Nesperim - A Irmandade Fantasma escrita por L S Gabriel


Capítulo 4
Capítulo 3 - Assistir o Próprio Enterro


Notas iniciais do capítulo

O que vem após a morte...



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A porta é fechada gentilmente. O corpo obscuro que paira diante dela, e rouba suspiros apavorados de Bernardi, resolve revelar o rosto escondido sob a escuridão do capuz pontiagudo. Esperando outra criatura fantasmagórica, porém, Bernardi se permite a voltar a respirar quando encara a figura. Trata-se de um jovem rapaz cujo deve ter acabado de completar uns vinte anos. Pele cor de oliva rosada, olhos azuis claríssimos, e o cabelo Chanel castanho escuro franjando o rosto. Olhando melhor, as vestes escuras não passam de um belo, mas excêntrico, Sobretudo de quatro botões no centro; negro do capuz aos sapatos, exceto a camisa branca de gola fina e uma espécie de gravata estufada de cor índigo.

– Ah, por Deus você despertou. Salute – diz a voz calma e amigável, como se ele e Bernardi fossem velhos conhecidos. – Dormiu por três dias inteiros. Deve estar mais que descansado.

– Três dias? Não, eu não posso ter dormido por tanto tempo assim – discorda Bernardi desconfortado com a presença do sujeito. – Quem é você?... É a Morte? – indaga, estudando e assemelhando o traje do sujeito às que a Sombra usava. Ou, talvez, as do vulto que apareceu no último segundo.

– A Morte?! Não. Sou apenas um servo dela – responde o Estranho com uma assombrosa normalidade e prazer. – Ah, onde estão mios modos?!... Muito prazer, eu sou Nervan Edwart...

Ele vem estendendo a mão ao ragazzo, que apavora-se diante o gesto de cortesia.

– Não se aproxime! – vocifera ele, rápido e amedrontado, fazendo o Estranho frear seus passos. Como se o grito pudesse provocar algo, estranhamente, o sujeito corre os olhos pelo quarto, certificando-se de que tudo ainda permanece em seu devido lugar. – Por que me trouxe para cá? Onde estou? O que aconteceu comigo? O que fez comigo?... – continua o ragazzo angustiado, massageando a cabeça como se as dúvidas estivessem machucando-a.

– Acima de tudo, tente manter a calma. Em primeiro lugar, para o seu bem – pede Nervan gesticulando com a mão. – Em segundo, você vai precisar. Não vai ser fácil compreender, ou melhor, nem um pouco... Mas você precisará aceitar...

Boquiaberto, Bernardi pára os olhos atordoados ao nada. Resfolega, preparando a si a continuar ouvindo. Seu silêncio permite Nervan a continuar.

– Sei bem o que te incomoda: a dolorosa dúvida se o que aconteceu foi real ou um pesadelo. A morte. Sente-se diferente como se fosse outra pessoa; todavia o cérebro tenta convencê-lo que continua o mesmo, mas o espelho desmente isso, lhe mostrando mudanças até na sua aparência... Quer a verdade, não quer? Quer saber o que te aconteceu?

– O que aconteceu? – pergunta rápido e extremamente curioso.

– Acredite: aquela noite foi tão real quanto você não quer acreditar. Cada segundo dela. Aquele ser medonho. Os ferimentos. Sua morte...

– Pare de falar em morte – corta Bernardi irritado. – Eu não morri! Eu ainda continuo aqui, vivo, veja. Oras, por que estou dando ouvidos a você?! Não passa de um louco.

– Você sabe que o que digo é verdade – retruca Nervan, o tom de voz mais autoritário. – Pode tentar mentir para mim, mas não para si próprio.

– Suas asneiras não fazem sentido algum, pois ainda estou aqui, não estou?! Vivo e respirando.

– Você é um Reencarnado – alega o rapaz. – Um fantasma, porém vivo. Uma alma que renasceu após a morte em uma nova vida. Um novo corpo. Um novo ser, diferente ao que era. Um novo propósito.

– Mentiroso. Você é um louco e um mentiroso – esbraveja ele voltando as mãos à cabeça, bagunçando o cabelo enquanto chacoalha-a aos lados. Um sinal claro de desespero.

– Você é prova disso. Olhe-se no espelho. Procure em seu corpo os ferimentos ou suas cicatrizes; veja as mudanças; ou então, contente-se com as lembranças em sua mente...

– BASTA!

Desesperado, Bernardi avança agressivamente, esbarrando em Nervan e saindo de supetão pela porta. Os olhos molhados de medo se veem agora em um bem luxuoso e vasto bar. Movimentado por pessoas vestidas em Sobretudos estranhos iguais ao de Nervan, caminhando sobre um piso xadrez como um tabuleiro. Lustres amarelados e cravejados iluminam as paredes cor de carvalho. Entretanto, Bernardi está mais preocupado em encontrar a saída ao contemplar o resto da decoração. Atravessa as mesas e cadeiras de madeira simetricamente organizadas, e fura o fluxo de corpos, que parece não ter fim. Finalmente portas surgem além de mais dois sujeitos. Bernardi empurra uma das metades e atravessa, sentindo parte de seu pavor amaciado. A escuridão serena da madrugada estrelada abre-se sobre suas vistas. Agora, corre em uma pista plana e deserta, guiado pelas luzes da cidade e dos faróis de carros longínquos, que não estão aproximando-se aos segundos da corrida. Ajudado por alguns postes – tão negros quanto o céu – que iluminam seus passos. Durante a fuga, ele desvia de raspão de vultos estranhos, que surgem repentinamente como se tentassem pará-lo. Infelizmente acaba esbarrando em algo forte e recua alguns passos, apontando o rosto aflito ao que lhe rebateu. É Nervan, outra vez, encarando-o; firme perante o esbarrão, como se colidir contra o ragazzo e um travesseiro fosse a mesma coisa. Impossível, como ele chegou ali antes de Bernardi, que o deixou plantado no quarto?

– Eu disse para manter a calma – adverte o sujeito.

Entretanto, o ragazzo ignora-o totalmente, contornando-o e continuando a avançar, agora, em passos largos e apressados.

– Para onde você está indo? – pergunta Nervan assistindo-o partir.

– Para casa. Tenho que ver a minha família, um médico, um psicólogo ou psiquiatra... sei lá... alguém. Eles vão saber como me ajudar – queixa-se ele, já um pouco distante.

– Você não faz ideia de como isso é perigoso. Por favor, volte.

– Espere sentado...

– Você não entendeu ainda, não é?! Você não tem mais família. Você não é mais Bernardi Balleny. Bernardi Balleny está morto e foi enterrado há dois dias.

Imediatamente, o ragazzo derrapa e, lentamente, volta atrás o rosto, ainda mais pálido e sobressaltado – se é que é possível.

– O que?... Não, não devo acreditar. Isso é mais uma de suas mentiras para eu ficar aqui nesse lugar estranho. Afinal, o que você quer comigo?

– Te ajudar. Sei como é doloroso; afinal, também passei por isso também – responde Nervan sincero e benignamente, estendendo a mão para oferecer algo. – Se você não acredita em mim, então me deixe provar que tudo o que digo é verdade.

– Como? – pergunta o rosto duvidoso, contudo quase convencido.

O rapaz se aproxima. Ladeados, ele então engancha um braço firmemente no tronco de Bernardi, cujo, inicialmente, evita-o, desconfiando da estranheza do gesto.

– Relaxe e segure-se firme – ordena o sujeito.

Assustadoramente o corpo de Nervan começa envolver-se, entrementes desmanchar-se, em um punhado de sombras esfumaçadas, que dele mesmo aflora. Bernardi não entende ainda como consegue segurá-lo sólido, e nem como o seu corpo também está evaporando. Quando toda a sombra tem coberto-os por completo, um impulso leva-os acima. Mergulham na escuridão salpicada por estrelas, e quando menos se veem nadando pelo céu como um obscuro cometa enevoado e veloz, furando as nuvens, desviando dos prédios e sobrevoando as minúsculas ruas luminosas.

O frio na barriga só alimenta o medo de cair. O ragazzo permanece incrédulo por estar fazendo aquilo que só pertencia aos seus sonhos. Voar. Se não estivesse tão perplexo e infeliz, poderia desfrutar um pouco da adrenalina aquecendo inevitavelmente seu peito.

Um puxão inclina-os bruscamente para baixo. O corpo celeste cai reto em queda livre, rasgando o céu. Pousam com suavidade e ressurgem da cortina de sombras, que evapora rapidamente no ar.

– Chegamos! – informa Nervan.

Pisam sobre uma deserta travessia de terra, cercada por árvores de todas as formas e rodeada por colinas escondidas pela noite.

– Onde estamos? – pergunta Bernardi tentando encontrar um ponto de referência que lhe dê a resposta.

– O Bosque das Almas – responde Nervan enquanto, estranhamente, estapeia o ar como se estivesse tentando mudar o rumo do vento; resmungando algo consigo: – Ainda devem estar no ar. Não faz tanto tempo assim... Ah, sim... encontrei!

– Sobre o que está falando?

Uma das mãos dele repousa sobre o ombro de Bernardi e, subitamente, o céu começa a esbanjar a luz de um dia de mormaço ao lugar da noite. Pessoas cabisbaixas passam por ambos os lados do ragazzo, formando os meados de uma trilha de espectadores caminhantes e vestidos de preto.

– Vá em frente – ouve a voz de Nervan misturado aos corpos e as fungadas.

Não que fosse preciso sugerir – Bernardi já está seguindo a pequena multidão, reconhecendo cada rosto em lágrimas por qual passa.

– Tio Benedetto?!... Tia Celi?... Tio e tia Sandoval?... Primo John, Enzo... Victoria e Lucia?! Tio Millon... Tio Billie?...

Mais e mais rostos familiares, e todos ignoram friamente os chamados e a presença do ragazzo, dando a leve impressão que não estão vendo-o ali. Agora, dois jovens de abraços entrelaçados roubam a atenção de Bernardi.

– Hugo? Sarah? – acena ele diante os rostos sofridos, contudo os olhos inchados, por há horas estarem assim em prantos, continuam arrastados pelo chão, sem dar o mínimo de atenção para ele.

Quando percebe, se vê além de uma praça e, agora, ladeado a uma escadinha de pedras, por qual ele sobe os degraus e atravessa um arqueado portal de pedra. Está em uma sala fúnebre branca e mal iluminada, enfeitada por arcos de flores coloridas desejando “descanse em paz”. As pessoas formam um bolinho ao centro contemplando alguma coisa. Curioso, ele se aproxima. Um caixão de madeira escura é a atração, estufado por um coberto de rosas beges, afogando um corpo jovem que... Que...

– Sou eu! – descobre Bernardi em pânico. Mãos acariciam o rosto do defunto enquanto esse é atingido por uma chuva de lágrimas. São de sua madre e seu babbo – um homem pardo, de olhos escuros e cabelo grisalho e liso. Vencido pelo luto e sucumbindo às lágrimas, ainda mais que os demais. Não diferente de uma garotinha agarrando a perna do homem – uma bambina de cabelo pouco além do pescoço, e olhos castanhos e irritados de tanto chorar. A irmãzinha do defunto.

– Lauren?! – chama-a, sofrendo um aperto no coração pelo pranto dela; aliás, de todos ali presente.

Ele corre os olhos pelos rostos inconformados e sufocados – realmente nenhum deles dá fé que ele está ali. Ele avança pelos corpos querendo chegar à sua família, com a esperança iluminando vagamente seu rosto. Talvez se os tocasse... e ele estica o braço esquerdo para acariciar o rosto da bambina. Está quase lá... quando...

PUUUUUUF!

Tudo desaba, assim como um castelo de areia, desmanchado em estranhas cortinas cinzentas de poeira que logo evaporam. A luz do sol já não ilumina mais a sala, agora, enegrecida pela noite. O caixão também não está mais lá. E os grilos voltam a cantar em orquestra no lugar das fungadas chorosas. Ouve-se agora outro novo som: o dos passos leves que vêm se aproximando. Nervan pára à entrada arqueada de pedra.

– O que foi isso? – pergunta Bernardi cabisbaixo, mal contendo as emoções que nublam seu rosto.

– Lembranças do seu enterro que ficaram no ar. Por ter acontecido há poucos dias, eu consegui revivê-las. Entretanto ouvi as batidas esperançosas do seu coração, então achei melhor desmanchar antes que se iludisse ou se magoasse.

O rosto angustiado entrega que já é tarde demais para preocupar-se com isso. Nervan recua dois passos, abrindo caminho para os campos escurecidos do cemitério.

– Caminhe pela quarta fileira de túmulos e pare quando chegar a um lago.

Bernardi então o faz, arrastando passos desnorteados pelo gramado chiante até encontrar um lago povoado por alguns cisnes. O luar banha alguns seletos túmulos – e ele reconhece o segundo da esquerda para a direita, enfeitado por rosas enrugadas de velhice.

“Bernardi Simon Balleny.

Que Deus guarde com misericórdia essa alma cristã, vítima de um pecado impróprio. Guarde-a com carinho”.

Ele rende-se à consternação e solta o choro após ler todo o recado na lápide.

– Pecado? A qual eles se referem? – indaga, lutando para não soluçar tanto.

– Testemunhas revelaram que nas últimas horas de vida, você estava sobre grande tensão, preocupação e até depressivo – alega Nervan, ali, de repente. – Teve uma briga horrível com alguns colegas escolares e até se despediu. Deu um Adeus. Naquela noite, você misturou a raiva à depressão, então, infelizmente, não aguentou e tentou aliviar a dor emocional através da dor física, usando uma faca de cozinha para o masoquismo e violentando outras coisas. Não aliviado, por fim, tomou a medida extrema... caminhou ao terraço e debruçou do parapeito.

– Suicídio? Eles pensam que eu me suicidei? – soluça ele revoltado por como soara absurdamente idiota.

– Sim, foi visto como um suicídio. Seu corpo estava todo cortado, e a faca encontrada banhada com o seu sangue continha apenas as suas digitais. O mesmo sangue fez trilha à varanda, no parapeito e na calçada onde pousou o cadáver. Não encontraram nenhuma digital incriminadora que não fosse a sua. No entanto, muitos se recusaram em aceitar o suicídio, e com razão, pois houve diversas controversas na apuração: como os buracos muito profundos no assoalho para serem perfurados por uma faca; os cortes no cadáver que não eram compatíveis ao gume dela. Sinais claríssimos de espancamento na vítima... Alegaram que foi um assassinato, e acusaram a polícia de incompetência por não recolher provas suficientes sobre essa hipótese. Seu caso é um grande mistério... Sinto muito – lamenta o rapaz assistindo Bernardi pousar os joelhos sobre a lápide e chorar toda a tristeza que esteve segurando desde então.

Um bom tempo depois, ambos voltam todo o caminho sem pronunciarem uma palavra. Bernardi continua afundado nos pensamentos angustiantes, e Nervan não deseja estragar o momento de reflexão do ragazzo. Entretanto, quando alcançam o portão escancarado do cemitério, o sujeito se vê obrigado a se atrever.

– Eu sei o como é difícil aceitar algo tão drástico assim, súbito. Ainda é mais difícil ter de começar uma nova vida. Mas acredite: você consegue. Eu consegui.

A tentativa de incentivo deve ter entrado por um ouvido e saído por outro, pois Bernardi não reage positivamente e permanece arrastando os olhos no chão.

– Muito bem – diz Nervan novamente, agora sem graça –, temos que voltar. É tarde. Talvez você queira repousar um pouco. Ficar sozinho. Pensar. Amanhã então saberá o resto da verdade.

– Eu não vou voltar para aquele lugar sinistro com você – discorda Bernardi rispidamente.

Inusitadamente Nervan solta um risinho ironicamente debochado. – Vai fazer o que então? Hein?! Acabou de ter a prova de que não tem mais como voltar à vida que tinha – resmunga ele, pela primeira vez, rude. – Deveria estar grato por toda a minha ajuda e honrado pela oferta.

O ragazzo ainda reluta para aceitar tudo o que viu – o que atrasa uma resposta definitiva. E o rapaz resmunga com uma bufada impaciente.

Va bene. Vague por aí inutilmente até achar um recomeço, um propósito ou enlouquecer de solidão. E se estiver planejando encontrar sua família e amigos, esperando que eles vão reconhecer-te , prepare-se para se decepcionar e, pior, fazê-los sofrer mais – ele ameaça-o assim que termina de dar as costas. No entanto é freado por uma confissão.

– Eu estou confuso! – desabafa Bernardi nervoso. – É tudo tão repentino. Tão frio. Tão estranho. Tão triste. Eu preciso de um tempo. Um tempo para pôr a cabeça no lugar, tentar aceitar tudo o que aconteceu... e descobrir se tenho coragem para saber mais.

O sujeito demonstra compreensão em seu olhar.

– Que assim seja. – Ele volta ao ragazzo e enfia uma folha dobrada no bolso dele. – Apareça no endereço quando estiver pronto. Mas não espere ser convidado novamente. Ah... – intimidadoramente, Nervan encara-o para um último aviso –, caso não vá, você não é mais um mortal, portanto controle bem as suas emoções e, posteriormente, suas atitudes. Pois, se machucar um inocente, voltaremos a nos ver, porém não amigavelmente.

Após um gélido e forte sopro de vento, que varre as folhas secas do chão... Nervan tem desaparecido sem deixar rastros. Boquiaberto, Bernardi encara a ausência do sujeito. Como ele desaparecera assim: num passe de mágica? Sabendo que não há uma explicação lógica – assim como voar em sombras, ou fazer memórias se tornarem uma cena viva –, então, deixa de ser importante no segundo seguinte.

O parquinho diante os portões do cemitério torna-se o único refúgio. O banco do balanço, o único repouso. O rosto desolado ainda não parece ter compreendido de como – de um dia para a noite – foi lhe tirado tudo o que tinha. Os pensamentos amargos e turbulentos estão governando toda a consciência abalada dele. Somente suas pernas estão sob-controle, movendo o balanço para frente e para trás. O sono não vem para encurtar a madrugada ou amenizar um pouco sua mente. Melhor, pois dormir assim, e onde está, seria, com certeza, uma péssima ideia. Gagues de corpos mal encarados rodeiam a praça. Rostos gatunos e noturnos encaram-no por longos minutos, embora, por algum motivo, sem nenhuma perversidade – ou melhor, talvez sintam piedade... ou receio. E logo desaparecem na noite, deixando Bernardi na paz da solidão, sob as chacoalhantes e em queda folhas das árvores.

Quando o céu começa avermelhar-se, avisando o início do nascer do sol, os pés do ragazzo freiam o balanço. Ele então se levanta e leva-se para longe da praça.

Agora sob um céu mais claro que antes, Bernardi vaga por algumas ruas quase desertas. Seu rosto ainda parece querer explodir por conta dos pensamentos, que, no mínimo, deixam-na pesarosa. Atravessa mais três ruas. Encontra-se num bairro nobre, plano e pacato. Quando parece chegar ao seu centro, ele pára novamente. Prende os olhos prateados com lamento na casa, que há dias era o seu lar. Perdem-se a tantas lembranças, boas, ruins, divertidas... as últimas. A casa que viveu por toda a sua vida... a vida que lhe foi tomada sem misericórdia.

O fervoroso desejo de entrar e berrar para todos que ele está, de certa forma, vivo, ainda alimenta suas esperanças. Todavia, é contido pelo duro aviso de Nervan: “... E se estiver planejando encontrar sua família e amigos, esperando que eles vão reconhecer-te, prepare-se para se decepcionar e, pior, fazê-los sofrer mais...”.

O aviso mais cheira a uma mentira intimidadora e convincente, a um recado amigável e sincero. Contudo, entre preferir arriscar a pouca paz da sua família ao lugar da sua vida praticamente destruída, a resposta não demora em sair por sua boca.

Addio! – sussurra ele, rouco de tristeza. Pouco depois, distancia-se, seguindo caminho pelo resto da rua.

Pela primeira vez, ele se recorda da folha amassada que ganhara de Nervan. Puxa-a do bolso, então abre o amarelado bilhete diante seus olhos.

Distinti Saluti.

Nós temos em conhecimento o que lhe houve há alguns dias atrás. Sentimos muitíssimo por não termos conseguido garantir a sua segurança e a sua vida. Envergonhamo-nos por isso. Contudo, o senhor foi um escolhido da Morte e então abençoado com uma nova vida... Uma nova vida com um valor e propósito maior ao que imagina.

É difícil ter de aceitar e descobrir tudo, ainda mais sozinho. Portanto, convocamos o senhor, caso deseje, para nos visitar e descobrir toda a verdade. Responderemos quase todas as suas perguntas... eu acho. Por favor, venha visitar a nossa Irmandade. Nossas portas estarão abertas quando desejar aparecer. Do contrário, queime esse bilhete ou o destrua de outra forma que o deixe ilegível. Fique avisado que, se contar para alguém ou descobrirem através de sua negligência, nós mataremos o senhor e quem mais souber!

Agradecendo a sua atenção: Felix Faustin Edwart.

Praça dos Anjos Caídos. Centro sul: Conde Caruso

E que as sombras protejam o senhor!

Quando o sol resplandecente termina de expulsar o tom avermelhado do céu, Bernardi chega ao ponto de ônibus da esquina e, pouco depois, o ônibus desejado vem pelo horizonte da rua serpeada. Distraído, porém, não percebe que, entre os muitos corpos que vêm caminhando contra ele, vem um em especial – um ragazzo alto, indo rapidamente em direção ao colégio. Aquele cujo há poucos dias podia chamá-lo de melhor amigo. E finalmente um olhar vago reconhece Hugo – este ainda tristonho e com dificuldades para sorrir. Agora, estão próximos demais para Bernardi ter tempo de abaixar o rosto e desejar não ter sido reconhecido. De repente a ameaça do bilhete passa a soar convincente – muito, aliás. No entanto, nem seria preciso... Hugo passa por ele e continua sua caminhada, como se nada tivesse acontecido. E realmente não aconteceu.

Bernardi assiste-o sumir pela avenida. Sofre a amarga decepção de não ter sido reconhecido. A decepção de comprovar que não é mais Bernardi Balleny. A dor de um rápido e inadequado adeus.

Nesse exato momento, o ônibus pára ao ponto, e Bernardi embarca nele misturado ao bolinho de pessoas.

Minutos depois, e o ônibus encontra-se a dois quarteirões de alcançar o destino final para o ragazzo – Centro sul, Conde Caruso. Para quem não sabe, Moreau é dividida em cinco partes: Conde Caruso, distrito sul; San Del Frari, distrito norte; Renascidos, distrito Leste; Cavaleiro Galeão, distrito oeste; e, Nova Roma, o centro da cidade.

O ônibus pára. Bernardi desce segurando firmemente a folha amarelada. Começa a Investigar, perguntando a todas as pessoas que passam diante seus olhos, onde fica o endereço anotado. E todas fazem a mesma sequência de gestos: apanham o bilhete, petrificam-se por uns cinco segundos, expressão uma careta espantada ou enojada, devolvem a folha apressadamente como se ela contivesse algum vírus contagioso, e saem resmungando apressados e sem olhar para trás: – Eu não sei!

Após pensar umas sete vezes, porém, um enrugado velhinho voluntaria-se a guiar o ragazzo ao local. Entretanto, ele pára faltando apenas algumas ruas – explica que o endereço está a três cruzamentos à frente e se despede rapidamente. Quando Bernardi se vira para agradecer, o homem já está tão longe que só é possível ver seu vulto longínquo correndo. É assustador testemunhar um velhinho manco correr tanto quanto um maratonista. Bernardi engole sua saliva fria querendo não imaginar o que assustou e fez o velhinho disparar assim. Então, segue em frente.

Finalmente chega ao que parecer ser o endereço procurado. Vendo-o sob a claridade, entende melhor o cenário por onde correu na madrugada: uma gigantesca e plana praça pública – tão extensa que é impossível enxergar o seu fim. Ele avança para ela sem notar que vem furtando olhares espantados – abismados por alguém atrever-se a pisar naquele chão. Não dá para deixar de notar, mas as pessoas preferem dar a volta pelas bordas da praça, ao invés de atravessá-la. Exceto Bernardi e os pombos negros arrulhando, nenhuma outra vida vem ou volta por ela. O ragazzo tenta fingir ignorar esse estranho fato enquanto força suas pernas a continuarem.

Contorna uma fonte de mármore cor de chumbo, assim como as estátuas que a decoram – estátuas que já foram novas algum dia. São anjos cuspindo água ou sustentando o monumento com os braços e as colunas curvadas. Todos entregam sua infelicidade e dor nos rostos sofridos ou chorosos. Poucos passos depois, e Bernardi emparelha-se a um caminho de mais estátuas de anjos sombrios, cujos povoam, e bem, a praça. Pode ser – e tomara a deus que seja – paranóia, porém, ele chega a jurar que eles estão o acompanhando discretamente com os olhos. Entende agora quem eram os vultos misturados à noite que atrapalhavam sua corrida. Pouco mais adiante, e ele prende os olhos a um belíssimo casarão marrom-ébano, construído ainda pela antiga arquitetura gótica, contudo, não está muito afetado pelo longo tempo que, de fato, deve ter se passado – assim como quase toda a Moreau. Enfeitado por Arcobotantes e pequenas esculturas – não sombrias como as dos anjos deixados para trás; apenas sujas. Encarrapitada no que parece ser o ponto mais alto, uma torre de vigilância, esvoaça-se uma bandeira que branda um símbolo reconhecido por Bernardi: uma lua crescente e branca sobre uma cruz índigo – igual ao que está carimbado no bilhete. Bernardi só repara agora, no entanto, não percebia o casarão enquanto atravessava praça, o que é estranho, pois, de tão alto, daria facilmente para vê-lo assim que pisou na calçada – e não de repente, como aconteceu. A cada segundo fica ainda mais estranho.

Termina de cobrir a distância e pára diante a entrada arqueada e sustentada por dois pilares grossos. Depara-se com uma grande e longa porta de madeira – claro, também dotada de uma tonalidade escura. Todavia não tão intrigante quanto às duas maçanetas: cabeças de gárgulas mostrando suas línguas pontudas.

É agora que Bernardi começa a pensar duas vezes antes de entrar. Tudo que viu até agora poderia facilmente ser o cenário de um filme de terror. Entretanto, ele não tem outra escolha. Respira fundo tomando coragem, abre e cruza uma das metades da porta. Vê-se novamente no bar luxuoso, ainda movimentado pelas mesmas pessoas sombreadas. Agora ele repara nos detalhes que não teve paciência de notar antes: como o balcão cheio de bebidas, o palco não muito largo onde algumas pessoas formam uma humilde banda – dois violinistas, um pianista, um flautista e um rapaz tocando algo que deve ser parente do violão – e, por fim, os corredores nas extremidades do bar que devem levar para só Deus sabe aonde.

Ele não sabe para onde olhar; a cada olhada, maravilha-se mais com a exótica, mas luxuosa beleza do local, que desmerece totalmente o cenário assombroso lá fora. Surpreende-se curvando um sorrisinho – o primeiro após todos os seus contratempos.

Buon giorno! – cumprimenta uma voz ao seu lado.

Ele sobressalta espantado. Nervan pairava ao seu lado sem ele ter notado.

Buon giorno – responde entreolhando-o.

– Eu sabia que você viria. Não tão rápido assim... Mas eu sabia.

– Eu... não ia vir. Mas pensei muito no que você me disse. Tenho que ser sincero: ainda não acredito totalmente nessa história de fantasma... Porém, eu quero saber mais. Eu preciso saber mais. – O olhar de Bernardi demonstra toda a pouca força de vontade que ele ainda branda. – Eu quero respostas!

O rapaz abre um sorriso sereno. – E você terá! – e exclama, antes de abrir os braços saudosos e proclamar. – Bem-vindo à Nesperim, novo Bernardi.


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