Nesperim - A Irmandade Fantasma escrita por L S Gabriel


Capítulo 5
Capítulo 4 - Bem-vindo à Nesperim




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Não consegue flagrar, porém, Bernardi sabe que os olhares estão estudando-o – mas sempre que ele tenta surpreendê-los, todos se ocultam disfarçadamente. A propósito, ninguém além de Nervan veio cumprimentá-lo ou lhe dizer algo, nem mesmo olhá-lo diretamente nos olhos. Ignoram-no como se ele não estivesse ali. Será isso um mau-sinal?

– Ah... Nervan? Não é?

– Sim!

– Eu até acho que compreendo... Mas esclareça-me a controvérsia: por que tanta obscuridade rondando à praça, sendo que esse bar tem bons ares?

– Porque é assim que tem que ser! As pessoas lá fora repudiam esse lugar – ele responde a tal gosto nas palavras que acaba atiçando ainda mais a curiosidade de Bernardi.

– Como assim?

– Somos uma entidade secreta. Uma Irmandade. As pessoas não podem saber da existência dos fantasmas; muito menos a dos Servos... digo, Reencarnados – ele misteriosamente engole o que iria dizer. – Seria um caos se soubessem. Então, a maneira de mantê-las longe de nós é impondo-as o medo. Você deve ter percebido que de longe não é possível ver o nosso casarão. Já é um motivo para não virem aqui. Fora que ninguém se atreve a pôr os pés na praça; todos acham que ela é assombrada por fantasmas – ele ri abafado –, o que não deixa de ser uma verdade. – exclama. – E se alguém ainda se atrevesse a cruzar a praça e chegasse aqui, nada mais veria que o nosso pacato bar.

– Uma sequência de disfarces?! – conclui Bernardi, a contrapartida indagando para si o motivo obscuro de tanta descrição.

Ainda tem muitas perguntas a fazer, no entanto, para começar, solta a menos importante no momento: – Por que todos aqui usam esses estranhos trajes como o seu? É alguma espécie de uniforme?

Não deu para segurar a pergunta, após ver uma moça engravatada esfregando o chão.

Estranhamente a careta raivosa que Nervan faz é como a de alguém que acabara de ter os calos do pé pisados.

– Não é um uniforme, e sim vestes sagradas presenteadas pela Morte, que honra nossa existência. – filosofa o sujeito.

Realmente deve ser apenas um uniforme, pensa o ragazzo, no entanto contrariar a crédula filosofia do enigmático rapaz não cheira à boa ideia. A propósito... – Todos aqui são iguais a você... ou melhor, a nós? Fantasmas vivos? Reencarnados...

– Sim!

– E todos podem fazer aquelas coisas esquisitas que você faz? – solta ele com um mínimo tom de empolgação.

No entanto, contém quando assiste o rosto de Nervan – de repente pasmo – embranquecer como a quem viu um fantasma. O porquê vem à tona: um homem grisalho debruçado no balcão, rodeado por umas cinco garrafas vazias, estapeia o suporte, que solta um explosivo rugido.

– O que esse moleque disse? Chamou-nos de esquisitos? Chamou todo o nosso dever, a nossa Arte, Dogma e poder sagrado de esquisito? – rosna ele, uma voz extremamente melancólica.

Repentinamente um silêncio tenso assombra todo o bar, agora, pesaroso, assim como os olhares roubados e sentenciadores que aguardam algo acontecer.

O homem de pele parda está bravo e rosnando como um cão raivoso, enquanto aponta um dedo a Bernardi e segura uma garrafa esperando dois goles para secar. Seus olhos negros parecem brilhar de tanto lacrimejar. Um tornado deve ter acabado de passar por seu cabelo cinzento e liso, para deixá-lo tão bagunçado sobre o rosto angustiado. No entanto, por mais desnorteado que o homem demonstre estar, parece estar mais deprimido do que embriagado – o que deveria acontecer, contando todas as garrafas vazias que ele deixou no balcão.

– É assim que você agradece aqueles que estiveram te protegendo desde que você deu seu primeiro suspiro?! Hein?

O potente aroma de álcool incensa todo arredor. Não demora um segundo e a ardência forte impregna o nariz que logo acarreta uma irritação aos olhos. Agora Bernardi sabe o porquê já não ouvia a respiração de Nervan. Mas não é isso o que preocupa-o. Proteger? Ele não faz a menor ideia sobre o que o homem se refere; mas preocupasse quanto a ter provocado essa fúria nele. Pode ser perigoso, portanto...

– Desculpe-me senhor – pede a voz oca de Bernardi prendendo a respiração.

– Desculpa? Desculpa?... Acha que é fácil ofender a divindade e pedir apenas desculpa? – estranhamente o homem parece ter ficado ainda mais ofendido. Ele ergue a palma da mão ameaçando o ragazzo. – Só há um modo de se redimir. Levando uma boa...

O homem mal cambaleia três passos tortos para então estar, materializado ali, de repente, a dois passos diante de Bernardi. E, no outro piscar de olhos, o ragazzo encara as costas de Nervan servindo-o como barreira perante os dois.

– Por favor – clama o rapaz rapidamente e, notavelmente, um pouco temeroso.

E o pedido parece ter sido atendido. Calmaria.

Curioso, Bernardi espia além dos braços do sujeito. Outros dois Membros estão, cada um, segurando um braço do homem.

– Mantenha o decoro – pede um deles, a voz ligeiramente aguda. Enquanto o outro nem se preocupa em abrir a boca ou, aparentemente, se importar.

– Decoro?! Mas esse fedelho desrespeitou nossa divindade... – resmunga o rosto enfurecido.

– Relaxe velho Phill. Ele Ainda não sabe de nada. – O sujeito entrelaça o braço no pescoço do homem, forçando-o gentilmente a dar as costas e a acompanhá-lo até o balcão, dizendo propositalmente tudo o que o homem queria ouvir: – Venha, vamos tomar aquele veneno juntos, e você me contará outra de suas aventuras de quando era jovem.

– Mais respeito comigo, ragazzo – rosna relutantemente contente, convencido em trocar a sua atenção de Bernardi para uma nova garrafa cheia.

Risos abafados e contidos vêm de todos os lados e quebram o ar tenso. Os únicos a não participarem do couro de risos são Bernardi, Nervan e o outro Membro que segurava o homem. O sujeito de feição severa já está sentado e lançando olhares secos a Bernardi, que, porém, está totalmente distraído com outra coisa: Nervan suspirando aliviado.

– O Ser. Caneparo é alguém adorável, quando está longe das bebidas – comenta Nervan. – E você, tome cuidado com suas palavras antes de dizê-las, por favor. O que pode ser apenas um comentário inofensivo, às vezes acaba sendo ouvido como uma blasfêmia. Pelo menos aqui.

– Desculpe-me. Não imaginei que causaria essa confusão.

Logo o rapaz transparece não se importar mais. – Va bene. Você não disse com más intenções. Venha. Já perdemos muito tempo aqui em cima.

Ele força-o a dar três passos, empurrando gentilmente as costas de Bernardi, porém este derrapa ao quarto e lhe aponta o rosto duvidoso.

– Em cima?

– Você vai entender logo.

Atravessam o bar desviando das mesas, Membros e olhares misteriosos. Lá no fundo, onde quase não há luz, encontram uma porta, que se abre em uma escada. Descem-na e, depois de outra porta, pairam num extenso corredor muito bem iluminado a cada centímetro.

– Subterrâneo?! – conclui Bernardi boquiaberto.

– Sim. Eu te disse que lá em cima era apenas o bar. Aqui é a verdadeira sede da Irmandade. É enorme... Pense um pouco. Se fizéssemos tudo em cima seria tão amplo quanto um shopping e...

– E atrairia atenção e investigação – completa ele instantaneamente.

– Exatamente!

Adiante, Nervan guia Bernardi, que não sabe onde deixar os olhos – espia todos os enormes corredores e cômodos que interceptam esse. Primeiro atravessam a biblioteca infestada de fileiras de gigantescas estantes. De tantas, Bernardi não consegue encontrar à última, ou seus topos perdidos no teto. Sarah iria adorar essa biblioteca! Ele não pode deixar de concluir ao afastar a atenção dos livros. O quarto da ragazza tem uma parede que mal se pode ver a cor por estar escondida atrás de duas estantes abarrotadas de livros. Mas isso não vem ao caso agora...

Passam por portas trancadas, outras que dão a cômodos obscuros ou guardando objetos, ferramentas e bugigangas que Bernardi não faz à menor ideia do que sejam. Passam por uma porta aberta, e Bernardi derrapa com o rosto virado ao seu interior.

– Esse é o nosso alojamento – esclarece Nervan voltando alguns passos.

Entretanto, o ragazzo tem-no descoberto por si só. Como a todo o momento, atira o olhar por todas as direções sem saber onde pará-lo – se é nas paredes marrom-carvalho bem decoradas por símbolos indecifráveis, ou no gigantesco e arqueado sofá branco perto das dezenas de poltronas; na lareira à extremidade da sala, centrando o início de um par de escadas; os moveis sofisticados... Tudo. Poderia ser facilmente confundida como uma suíte de um hotel cinco estrelas ou o decorrer de uma loja de móveis caríssimos de Nova Roma.

– Se desejar, pode ir olhar os quartos. Estão logo além, subindo as escadas – sugere Nervan percebendo a justificável empolgação do convidado.

Bernardi sobe a escada mais próxima deparando-se com um corredor corrido por portas de ambos os lados. Tenta contar quantas, no entanto é ofuscado pela hora que não consegue ver o fim oculto nas sombras.

Saem pouco depois e voltam a caminhar pelo corredor principal. Encantado por tantos cômodos e corredores, entretanto, pela primeira vez, Bernardi passa a refletir sobre onde Nervan está levando-o.

– Aonde vamos agora? – decide perguntar.

– À sala do líder!

– Felix? – indaga ele recordando disparado o nome que viu no bilhete.

– Exato.

Isso toma os pensamentos de Bernardi e atiça sua imaginação: como será esse tal Felix? De relance, imagina um velho enrugado como uma uva-passa, coberto por uma cabeleira e uma barba cinzenta caindo na altura dos pés. Depois, não – e lembrando-se da ameaça de morte, imaginando então a figura de um homem meio século de feição rabugenta. Porém, ele é um fantasma... e se for um espírito preso em uma estátua como Bernardi viu em um filme? Ou quem sabe um ser secreto repousando sob um lençol branco e falante...

Perdido em sua imaginação, porém, desperta assim que precisa derrapar para não bater o rosto nas costas de Nervan, cujo parara de repente diante uma porta comum.

– Chegamos – informa o rapaz, antes de bater na porta.

Silêncio.

Ele resolve bater mais uma vez. Outra vez... Outra vez... Mas nada acontece.

– Eu não acredito que... – resmunga ao murmúrio.

Nervan abre a porta e entra sem cerimônia, acompanhado por Bernardi. O torso de um corpo está debruçado numa mesa ao fundo da sala, sob um Sobretudo negro acobertando a cabeça e estancando para esta a claridade da sala. Bernardi se assusta, e ainda mais ao flagrar o rosto de Nervan sombrear-se como uma tempestade invadindo um céu ensolarado. E não demora muito até o sujeito extravasar – culpa dos repetitivos e baixos ruídos... de... roncos profundos?!

– DORMINDO DE NOVO À LUZ DO DIA. QUE VERGONHA! – vocifera Nervan autoritariamente.

Imediatamente, o corpo volta à vida após dar um pulinho sentado à cadeira. O melancólico e espantado rosto abre caminho sob a veste.

– Oras... já disse que detesto quando sou acordado desse jeito. Não custava nada vir e me cutucar. E também pare de implicar; era apenas uma soneca inocente de alguns minutos. O único modo de eu ter paz, mesmo que por pouco tempo. Sabe que durmo muito pouco durante os anos – resmunga um homem, como se estivesse com a razão ao seu lado. O braço por qual dormia fez questão de deixar um caminho avermelhado de marcas correndo por seu rosto.

– E quem aqui não dorme muito pouco durante os anos? – retruca o rapaz.

Afrontado e, portanto, quieto, o homem vasculha uma nova desculpa, ou apenas começa a realmente despertar.

– Bom, de todos sou o que menos dorme, portanto mereço o privilégio de alguns cochilos. – ele alega antes de engolir um bocejo e pigarrear para mudar de assunto. – O que você deseja tão cedo, Nervan?

Este toca no ombro de Bernardi e empurra-o dois passos à frente.

– Ele veio até nós!

– Ah, sim...

O homem se levanta retirando o Sobretudo que cobria a cabeça, e o envolvendo-o de volta ao tronco.

Felix? Bernardi estuda-o sem conseguir associar a figura com as que ele imaginava. É um homem alto, magro e aparentemente novo. Cor parda escura e olhos castanhos assim como seu curto cabelo.

– Esse é Felix Edwart: o líder – apresenta Nervan.

Por outro lado, Felix já tem a mão estendida, enganchada e sacudindo a do visitante. – Muito prazer – cumprimenta ele sorridente.

– O prazer é todo mio – responde o ragazzo balançando a cabeça sincronizada à mão.

– E Babbo, esse é Bernardi.

Babbo? – questiona Bernardi, entreolhando Nervan com espanto.

– Sim, ele é o mio pai. Eu te disse mio sobrenome quando nos conhecemos. Achei que ao menos associaria como parentesco.

Pensando melhor, Bernardi se recorda agora. De fato, Edwart. A contrapartida, não consegue encontrar alguma mínima semelhança entre os dois cavalheiros.

Com toda a certeza, o líder não é o que Bernardi esperava; pode ser apenas impressão, mas o homem esbanja um ar debochado e tranquilo. Outro fato intrigante é o de Felix ser jovem... mais jovem que o bêbado que Bernardi teve o desprazer de conhecer há menos de uma hora. Estranho, pois, geralmente, lideres são os mais velhos – aqueles que carregam mais anos experientes ao corpo e na inteligência.

Assim como o ragazzo estuda-o com inocência, Felix também o faz; quieto e concentrado para poder ficar íntimos de seus resultados visuais.

– Nervan, mio filho – chama olhando-o agora. – Poderia nos dar licença? Eu e Bernardi temos muito a conversar.

– Como queira. Sabe onde estarei. Scusi – despede-se ele inclinando o rosto: uma reverência. Então, recua à porta e se retira da sala.

Bernardi acompanha a porta se fechar com receio de não ter agradecido Nervan por tê-lo ajudado até então. Quando volta o rosto, assiste o momento que Felix se acomoda novamente em sua cadeira, porém, agora com uma postura reta.

– Acomode-se – ordena.

E o ragazzo acata, sentando-se à cadeira contrária ao homem.

Encontram-se quietos. Ainda após poucos minutos, Felix persiste em desvendar o visitante através de um olhar penetrante. Isso o incomoda profundamente, mas, para ser cordial, o ragazzo luta para deixar os olhos cinza firmes. O ar está mais pesaroso ao quando estava discutindo com o aquele bêbado rude.

– Jovem Bernardi, responda-me: o que o senhor sabe sobre fantasmas?

Ele reflete uns segundos antes de responder.

– Acho que o mesmo que as pessoas sabem: almas de pessoas mortas, assombrando lugares ou pessoas por aí.

– O senhor acabou de dizer algo muito inteligente: “o mesmo que as pessoas sabem”, ou seja, nada além de uma crença popular. Bom. Muito bom. – comenta o homem transparecendo satisfação. – Mas essa não é exatamente a verdade. Almas, mio jovem, recém-falecidas que têm a infelicidade de sucumbir a razões distintas que impedem-nas de trilhar o caminho da paz, deixando-as presas entre os vivos. Esses são os fantasmas: especialmente, os Reencarnados e os Espectros.

Espectros? Certamente é uma palavra que Bernardi já leu em alguma pesquisa momentânea, entretanto perde a luta para recordar qual e aonde a encontrou.

– Isso não é um acaso, e vai além de um fenômeno sobrenatural. Assim como a vida e a morte. Não que seja apenas isso, mas cada fantasma tem um motivo próprio para nascer. Geralmente sentimentos fortes que acorrentam a alma. Apenas aquele cujo esteve na hora da morte sabe se foram bons ou ruins... O senhor sabe os seus?

Bernardi faz um silêncio tristonho, antes de encorajar uma resposta: – Viver! – murmura cabisbaixo. – Eu só queria viver mais um dia. Poder acordar novamente e ver minha família, ver mios amigos. Ver mais um dia normal. Poder arrepender-me e pedir perdão a todos por tudo o que eu fiz; por tudo o que deixei de fazer...

– Talvez essas sejam as suas razões para ter renascido. Mas há outra razão além dessa para o senhor ter sido agraciado com essa vida. Um Reencarnado.

– Reencarnado – soa como um resmungo –, você e Nervan vêm me chamando disso desde ontem, e eu mal entendo o que realmente isso significa. Um fantasma vivo; isso nem soa com lógica.

– Mas quem disse que apenas as coisas lógicas são as verdadeiras. Querendo ou não, essa é a verdade! – retruca Felix debochadamente. – Ser um Reencarnado, jovem Bernardi, significa renascer. Ser um distinto escolhido. A mesma alma reencarnando numa nova vida, novo corpo, novo ser, novo propósito... Um fantasma disfarçado de mortal para servir uma causa sagrada. Infelizmente falidos de tudo o que tinham: família, amigos, bens, identidade, tudo, exceto a semelhante aparência e as lembranças para nos recordar de quem já fomos um dia. – Felix pareceu sofrer pontadas dolorosas a cada palavra que soltou. – Um resultado diferente, mas igualmente doloroso quanto a se transformar num Espetro; acho que o senhor já teve a infelicidade de conhecer um.

Quietado, Bernardi demora poucos segundos para juntar os pontos.

– O senhor... – a angústia de recordar empaca as palavras –, está se referindo àquela criatura assombrosa que tentou... me assassinar?... Aquilo era um Espectro?

– Sim. Diferente dos Reencarnados, os Espectros não reencarnam; suas almas sofrem uma macabra transfiguração. Almas vagantes e solitárias que ficaram presas aqui sem saber como descansar em paz. Algumas conseguem escapar a tempo resolvendo algumas pendências... Outras... – ele sacode a cabeça aos lados, lamentando algo. – As almas vagantes são frágeis: poluem-se com a impureza dos pecados cometidos quando vivos, ou do mundo ao seu redor. A dúvida, o medo, arrependimento, solidão... qualquer sentimento obscuro. Quando não aguentam mais, sucumbem a uma assombrosa metamorfose e acabam transfigurados em seres de aparência e instintos malignos e maliciosos. Esses são os Espectros. Criaturas obcecadas por devorar ou roubar o máximo de vidas possíveis; alimentar uma fome insaciável e fortalecer-se cada vez mais para poderem continuar aqui. Não importa quem: um familiar, amigo, pessoa amada ou admirada... todos se tornam vítimas aos olhos de um Espectro.

Felix descrevera tão bem que Bernardi evita pregar os olhos para não ter a escuridão como o cenário daquelas cenas apavorantes – daquela criatura apavorante.

– Devorando ou roubando minha vida? Então era isso que ele estava tentando fazer comigo? – murmura Bernardi, levemente resfolegando como se uma pequena parte daquela dor ainda afetasse-o. Não há como explicar o quão doloroso foi. Mas, sem dúvidas, pode jurar que fora a pior dor que já sentiu em toda a sua vida.

– Parabenizo e muito o senhor por ter evitado a morte de seus familiares; foi uma grandiosa proeza. Entretanto, atrevo-me a dizer que teve muitíssima sorte, pois eram poucas as chances do senhor atrasar um Espectro, mesmo este sendo apenas um recém-nascido. Por Deus a ajuda chegou a tempo e pôde impedir que o Espectro atacasse outro além do senhor.

Bernardi confessa que sim com o rosto assustado.

– Se os Espectros são tão terríveis e macabros, então quem são aqueles que os impedem?

O homem faz uma pausa misteriosa, até a sombra de um sorrisinho orgulhoso curvar seus lábios.

– Somos nós, os Reencarnados, jovem Bernardi.

Inesperadamente, Felix começa a contá-lo detalhadamente sobre uma história: o Conto da Origem dos Fantasmas. E, ao fim, espera que Bernardi – um misto de fascínio e horror – absorva toda a informação, e seu rosto cabisbaixo termine de soltar pequenos suspiros. Então Felix decide continuar.

– Como o senhor acabou de ouvir, não é um acaso o senhor ter reencarnado. Não é apenas um fenômeno. Tampouco uma maldição. E sim um oculto chamado. Naturalmente como fantasmas, os Reencarnados são criaturas das sombras, criados para servir a Deus e ao anjo da morte. Somos uma divindade: os Servos da Morte. Todos aqui nessa Irmandade... A Nesperim vem honrando devotadamente o dever que nos foi confiado: proteger os vivos dos diabólicos Espectros.

Bernardi vê que a cada palavra está mais difícil lutar para absorver o que Felix diz. Novamente, precisa de um tempo para digerir as últimas informações, e mais um pouco para voltar à realidade.

– Ocultismo? – atreve-se quando, finalmente, acha uma palavra para dizer.

– Exatamente. Agimos nas sombras para salvar os vivos sem sermos repudiados. Estudamos e fazemos aquilo que o homem não pode saber. A Nesperim, de certa forma, é uma sociedade secreta, e há muitas Irmandades dela espalhadas pelo mundo. Algumas, pequenas que só podem proteger uma cidade, como a nossa... Outras, de tão grandes, que podem proteger um país inteiro...

Ele se levanta da cadeira, dando as costas para Bernardi, e encara a parede como se estivesse vendo algo através dela ou, simplesmente, evitando contato visual com o ragazzo.

– Somos poucos, jovem Bernardi! – retoma a voz sentida. – Se tornar um fantasma é algo raro para ambos os fenômenos. E ser um Servo da Morte é um fardo honroso, mas, no mínimo, pesaroso e doloroso. Para ser sincero, nenhum de nós optou por isso: perder a família, os amigos, a identidade... O senhor não é o primeiro e nem o último a enxergar isso como uma maldição. Confesso que eu sou um dos muitos que, um dia, preferiu morrer ao trilhar essa vida excêntrica e instável. Mas saiba que ela é uma benção; somos criaturas divinas, e imprescindíveis para a paz.

– E acha que eu deveria ser um Servo da Morte também? – comenta Bernardi, antecipando o que espera que Felix vá pedir.

– Se assim o senhor desejar. Nossa Irmandade tem a obrigação de proteger Moreau. Não temos muitos Membros; não deve se passar de uns quinze, e para proteger uma metrópole... isso é pouco. Os Espectros estão por aí. Os Mortais precisam ser protegidos, e às vezes nosso alcance não é o suficiente. O senhor é uma prova disso: morto por um Espectro.

O homem vira o rosto sério a Bernardi, que a cada segundo fica mais e mais assustado e confuso.

– Não forçarei o senhor a se juntar a nós; afinal, você veio aqui para ter respostas. Mas eu estou lhe convidando a deixar de se lamentar pela vida que perdeu, e usar essa que foi presenteado para um propósito nobre: evitar que outras pessoas tenham o destino drástico que o senhor teve, ou pior. O que me diz?

As ideias giram, voam e colidem na cabeça de Bernardi. Foi informação demais – algo que, com toda a certeza, passa longe da realidade. Já esperava ouvir coisas malucas e assustadoras, todavia não tão quanto para deixá-lo trêmulo e perplexo novamente. Não encontra palavras. Uma das coisas que o Espectro deixou cicatrizado foi um forte pavor de ter que sofrer outra noite como aquela novamente. E, se aceitar ser um Servo da Morte, as chances de ver Espectros mais horrorosos e ter noites mais assustadoras e dolorosas, são verídicas. Tem pavor só de imaginar isso. Pode apostar que não consegue ficar nem cinco segundos no escuro sem tremer ou delirar de tanto esperar outra criatura diabólica tentar matá-lo a qualquer custo – imagine viver caçando e sendo caçado por fantasmas malignos e sentir o medo corroê-lo, mais e mais a cada noite. Ver mais seres horrorosos para lhe servirem de vilões nos seus pesadelos ou lhe roubarem o sono... Isso se não matarem-no.

O “no, grazie” está quase escapando de sua boca. Contudo, uma coisa que Felix comentou é quem impede uma decisão – há outros Espectros pela cidade e há poucos Reencarnados na Irmandade. Poderia acontecer de outro Espectro reaparecer em sua casa e atacar sua família?! E, se talvez a Irmandade não pudesse chegar a tempo e fazer algo, sua família acabaria morta. Poderia ser a de seus vizinhos também, amigos, aliás, qualquer família. Ele sendo mais um Servo da Morte poderia fazer a diferença.

Então... será esse o momento de mudar? Viver um propósito? Um propósito não egoísta igual ao que tinha? Não deixar que outros sofram a insuportável dor de estar perdendo a vida como ele sentiu?... Sinceramente, nenhuma pessoa merece experimentar a angustia de assistir sua vida ser levada.

Bernardi se ergue devagar. Seu olhar não desgruda do chão. Ainda não acredita que esta foi sua decisão. Sua mente lança diversas justificativas para fazê-lo desistir; porém, só de relembrar que sua vida destruída já não tem outra razão ou lugar para continuar a sua existência, ele repudia qualquer motivo para fazê-lo repensar.

– Eu aceito! – força as palavras a saírem.

Imediatamente Felix não contém o sorriso contentado, espiando Bernardi por cima dos ombros. Apressadamente, ele retira um chapéu preto do cabide de pé ladeado à mesa, e o encaixa na cabeça.

Perfetto. Venha comigo – ordena, passando por Bernardi e abrindo a porta.

– Aonde vamos? – pergunta ele seguindo-o.

O homem contém uma resposta até fechar a porta e começar a guiar o ragazzo pelo corredor. – Para a sua iniciação!

– Iniciação? Achei que a aceitação bastaria.

– Você pode ser um Reencarnado, mas ainda não está nem um pouco apto a ser um Servo da Morte. Ainda.

Desperta então um pensamento preocupante. Até onde ele imagina, geralmente, iniciações para seitas dependem de cerimônias ou ritos de passagens para serem concluídas... e, quase sempre, isso termina com marcas dramáticas para o iniciante, para não se dizer o pior.

Ser. Felix, mais detalhes, por favor – pede ele assombrado pelo o que pode estar por vir.

– Não tenha pressa.

Não dizem mais nenhuma palavra até cruzarem o corredor à esquerda e mirarem uma porta bem robusta de metal, a poucos metros adiante.

– Chegamos Bernardi! – exclama Felix, antes de erguer a mão em saudação a uma figura guardando a porta. – jovem Ithan Arcelli, Ciao – cumprimenta ele próximo a um menino de baixa estatura; pele cor de azeitona, mas com um corar natural manchando os centros das bochechas ligeiramente estufadas. Dono de olhos pretos e um franjado cabelo loiro caindo pelo rosto, porém com boa parte escondido abaixo de uma espécie de touca preta e pontuda.

Buon giorno, mio Messere – cumprimenta, reverenciando a cabeça para Felix.

– Pontual como sempre, hã?! Preciso que leve o jovem Bernardi ao local da iniciação.

– Como desejar, senhor – concorda Ithan, sem se preocupar em também saudar a presença de Bernardi, ali.

No entanto, o ragazzo se preocupa com outro fato: – O senhor não vem? – pergunta a Felix.

– Esqueci umas coisas em minha sala; que cabeça a minha, não é?! Terei de voltar e buscar – esclarece ele, mas parece usar isso para acobertar algo a mais. – Partirei então. Arrivederci – despede-se e logo some voltando os passos que fizera junto a Bernardi.

Quando ele volta a olhar Ithan, o menino tem retirado um Molho de Chaves dourado do bolso, das quais, reparando atentamente cada detalhe e formato de cada chave, ele seleciona uma notavelmente torta das dezenas de chaves que passou o dedo. Destranca a porta de metal, que range desafinadamente ao escancarar-se por vontade própria.

– Por aqui – murmura Ithan.

Bernardi atravessa o batente e, de repente, uma escuridão se abre sobre seus olhos. Com poucos passos dados, se vê em outro corredor carente de luz – muito mal iluminado por uma trilha de lâmpadas florescentes tremulantes, próximas ao ponto de queimarem.

Outro ranger desafinado misteriosamente arrepia o seu pescoço. E então...

TOOOOOOOOOOM!

O estrondo da porta estourando contra o batendo faz Bernardi se virar com o coração chegando à garganta – quase o vê escapar pela boca ao assistir o momento que Ithan guarda o Molho de Chaves no bolso após trancar a porta.

– O que significa isso? – não demora a perguntar.

A boca de Ithan curva-se em um sorriso maldoso.

– Está diante do obscuro labirinto dos corredores. Este é o caminho para sua iniciação... Ou... a sua tumba, Bernardi.

O rosto de Bernardi já entrega estar vencido pelo precoce pavor.

– O que você está falando? Você está louco? Deixe-me sair – esbraveja.

– Não! Não vai ser fácil sair daqui.

Aparentemente o único jeito é tomar à força a chave de Ithan para poder sair. Analisando a situação, não parece um grande desafio – Ithan é apenas um menino baixo e franzino, com pouco mais que uns doze anos; não será tão difícil lhe derrubar e furtar o Molho de Chaves. De longe Bernardi não faz o gênero brigão – poucas vezes na vida teve que brandir os punhos para alguém; mas esta parece ser uma destas situações. O ragazzo franze o rosto falsamente intimidador e avança a passos largos. No entanto, no terceiro ou quarto, um aperto gélido abala seu coração e logo sufoca seu nariz. Perde o controle de suas pernas travadas e sua postura firme – agora trêmula como uma folha diante uma tempestade. Outra vez sucumbindo a uma força arrasadora e intimidadora que tem o desprazer de sentir novamente: o medo.

Ithan curva um sorri maleficamente orgulhoso. – Você realmente acreditou? Acreditou que por causa dessa aparência frágil, tomaria a chave de mim como um doce de uma criança? Você é tão insolente! – zomba expandindo o sorriso detestável.

O medo dá-lhe uma trégua e abandona-o de repente, voltando Bernardi à normalidade. Ou quase. É um prazer imenso voltar a respirar, mesmo através de suspiros fundos e dificultosos. A volta da sensibilidade o faz sentir o suor frio se arrastar pelas faces – finalmente nota o quanto encharcado está seu corpo, como quem acabara de tomar um rápido banho de chuva.

Ithan gargalha de sua expressão amedrontada, igual a quem assiste uma comédia.

– Quer mesmo continuar vivo? Tenho uma proposta para você. Que tal nós brincarmos um pouquinho?

– Louco! – acusa a voz ainda abafada pela angústia.

– Vamos?! É só um joguinho... Um joguinho das trevas –. O menino diz a tal gosto que dá mais arrepios. – Fuja daqui, e ache uma das saídas que há nesse labirinto. Se conseguir, estará livre... Do contrário...

Ithan estende uma das mãos. Em resposta, uma ventania forte percorre o chão – o que é no mínimo assustador, pois o lugar é totalmente fechado. Sombras brotam do chão e se amontoam até moldarem-se na forma de um corpo alto, robusto, curvado e humanóide. Uma salamandra corcunda e de escamas obscuras ressurge. Seu olhar amarelo e sem vida miram o rosto espantado de Bernardi; os dentes pontudos como agulhas brilham na escuridão. Mas talvez, não sejam tão afiados quanto às garras ou os espinhos que trilham as costas até a ponta da longa cauda. Vapor escapa por suas narinas, sob um curto chifre.

Bernardi só não está mais petrificado porque voltou a tremer de medo desenfreadamente. Que diabos será essa criatura? Como Ithan convocou um monstro desses do nada?... Não, não é hora para perguntas. Comprovando que a expressão psicótica de Ithan não transparece esperar apenas uma brincadeira, Bernardi dá as costas para o monstro e voa escuridão à dentro o mais rápido que suas pernas permitem.

– É... Ele entrou no clima do jogo –. Ithan se aproxima do monstro e dá-lhe duas tapinhas numa área das costas desprovida de espinhos – Vá pegá-lo. E depois... Bem, você já sabe o que fazer!

– Sim... – chia a voz arrastada. A criatura rosna ferozmente. Ela pousa as patas dianteiras no chão e dispara galopando atrás de sua nova presa.


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Notas finais do capítulo

E o perigo só começou...



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