O sangue e a coragem têm partido de seu rosto. Não há como correr sem servi-lhe de um alvo fácil. Então, o que lhe resta é:

– Calma, por favor. Abaixe o arco.

– Ingênuo. Pensou mesmo que poderia fugir? Não importava o quanto corresse, eu iria pegar-te, uma hora ou outra. Agora, concedo-te um último desejo.

– Um “não me mate” é aceito? – ele pede. Soou ridículo até para si, contudo não custava nada tentar.

O Servo zomba produzindo um ruído irônico com a garganta. – O perdedor não voltará, portanto sua morte não fará diferença a ninguém.

– Deixe-me vivo, e eu te conto onde está o colar-chave – insiste Bernardi, acobertando bem o medo e o nervosismo dominante.

– E por que eu não o acharia sozinho?!

– Viu-o aqui?

Os olhos de Dennis ressaltam.

– Veja... lá em cima...

O Servo não se aguenta de curiosidade e ergue as vistas para vasculhar o altar. Era tudo o que Bernardi queria. Este enche as mãos com as últimas moedas no bolso e o pó que elas acumularam, e então arremessa tudo contra os olhos distraídos do rapaz. Dennis prega os olhos a tempo, porém, ainda sofre um pouco da poeira embaçando e pinicando levemente as vistas. No segundo seguinte, sente um estapeio bruto lhe roubar o arco das mãos. E quando volta a enxergar com perfeição, encontra Bernardi prestes a subir o primeiro degrau para o altar.

O ragazzo sobe três, quatro, cinco, e então sente o forte rebuliço no ar que Dennis acarreta ao passar quase voando. Uns dois segundos depois, e o Servo já tem ultrapassado metade da escada. Veloz como uma sombra. Mas, de repente, um estremecer abala a corrida – rachaduras abrem caminho nos degraus, cujos começam a esfarelar. Na sequência surgem buracos de diversos tamanhos. Dennis desacelera drasticamente seus passos após escorregar a perna num buraco; graças a isso, Bernardi consegue diminuir a distância entre ele e o rival. A parte da escada que deixaram já não existe mais – a boa notícia é que faltam apenas três degraus a Dennis, e cinco a Bernardi.

O Servo alcança o último degrau. Entretanto, seus pés afundam em dois buracos recém- abertos, que logo depois abrem-se em uma lacuna. Ele despenca, precisando enganchar a ponta dos dedos no que sobrou do degrau. Bernardi ultrapassa-o esgueirando-se pela beirada do resto do degrau, lutando para não desequilibrar – o que quase aconteceu umas duas vezes –, até alcançar o topo. Boquiaberto, pára com a visão travada nas mãos do rapaz escorregando cada centímetro mais, lutando acirradamente para não cair no abismo. A batalha está prestes a ter um perdedor: Denis não aparenta durar mais que cinco segundos se segurando. E o tempo parece congelar assim que as perguntas brotam todas de uma vez só: deve salvar Dennis? Aquele que tentou matá-lo duas vezes, isso porquê não teve mais chances. Fora que se tocá-lo perderá instantaneamente e ficará preso para sempre... Sua liberdade só depende dele agora. Todavia, mesmo assim, sabe quer vencer – e como quer vencer –, mas tem em mente que sua consciência pesará como um chumbo aos próximos dias por ter deixado alguém morrer... Contudo, não dá para negar a fervorosa vontade de sucumbir à tentação... Então... O que fazer?

Ele toma uma decisão e todo o ar que consegue. Corre à beirada em que o Servo está, e agacha-se esticando o braço para ele. Os olhos preocupados encontram os aflitos, mas também orgulhosos.

– Me dá a sua mão.

Dennis se encontra na ponta dos dedos, contudo ainda deixa o ego falar mais alto. – Suma daqui. Eu não preciso de você – berra ele, como se ser ajudado fosse vergonhoso.

– ANDA LOGO... Dê-me a sua mão, por favor...

O Servo transparece estar fazer força para engolir o orgulho a seco; então, agarra o braço de Bernardi. Arduamente, porém, o ragazzo consegue puxá-lo o suficiente para que Dennis termine de se alavancar sozinho.

Ambos estiram-se no chão sem soltar uma palavra, a não ser alguns gemidos de alívio. Ofegante, Bernardi se pergunta de onde tirou tanta força, e como não está morto de cansaço apesar de tudo. Enquanto isso, Dennis apenas mantém o rosto inexpressível encarando o breu sem fim de onde deveria haver um teto – deve estar imaginando o abismo que quase caiu.

– Por que me salvou? – soa como um resmungo do Servo.

– Não precisa me agradecer – Bernardi retruca ironicamente.

– Repetirei a pergunta: por que me salvou?

O ragazzo suspira fundo e fecha os olhos cansados. – Eu não sei. Sinceramente eu não sei. Eu queria muito vencer. Queria muito sair desse lugar... Uma parte minha induzia-me a pegar o colar e, não me leve a mal, mas também a deixá-lo morrer como castigo por tudo o que fez. No entanto, a outra parte não... e dessa forma ela acabou colocando-me à prova: mio egoísmo era tão grande assim ao ponto de colocá-lo acima de uma vida?... Não, eu não chegaria a esse ponto. Não permitiria a morte de alguém por ambição ou cobiça.

– Mesmo a morte de alguém como eu que fui antipático desde o primeiro segundo que nos vimos? Mesmo eu que tentei matar você?... Pensei que o ódio que sente por mim fosse o bastante para fazê-lo saborear a minha morte.

– Não sinto ódio de você – discorda inocentemente. – Raiva, sim. Mas não ódio.

– E raiva não seria motivo suficiente? – pela primeira vez, Dennis não liberou arrogância em suas palavras.

Ambos entreolham-se com o fôlego retomado.

– Não. Sentir raiva é totalmente natural. O que você faz com essa raiva, é o que importa. Mio babbo vivia dizendo isso.

Dennis mantém um silêncio pensativo, antes de relutar em concordar. – Foi um belo conselho. – Então solta uns três suspiros e levanta-se, encarando o ensolarado pingente no pescoço da estátua.

– Detesto admitir, mas você tem um pouco de mio respeito.

Ele balança os olhos entre Bernardi e a estátua. O ragazzo é seduzido pela ideia de, finalmente, sair deste lugar horroroso... no entanto, um simples e detestável pensamento corrompe-o, desmanchando o sorriso contentado.

– O colar é seu. Eu toquei em você. Quebrei a regra, portanto, não posso sair – esclarece ele enrouquecido de decepção.

O Servo concorda sem questionar – afinal, regras são regras. Enquanto desprende o colar reluzente do pescoço da estátua. A jóia responde produzindo auroras acima de suas cabeças. Logo as luzes dançantes se amontoam na forma de um corpo tremeluzente: por sinal o de Felix.

– Quem conseguiu?

– Eu! – proclama Dennis.

– Ah... Então você é o vencedor!

O homem estica o pescoço além do rapaz e repara na feição cabisbaixa e angustiada de Bernardi.

– No entanto – retoma a palavra –, vi algo nobre hoje: uma alma benigna cuja estendeu a mão a outra alma, mesmo que precisasse passar por cima de orgulho, ressentimento ou ganância. Mesmo que isso pudesse significar a sua morte. Uma alma que escolheu perder tudo, ao invés de dar as costas a quem necessitava. Foi uma fascinante demonstração de caráter e, é por isso que, acho que o colar não terá dificuldade em trazê-lo de volta, jovem Bernardi.

O rosto que ouvira atentamente cada palavra dita, agora, tem aberto um sorriso aliviado de orelha a orelha. – Eu vou sair?! Grazie Ser. Felix, molte grazie – agradece ele euforicamente.

– Não agradeça a mim, e sim ao Dennis. A propósito mio caro, és um ótimo ator.

– Fiz o melhor que pude – gaba-se Dennis.

Por um milésimo, Bernardi quase conseguiu surpreender um raro sorrisinho contentado no Servo. Quase.

– Como assim? – indaga Bernardi.

– Dennis se conteve o máximo que pôde para não abranger a desvantagem ou te ferir. Errou os disparos de propósito; não usufruiu do seu poder ou de suas condições físicas; e simulou muito bem quando despencou e agiu desesperadamente na beira do precipício.

– Caso não lembre, fantasmas voam – comenta Dennis para Bernardi com normalidade.

O ragazzo sente sua boca abrir de surpresa de não ter conseguido se lembrar desse fato que já tinha presenciado antes – afinal Nervan levou-o voando ao cemitério na última madrugada, não foi?!

Nenhum deles repara nas auroras no teto se extinguindo. De repente, um tremor sacoleja tudo o que pode no sarcófago. O altar de pedra desmorona como um castelo de cartas; os pilares caem em efeito dominó; uma chuvarada de farelos cinzentos e pequenos pedregulhos caem do teto.

– O QUE ESTÁ ACONTECENDO, MESSERE? – vocifera Dennis, antes de ver o corpo de Felix chuviscar como a tela de uma TV velha, e desaparecer logo depois.

Rachaduras abrem caminho no chão. O teto começa a desabar em entulhos gigantescos por todos os lados. Ágil, Dennis consegue se salvar fugindo de uns três que o miravam enquanto caiam. Porém Bernardi mal consegue escapar das pedrinhas que chuviscam em sua cabeça; muito menos poderá fugir da avalanche que está preste a esmagá-lo.

No segundo seguinte, o garoto vê de relance Dennis surgindo ao seu lado e o empurrando para longe. Bernardi desliza, mas consegue erguer o rosto surpreso a tempo de assistir o momento que um monte de pedras soterra o rapaz. Então, o chão sob suas costas abre-se em um abismo sem fundo. Bernardi despenca engolido pela escuridão, junto com os escombros do que já foi um chão.


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Notas finais do capítulo

Finalmente um fim? talvez...



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