Nesperim - A Irmandade Fantasma escrita por L S Gabriel


Capítulo 6
Capítulo 5 - O Labirinto dos Corredores


Notas iniciais do capítulo

Que comece a Iniciação.



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Não demora muito para a corrida em quatro patas de a Salamandra estar ao ponto de alcançar a de Bernardi. Os pesarosos galopes estouram na escuridão, cada segundo mais próximos, trazendo as rosnadas ferozes.

De repente, adiante surge uma brecha à parede sombreada, dando início a um novo corredor. Por um triz, Bernardi consegue derrapar rápido e entrar, antes de quase ser atropelado pela besta. Já a criatura, que passara reto, também derrapa cravando as afiadas garras – lhe servindo de âncoras – no piso de concreto. Um grito agudo e perfurante rasga o silêncio, e, após uns três impulsos, a Salamandra alcança a entrada do corredor, que a deixa diante de um dilema: um cruzamento de diversos corredores. O silêncio e a escuridão são os únicos a ter presença no vazio. Onde estará sua presa agora?

Quieta-se para ficar mais íntima de seus instintos altamente atentos em quaisquer sinais: um passo abafado pela distância, ou uma respiração afobada, a trilha de aroma que o ragazzo deve ter deixado... qualquer coisa. A Salamandra balança os luzentes olhos amarelos – iguais a vaga-lumes numa noite – para as numerosas entradas de corredores adiante. Nenhum vestígio ajuda-a a tomar uma decisão. Voluntaria o focinho erguido ao ar para encontrar o caminho correto; no entanto, antes da primeira farejada, seu furtado olhar mira uma das entradas que, logo além, teve seu silêncio arruinado por um ruído. A Salamandra rosna mostrando as presas, e dispara galopante à frente, invadindo o corredor escolhido e logo sendo engolida pela escuridão.

Quando as pisadas já nem mesmo arranhão o retomado silêncio, Bernardi estica o pescoço em vigia – nesse tempo todo esteve escondido no corredor a duas entradas à esquerda de distância ao qual entrou a besta. Estuda todos os cantos do escuro por segundos até ter certeza que está sozinho novamente. E, por fim, se permite a soltar com receio a respiração. O alívio descongela seu estomago. Agora, encara o corredor em que está. Quanto longo será que ele é? O quão grande será esse labirinto de corredores? Haverá muitas saídas escuridão à dentro?... e, poderá haver outros monstros?... Ele não sabe no que concordar dos seus pensamentos... Espera, não, há algo sim!

Ithan seu maldito.

Bernardi tem medo de prosseguir e ter mais surpresas desagradáveis. Todavia, entra no bom-senso de que se ficar parado, não encontrará uma saída. O fato de a criatura ter tomado um corredor de destino oposto, ajuda-o a respirar fundo ignorando o medo, e forçar seus passos cautelosos adiante, em busca de uma saída.

Ele tenta memorizar os desvios do trajeto por onde passa – esquerda, direita, adiante, direita, direita de novo,... Perde a concentração ao precisar disparar em uma fuga após ouvir alguns ruídos estranhos, parcialmente idênticos à rosnadas. Quando percebe que deve ter deixado uns seis corredores de distância, acomoda-se novamente em passos leves. Contém ao máximo os suspiros ofegantes enquanto toma mais um corredor à esquerda, outro à direita... e então, se vê entrando num desértico Hall, onde vários corredores se encontram. O ragazzo estuda cada centímetro dele. Infelizmente, até então ainda não tem avistado uma saída. Que frustrante...

– Procurando algo?! – ecoa repentinamente a voz de Ithan, vinda das profundezas de algum dos corredores.

Bernardi sente o coração quase saindo pela boca.

– Você deveria olhar para trás – aconselha a voz de tom irônico.

Espontaneamente, Bernardi então dá meia volta. Acaba por esfregar o nariz na escamosa e seca barriga da Salamandra, parada sobre duas patas, ali, quase colada ao seu corpo. O tempo apenas permite ao ragazzo a recuar dois passos, antes de uma tapa atingi-lo como um raio e atirá-lo longe, ralando-o ao chão. Ele geme de dor, os olhos semicerrados. E quando abre-os, encontra os aterrorizantes olhos amarelos vidrados no seu. A Salamandra está avançando, e a cada passo largo, curva ainda mais o torso para alinhar as presas com o rosto do ragazzo; arrastando as garras no chão, que voltam a produzir aquele terrível ruído desafinado. Já Bernardi, arrasta-se para trás sendo impelido por suas pernas trêmulas e energizadas de horror.

– ME DEIXE EM PAZ. SAI DAQUI. SAI...

No entanto, quanto mais ele grita, mais a besta diminui a distância que os separam. Ela acaba de ficar próxima o bastante para agarrar as relutantes pernas e consegue enganchar a mão em uma delas, travando Bernardi onde está. Os olhos amarelos brilham como faróis. A boca faminta, que vem avançando, escancara-se e revela a continuidade das outras presas pontiagudas – está prestes a engolir a cabeça do ragazzo.

Ele está paralisado de horror, mas seus instintos não – os quais o fazem erguer a perna livre sobre o focinho da besta, e então começar empurrá-lo para trás a base de uma série frenética de pontapés. Quando a fera recua a face cambaleante, Bernardi acerta-lhe a última pisada para que ela largue de vez sua outra perna. Ouvem-se resmungos e rosnadas de dor vindas da Salamandra, que, agora, usa as mãos para cobrir a face dolorida e chacoalhante. Já Bernardi aproveita a deixa e se põe de pé o mais rápido que pode. Cortando o ar, porém, a sonsa cauda da salamandra não deixa o ato barato e atinge-o violentamente, arremessando-o outra vez para longe, fazendo-o rolar umas sete vezes e deslizar pelo chão. O ragazzo se choca contra a parede à entrada de dois corredores próximos. Levanta-se cambaleando, mas, sem tempo para se queixar da dor, invade o corredor mais próximo. A uma corrida distante, porém, consegue ouvir os resmungos exaltados e preocupados de Ithan.

– O QUE ELE FEZ COM VOCÊ? GARDELON, VOCÊS ESTÁ BEM? OLHE PARA MIM...

Novos e, agora, furiosos galopes trovejam por algum corredor, até desaparecerem na escuridão. A dois corredores de distância, Bernardi acompanhou-os ouvindo as pesadas serem quietadas e, por fim, esquecidas. Surpreende-se contendo espontaneamente a respiração. Então descansa, pairando o corpo exausto e trêmulo contra a parede no final deste novo percurso. Outra vez escapou por pouco – já estava vendo-se mastigado entre a guilhotina de dentes. Encharcado de suor, seu ofegante rosto se contorce amargamente pela raiva que sente – raiva por estar sendo usado como um brinquedo nessa ridícula situação; raiva por quase ter sido devorado vivo; raiva de Ithan, aquele menino psicopata; raiva de Felix por ter lhe posto nessa furada, e que deveria tê-lo acompanhado, a não ser que soubesse e concordasse com os planos de Ithan; ah, claro, raiva de Nervan também, aquele cretino, por que tinha que aparecer para Bernardi e lhe oferecer o convite?!...

– Eu sou um idiota! – rosna. Agora sente raiva de si próprio por ter aceitado a droga do convite.

Algo interrompe os pensamentos raivosos: um acalorado úmido escorrendo por sua perna – intenso demais para ser apenas suor. Bernardi desce sua atenção. Uma mancha avermelhada borra sua perna. Lutando para manter a calma, então, agacha-se para poder tocar delicadamente o motivo do sangramento; encontra uma trilha de arranhões na panturrilha – certamente deixados pelas garras da Salamandra, enquanto esta agarrava sua perna. O ferimento não aparenta ser profundo, todavia, grave o suficiente para escoar um nível preocupante de sangue. Infelizmente não há tempo nem recursos que o permitam cuidar do ferimento antes que piore. Ele se levanta apoiado contra a parede, na qual deixa um mural de mãos vermelhas carimbadas e linhas de sangue pintadas. Um ruído que quebrara o silêncio não muito longe passa a ser sua preocupação. O cheiro quase inodoro para ele, por outro lado, já deve ser um sinal para o focinho aguçado da besta. Sem hesitar por conta do ferimento, Bernardi não pensa duas vezes em partir o mais rápido que a dor e a cautela em não agravar a ferida permitem-no.

Vários minutos devem ter se passado.

Por correr tanto em zig zag pelos corredores, Bernardi já não se preocupa mais em tentar memorizar as novas etapas de sua trajetória; esquerda, direita, adiante, direita, direita de novo, meia-volta, pois este corredor não tem saída... esquerda... No final, tanto faz! Não importa o quanto ande em um corredor – se vai até o final ou não –, ou quantos corredores entre, ele sempre concorda com a impressão de ter dado voltas – isso se não acabar em algum corredor sem saída ou circular, precisando retornar todos os passos de novo. Nenhum deles é diferente: ligeiramente melhor ou pior iluminado, menos ou mais úmido, com ou sem o teto ranger... nenhum deles tem uma saída.

A cada segundo Bernardi sente a esperança de haver uma fuga, mais perto de se extinguir. Entretanto, num curto momento, surpreende a si pensando que a situação poderia piorar: o monstro de Ithan poderia estar atrás dele neste exato momento – e ele flagra seus olhos espiando sobre os ombros caso seja verdade. Por sorte não. Enfim. O ferimento em sua perna poderia estar pior, o que não lhe permitiria correr; ou, simplesmente, poderia estar com vontade de ir ao banheiro. Surpreende um sorrisinho bobo e inesperado, só de imaginar o que aconteceria se uma dor começasse a apertar a sua barriga. Bom, finalmente consegue relaxar ligeiramente a mente, elevando os pensamentos a outros assuntos – por mais inusitados que sejam. Quando dá por si, está invadindo outro cruzamento de corredores com os pés automaticamente tomando o da direita. Subitamente, porém, recua os passos, esgueirando-se contra a parede. Conteve a tempo os suspiros pesarosos ou um grito de pavor, mas não seu coração, outra vez, latejante. O pouco de coragem permite-o arrastar lentamente suas vistas além da parede para ter certeza que o susto repentino é justificável. Sim! Pouco distante, um corpo troncudo encontra-se centímetros adiante da entrada do corredor que iria. Deve ser a Salamandra, pensa. Contudo, para a sua pouca sorte, o monstro paira de costas para ele. Nada de ruídos ou rosnadas. A besta está imóvel, ali, observando sem negligência uma porta de madeira, paralisado como uma estátua de...

Espera aí, Porta de madeira? Reflete Bernardi, boquiaberto e – de tão maravilhado – incrédulo que, por Deus, finalmente seus olhos encontraram uma saída, embora que além do corpo da Salamandra. A esperança, renascida das cinzas, acalora seu peito ao ver uma luz transbordando exprimida entre a porta e o chão.

Porta, luz, saída, liberdade! – sobressaltam os pensamentos. A contrapartida, um fato insiste em atacar a esperança de fuga: como driblará esse demônio guardando a porta?

Sem êxito em encontrar uma resposta em seus pensamentos, então, espia desesperadamente cada centímetro ao redor. Vagamente, trava as vistas tendo encontrado algo intrigante – no corredor da esquerda, quase invisível na escuridão, encontra-se um mural de manchas avermelhadas, idênticas as que Bernardi desenhou com seu sangue. Ele não entende como consegue ver esses borrados fracos sob o breu, porém consegue, e isso é o que importar.

Enfim.

Então! Conclui escancarando mais seus olhos. De fato, ao fim do corredor da esquerda está o grande Hall por onde passou e quase foi engolido.

Martiriza-se por não ter visto a saída quando aqui esteve pela primeira vez; a luz quase extinta das lâmpadas deve tê-la perdido para a escuridão, escondendo-a das vistas apressadas. Mas isso não vem ao caso agora. Quieto e abafando a respiração, ele cai em extrema concentração, voltando a caçar uma resposta em seus pensamentos, agora, com mais fatos em levar em conta.

Se conseguisse afastar essa Salamandra de guarda da porta...

Volta o olhar esperançoso à luz sob a porta. Desanima-se espiando novamente a Salamandra, cuja ainda continua na mesma posição ereta. Depois, a escuridão do corredor que leva ao Hall. Repete a sequência de olhadas umas três vezes consecutivas. Por fim aponta os olhos para baixo e trava-os nos seus sapatos. Quando dá por si – espera – acaba de deixar-se levar pelo início de novos e promissores pensamentos, e sua expressão diverge o grau de preocupação.

e se eu...?

Acaba de bolar a ideia que tanto parecia inalcançável – estúpida, porém, brilhante; perigosa, todavia, necessária; e também, a única que a mente atordoada consegue acreditar que possa dar certo. Mas... por mais que as circunstâncias forcem-no a ficar esperançoso, a incerteza faz o plano lhe soar inusitadamente ridículo – daqueles que só funcionaria em um desenho animado. Contudo, Bernardi já tem os olhos pregados e buscando coragem. Pronto, ergue-se e caminha na ponta dos pés, invadindo e atravessando sutilmente o corredor à esquerda. Toda a cautela é pouca, pois qualquer barulho que fizer, será o seu fim.

Após as pernas quase fazerem-no tropeçar umas três vezes, momentaneamente travadas de nervosismo, Bernardi consegue pôr os pés no salão. Beirando uma das paredes, arqueia o corpo o bastante para alcançar os sapatos. Desamarra-os o mais rápido que a tremedeira permite. No segundo seguinte, ergue-os mirando a escuridão adiante e, concentrando toda a força, ele arremessa o par de calçados contra a parede próxima, e...

BOOOOOOOOOOOM...!

Os sapatos pareceram explodir quando colidiram.

Com nem um segundo de silêncio após o alto ecôo, um rosnar incomodado preenche o vazio, antes dos galopes a toda velocidade destroçarem a paz sonora. A Salamandra cruza a entrada rasgando o ar, e derrapa conseguindo parar no centro do Hall. Endireita-se sobre as duas patas; os olhos luminosos percorrem por todos os cantos possíveis, caçando o causador do estrondoso barulho, que deve estar metido e incógnito dentre a nula iluminação das lâmpadas.

Mas claro que não...

Bem sucedido, portanto, Bernardi não desperdiça o tempo. As meias nos pés silenciam a corrida enquanto ele cobre a distância de volta à porta. Agarra a maçaneta com toda a pressa; ela emperra de início, porém logo cede as tentativas. A porta está se abrindo. O alívio inunda o coração dele, e faz seus lábios curvarem num largo sorriso vitorioso. No entanto – para sua indescritível frustração – o além da porta aberta não passa da prolongação deste corredor. A luz que tanto cobiçara é emitida por dois misteriosos focos brilhantes, flutuando no chão. O rosto esperançoso já está totalmente amargado de pânico. E, no segundo seguinte, uma força arrebatadora tromba suas costas e atira-o longe. Bernardi desliza pelo chão rolante como uma bola chutada, até conseguir parar. O úmido e quente gosto de ferro transborda em sua língua, acarretado pelo corte trilhando a boca. Ele solta uma cusparada. Os olhos semicerrados se abrem lentamente ao tempo que se erguem para poder entreolhar o dono dos sapatos sociais, que está diante o rosto caído. Nada menos que o risonho Ithan Arcelli.

– Aposto que pensou: "como essa porta não estava aqui quando passei pela primeira vez...” Não pensou?! – zomba ele satisfeito. – Estava tão apressado em fugir que, na primeira vez que passou aqui, não reparou na porta arreganhada e escondida nas sombras. Foi tão fácil pegar você. Só precisei fechar a porta e iluminar o outro lado. Uma hora você iria aparecer e ficar eufórico com a saída... Só não imaginei que me impressionaria pelo plano que bolou. Parabéns.

Um gancho agarra o colarinho da camisa de Bernardi e o inverte de barriga para cima. A mão da Salamandra o solta para então apanhar firme uma das pernas, arrastando-o corredor à frente.

– Admito a inteligência do seu plano, mas o mio foi melhor! – diz Ithan acompanhado-os ladeadamente. – Game Over para você!

– Onde estão me levando? – indaga Bernardi claramente tomado pelo medo.

– Nem queira saber – zomba Ithan sem demonstrar um pingo de compaixão.

– Por favor, deixem-me ir – implora ele resfolegando. – Eu não quero morrer. Não de novo.

Entretanto Ithan não o responde.

A cada metro avançado, as lâmpadas recentemente deixadas para trás apagam-se sem resistência, até que um breu toma totalmente o corredor. Como se fosse preciso, pois Bernardi permanece de olhos bem pregados; não aguentará presenciar sua aproximada morte. Desfruta o resto da esperança rezando por ajuda ou piedade.

Contudo, um som conhecido surpreende-o – se não se engana, fora o gemido de uma porta sendo aberta. Curioso, ele abre os olhos. Uma luz vigorosa atordoa sua vista sensível graças ao longo tempo no escuro – mas logo ele se acostuma à claridade. Vê-se sobre um firme e plano chão de madeira lisa, entre paredes de tom azul-marinho, e abaixo de um longínquo teto clareado por luminárias cristalinas simetricamente espalhadas. Os arredores são corridos por fileiras de dezenas de assentos, assim como um parlamento. E, sobre tudo, um corredor aberto percorre as quatro paredes, cercado por uma linha de corrimões brancos. Uma espécie de arena.

Salute Bernardi! – chama-o uma voz conhecida.

O ragazzo procura quem, elevando o olhar até os corredores abertos. Encontra Felix sentado sobre um corrimão.

– Por que essa cara de espanto? – continua o homem.

Ele sente um misto de alegria e ira – não consegue decidir-se em ficar feliz perante a presença do homem, ou xingá-lo por tê-lo deixado nas mãos de Ithan... a propósito...

Ele volta a reparar na presença avolumada que está diante suas costas. Quando os olhos arregalados espiam sobre os ombros, veem a Salamandra sentenciando-o aos olhos ainda insatisfeitos. Imediatamente, Bernardi se põe de pé e dispara numa corrida. Quando dá por si, tem percorrido até a outra extremidade, e está preste a escalar os primeiros assentos.

– SOCORRO SER. FELIX, SOCORRO – berra ele, deixando todo o horror que passou escapar nas palavras. – ITHAN QUER ME MATAR! ELE É UM PSICOPATA, E ESSE MONSTRO É UM DEMÔNIO.

A Salamandra rosna como se entendesse a ofensa, e Felix continua inexpressível como se nada estivesse acontecendo – nada fora do esperado. Pela porta que deu fim ao labirinto, Ithan surge das sombras, caminhando tranquilamente e trazendo os sapatos cujos Bernardi deixou para trás.

– Droga, você não precisava ter me chamado de psicopata. Isso não é algo que se diga a uma criança – queixa-se ele. – E eu ainda fiz-te o favor de trazer isso aqui. Oras. Tome aqui esses seus sapatos fedorentos. – Ele então os arremessa alto. Os calçados pousam e deslizam alguns centímetros antes de pararem bem ao lado de Bernardi. Bernardi poderia agradecer pela cortesia, claro, se a raiva por todo o resto que aconteceu não estivesse fervilhando em seu corpo; os olhos sombreiam contra o menino.

Por outro lado, Ithan pára ladeado ao seu monstro, acariciando aquela barriga escamosa. Imediatamente a Salamandra recolhe as presas ofensivas e altera a feição para uma relaxada e prazerosa; em seguida, pousa as patas dianteiras e esfrega a cabeça ronronante, como um gatinho carinhoso, no torso do menino.

– Você é uma boa menina... É sim...

Bernardi flagra em Ithan um sorriso que não esteja carregado de maldade ou ironia – um simples sorriso alegre. Surpreendentemente, passa a ser difícil enxergá-lo como um louco homicida; é apenas um menino brincando com seu incomum bichinho de estimação.

– Peço que não sinta ódio de mim. Não fiz o que fiz por prazer em te ver sentir medo – confessa o menino com sinceridade; humildemente cabisbaixo. – Fazia parte da iniciação.

– Fazia?

– Sim. Os fantasmas são seres das sombras. Conseguiu reparar o como enxergou bem mesmo sem luz? Ou que conseguiu misturar-se à escuridão, como se fossem um só?... Logo você aprenderá que é feito de sombras, que terá de enfrentar escuridões piores... e vai, sem se importar. Essa experiência foi para começar a acostumar-te com a escuridão, pois agora ela faz parte de quem você é. Bom, tudo também serviu para submetê-lo a um teste. Dois pássaros mortos com apenas um tiro. Imagina o resultado?

– Esclareça-me – pede Bernardi curioso.

– Você estava em uma situação difícil: um ser surreal encurralou-o dentro de um lugar escuro e sem saída. O intimidou. A situação aparentava que, a cada momento, você estava mais próximo do fim. Entretanto, mesmo corroendo-se de pavor, você lutou por sua vida, criou estratégias e não perdeu a esperança de êxito. E isso é exatamente o que nós, Servos da Morte, fazemos ao nos deparar com nossos inimigos, todas as noites.

O rosto perplexo de Bernardi entrega sinais de orgulho de si próprio – além de uma pitada restante de medo de Ithan em seu coração. Contudo, uma compreensão começa a ocupar o lugar de todo o ódio e rancor que sentia há pouco.

Ithan ergue o rosto admirado. – Corajoso não é aquele que não sente medo, e sim aquele que luta para superá-lo. Nunca se esqueça disso.

Grazie – agradece ele honestamente. A estranheza de agradecer Ithan por ter feito-o suar de horror, não estraga o sorrisinho contentado surgindo em seu rosto.

Portas, que Bernardi não havia notado, abrem brechas no corredor acima. Membros encapuzados aos Sobretudos brotam delas, enfileirados, espalhando-se por todos os cantos do corredor, senão ocupando os assentos. O ragazzo sofre com a pressão dos misteriosos olhares chovendo sobre sua cabeça. Rapidamente começa a perguntar-se o porquê de toda essa gente o assistindo como uma platéia em um espetáculo.

A Salamandra solta um som diferente, mas ainda inofensivo. Ithan entreolha-a com compreensão.

– Sim, chegou a nossa hora. Pode ir. Você trabalhou muito. Agora descanse.

O monstro então solta o último ronronar prazeroso enquanto ergue a boca na altura do pescoço do menino – Bernardi pode jurar que surpreendeu um beijinho. Aos poucos a Salamandra se desmancha em sombras e escoa atravessando um caminho inexistente pelo chão. Logo o punhado obscuro desaparece sem deixar qualquer tipo de rastro, exceto os que pairam na memória. A cena foi incrivelmente assustadora. Pena que os olhos de Bernardi parecem ser os únicos a sofrerem com a surpresa.

Agora, Ithan coloca as mãos sobre a cabeça e boceja algumas vezes enquanto dá meia volta para os corredores escuros.

– Acho que vou dormir um pouco. Scusi... Desejo-te toda a sorte, Bernardi – parece ser a última fala de Ithan; por outro lado, Bernardi tem quase certeza que ainda houve um sussurro: “vai precisar”, antes de o menino desaparecer.

Felix parece diagnosticá-lo apenas com os olhos, encontrando os inúmeros ferimentos que o ragazzo não confessa. Então, após Bernardi soltar uma cusparada de tom avermelhado, o homem corre o olhar para um Membro a poucos passos de distância, e encara o rosto sob a escuridão do capuz, que, porém, não consegue deixar de escapar alguns fios dourados pelos cantos.

– Ithan Arcelli é ótimo, mas estabanado às vezes. Você poderia descer lá e dar uma força, Anna? – pede ao Membro.

– Certamente mio babbo.

Demoram poucos segundos até ela, magicamente, estar com os pés na arena. E Bernardi só percebe-a quando ela então pára diante dele.

Anna descobre o rosto.

Compreensivelmente, ele parece apreciar seu o rosto angelical, naturalmente corado. Ela tem olhos azuis profundos e vigorosos, belos como os mares caribenhos. Cabelos loiros claríssimos e um corpo curvadamente escultural. De fato, Anna é encantadoramente bonita. Bem semelhante a uma Modelo que sempre estampa as páginas de uma revista que a madre de Bernardi costuma comprar.

Buon giorno.

–... Buon giorno...

Sem cerimônia, ela repousa uma mão sobre o peito de Bernardi e a outra alisa os arredores da boca dele. Aonde os dedos fazem trajeto, logo, começa a esquentar bastante, mas sem ardência. Aliás, o corpo todo dele está assim. Anna estende as mãos, assustadoramente, incandescendo um brilho cálido e enérgico. Por outro lado, o ar entrelaça ambos os corpos como o vapor de um banho quente matutino. Se veem na mesma situação que as mãos de Anna: aflorando ondas luzentes que formam uma aurora ao redor. Outros efeitos excêntricos andam atingindo Bernardi – primeiro uma dormência em todo o corpo dando o alívio às dores; segunda a sensação de estar sob um novelo de cobertores; um acalorado interno; o frio na barriga... entre outros. De tão excêntrico, porém, relaxante.

– Você está me curando? – arrisca ele convencido que as dores não vão retornar. Tem a afirmação, não por palavras, e sim quando esfrega a língua nos cantos da boca aonde, há pouco, havia o corte.

– Sim!

Molte grazie. Eu realmente estava precisando... Bom, onde estão mios modos hein?! Eu sou Bernardi Ba... – ele corta a si, quase dizendo o sobrenome que não lhe pertence mais. – É um grande prazer.

Entreolham-no os benignos olhos azuis, afogados em tranquilidade.

– Anna Beathriz Edwart. O prazer é todo mio.

– Edwart?! – repete ele com espanto. – Esse é o mesmo sobrenome do Ser. Felix e do Nervan. Você por acaso...?

– Sou filha de Felix, e irmã mais nova de Nervan. Bem notado.

Assim como fez com Nervan, Bernardi tenta encontrar semelhanças entre Anna e Felix. Consegue notar algumas ligeiras semelhanças entre ela e Nervan, porém, nenhuma é compatível a Felix. Contudo, consegue achar um fato bem mais excêntrico – uma família de Reencarnados?! Levando em conta tudo o que lembra ter ouvido, acabar como um fantasma não é algo hereditário, claro que não. Então, teriam eles morrido e renascido juntos por acaso?

Curioso, ele está quase sucumbindo à inclinação de perguntar, no entanto, engole a pergunta garganta abaixo, pois seria mais do que apenas um desaforo fazê-la. Então, no lugar, resolve soltar outra pergunta que, compreensivelmente, intriga-o mais que todas que tivera até agora.

– Como consegue? Como todos vocês conseguem fazer coisas assim...? – evita dizer “estranhas”, com receio de sofrer represaria de Anna ou de um dos donos das dezenas de olhares logo acima.

– Não tenha pressa em descobrir – ela diz como se não fosse algo agradável. – Você saberá se terminar a iniciação.

Repentinamente Intrigado, ele franze as sobrancelhas. – Se?!...

Cochichos indecifráveis pela altura correm pelo mar de olhares – Felix e a platéia ao seu redor anseiam um acontecimento, que não os permite ousar em desviar o olhar. O que será que tanto anseiam? Por que estão postos como a quem assiste ao final de um campeonato? Bernardi volta a ficar preocupado.

Vagarosamente espia além de Anna e se espanta com o corpo encapuzado pairando ali. Dois pontos acendem sob a escuridão do capuz, incandescendo dois brilhos esverdeados – os mesmos sentenciam Bernardi, carregados de más intenções. O garoto está pronto em perguntar “quem é... vo...”, mas uma moleza precoce tira-o do domínio de seu próprio corpo. Sua visão está escurecendo. A frase “o que está acontecendo?” entalou em sua garganta. Logo sente o corpo caindo sobre o assoalho de madeira e, inevitavelmente, assiste o brilho das lâmpadas desaparecerem.

Lentamente, toma de volta à consciência. A dor de cabeça só prova o quão profundo foi esse sono forçado. Deve ter se passado horas desde então. Bernardi desperta aos olhos semicerrados, enxergando um teto sem fim. Levanta o rosto estranhando as paredes feitas de gigantescos blocos de pedra, servindo de mural à fileira de lampiões mal acesos que, infelizmente, são as únicas coisas que dão luz a esse lugar.

– Onde estou? – murmura levantando-se do chão, refletindo sobre a estranheza surreal deste lugar. Sem dúvidas poderia ser confundido com as masmorras de um castelo assombrado.

Bernardi encontra uma saída arqueada pouco à frente. Atravessa-a, então pára os pés diante uma escada encaracolada sobrevoando um precipício – o qual seu fundo fora devorado por um breu. É loucura ou impressão de que tudo está realmente flutuando pelo ar? Bernardi confirma após não encontrar suportes que ergam a escada. Ao topo da escada, visualiza outro cômodo igual ao que está e na mesma situação: flutuando firmemente.

– Bem-vindo! – diz a voz de Felix de repente.

A voz dele propôs uma pitada de alívio. O ragazzo tenta achá-lo, procurando em cada canto possível, mas nem sombra de Felix por ali.

Ser. Felix, ainda bem. Onde estou? Como vim parar aqui? Ajude-me a sair, por favor – escapam as palavras desesperadas.

– Não posso fazer isso. Você tem que sair sozinho!

– Hã? Como?

Felix segura a resposta.

Entrementes, outro corpo sombreado surge de um canto desprovido de luz, e avança em passos silenciosos por trás do ragazzo.


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