Nesperim - A Irmandade Fantasma escrita por L S Gabriel


Capítulo 3
Capítulo 2 - Uma Bela Noite para Morrer


Notas iniciais do capítulo

E como se não pudesse piorar... e piorar muito...



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Ruídos desconfortantes fazem Bernardi despertar no início da madrugada; nada menos que os roncos de fome do seu estomago. Sonolento, ele ergue a cabeça do travesseiro úmido. Não conseguiu segurar as lágrimas enquanto dormia. Sai do quarto direto à cozinha. Acende a luz. Passa ao lado da mesa, e logo nota os dois sanduíches de peito de peru com queijo sobre um prato. Certamente deixados ali, caso ele acordasse com fome. Madre é madre! E também, encostado ao prato, encontra-se um pequeno pedaço de papel dobrado, o qual ele apanha e lê.

mio filho, espero que melhore ao longo da noite. Não sei o que te perturbava, e você dormiu sem conversar comigo... Como sempre faz. Mas para ser sincera não me importo mais. Seja lá o quê for, permaneça forte e de cabeça erguida, porque é muito fácil desistir, mas não continuar lutando mesmo estando exausto. Sei que daqui uns dias me contará o que houve. Como você sempre faz. Então, coma e vá dormir. Madre”.

Em agradecimento, ele sorri brevemente. Senta-se e serve-se.

Ainda na calada da madrugada, um estranho calafrio na barriga e um arrepio anormal em todo o corpo, começam a incomodá-lo, junto a uma leve pressão sobre os ombros. Repentinamente, a lâmpada tremeluz, piscando repetidas vezes, até se apagar de vez. O mesmo acontece aos aparelhos eletrodomésticos que, até pouco, estavam ligados. O silêncio matinal é quebrado. Ouve-se agora ruídos baixos vindos da garagem que aos poucos vão ficando mais altos e próximos. Um ladrão? Pensa ele espantado. Bernardi se levanta da cadeira, corre à gaveta de talheres e apanha a maior faca que encontra, por segurança. Em seguida, decide chamar alguém para averiguar o que está acontecendo.

Chega ao quarto de seus pais. À primeira vista parecem estar dormindo normalmente, entretanto, ao estudá-los visualmente melhor, desconfia por ambos estarem virados de barriga para cima, rígidos como se batessem continência, e suados como se estivessem num dia escaldante de verão e ofegantes por mal conseguirem respirar.

Babbo?... Madre? – sussurra ele cutucando-os. Surpreende então como eles estão assustadoramente trêmulos. Intrigado, o ragazzo coloca a mão em suas testas, esperando senti-los, ao menos, com febre. Mas não é o caso – ambos estão incrivelmente gelados semelhantes a cubos de gelo.

Bernardi avança ao quarto de sua irmã mais nova, preocupado em saber como ela está. Não muito diferente de seus pais, a bambina sofre o mesmo sintomas intrigantes.

– O que está acontecendo? Estavam todos bem... – questiona ele ainda mais apavorado.

Assusta-se outra vez com os ruídos, que estão ainda mais altos.

De fato, ele não tem um pingo de coragem para ver ele mesmo o que está causando os ruídos horrorosos. Portanto, como último recurso, corre ao telefone tentando recordar o número da polícia. O aparelho mantém a linha por breves segundos, antes de desligar de vez – igual ao resto dos aparelhos que ainda lutavam para continuar ligados.

Sons de passos pesados começam a ecoar em toda a casa, ouriçando seus calafrios. E, com o passar dos segundos, as pesadas vão soando cada vez mais próximas. Movem uma respiração dificultosa e profunda, suspiros fortes e agonizantes. A pressão impulsiona mais os ombros tensos do ragazzo. Arrepios constantes fazem-no se contorcer espontaneamente. O quê estava lá embaixo fazendo barulho, agora, sobe a escada que leva ao corredor dos quartos. Para a entrada diante do corpo trêmulo do ragazzo.

Finalmente o invasor tem os pés sobre o último degrau. Uma grande sombra paira contra a transparência da fechada porta de vidro. Não há saída. Mesmo esquecendo como respirar, Bernardi precisa enfrentar quem ou o que parara ali.

–... Quem está aí?... Vá embora, agora... – ele gagueja alto enquanto bate os dentes, erguendo e apontando a faca chacoalhante à porta.

Rangendo, a porta escancara-se lentamente sem ser tocada, apenas acompanhada por uma mão ossuda e amarelada. A sombra avança dois passos e passa pelo portal. Um corpo alto e robusto como um armário, banhado num enorme manto negro que veste-o da cabeça aos pés. Encapuzado, exceto por uma metade do seu rosto esquelético. Tem pés enormes como os de uma besta, calçados em botas surradas e negras de pontas curvadas. E, o pior, arrasta consigo uma longa foice cravejada de cristais brancos e brilhantes.

Será essa a Morte? Terá vindo buscar alguém?

Eu?

O ragazzo congela inteiramente de horror sentindo a coragem e as cores abandonando-o sem remorso – igual ao ar, que ele já não dá mais por falta. Não consegue acreditar no que os olhos lhe mostram... Ou melhor, não quer acreditar neles. Isso não pode ser real! Isso tem que ser um sonho, um pesadelo...

A faca desliza de sua mão suada, e a vontade de ver aonde ela caiu não vence o medo que o impede de despregar os olhos da assombração.

Até então parada, a Sombra avança ao ragazzo, observando-o friamente e baforando um vapor esbranquiçado, semelhante a uma chaminé. Seu rosto esquelético e lábios negros expressão sentir fome, daquelas de longa duração. Ela começa a erguer lentamente a foice deixando Bernardi no caminho da lâmina – embora ele finalmente pareça reagir, pisando discretamente na faca e arrastando-a alguns centímetros para trás. Logo a foice parece atingir a altura ideal para a decapitação. Mas, antes da lâmina inclinar-se a descer, Bernardi tem dado as costas para ela, abaixando-se ao mesmo tempo para recolher a faca do chão, e, por fim, disparar a toda velocidade.

Um segundo depois...

TROOOOOOM...

O estrondo da lâmina trovejando sobre chão deve ter sido tão brutal quanto à cratera que ela deve ter presenteado o assoalho de madeira. Mas Bernardi não se preocupa com isso, e sim com a fuga para salvar a sua vida.

BABBO... MADRE... SOCORRO... – berra ele desesperadamente.

Repentinamente sente dedos longos e frios enganchar em sua nuca, e uma mão impulsionando-o para baixo. Ele tropeça, bate o rosto no chão e permanece deitado de barriga para baixo. Novamente a faca escorrega de sua mão, não pára muito longe, diferente dos óculos que saltaram do rosto dolorido – e ragazzo dá por falta deles assim que os olhos semicerrados sentem carência de nitidez.

A Sombra vira-o de barriga para cima e ajoelha-se pouco a cima do abdômen dele. Os rostos estão alinhados. Quase grudados, agora. Os olhos negros, sem vida e profundos como um poço sem fundo, de repente, parecem brilhar. Sua boca abre-se devagar para começar a chupar o ar. Consequentemente Bernardi se vê, misteriosamente, atacado por estranhas contorções no peito – espasmos iguais à sensação de vômito. Algo quente vem escorrendo pela garganta. Chega à ponta da língua – um fluído branco e espesso que começa a esvair pela boca do ragazzo como vapor, direto aos lábios da Sombra. Não demora nada até a cabeça de Bernardi – avermelhada igual a um tomate – latejar loucamente como uma bomba preste a explodir. Treme incontrolavelmente. Seu estomago já deve ter virado uma escultura de gelo. Sente sua pele ressecar lenta e ardentemente como resultado de um frio inimaginável soprando seu corpo. E seus olhos não podem parar a escuridão prestes a possuí-los de vez. Contudo, ele usa a pouquíssima lucidez que tem olhando esperançosamente a faca ao seu lado, lutando para esticar ao máximo o braço enfraquecido. Consegue agarrar firme o cabo. Estranhamente a faca parece pesar quilos. Com todo o pouco restante de sua força, ele ergue-a do chão com um puxão sofrido e crava-a no olho da Sombra.

O fluxo entre os dois é cortado. Imediatamente a besta cobre o olho perfurado com a mão, inútil em estancar o escoamento de um líquido preto que, na primeira olhada, Bernardi pôde jurar que era uma espécie de sangue apodrecido.

Uivos de dor escapam pela boca da Sombra.

Aproveitando a deixa, o ragazzo se levanta apoiando-se à parede. Os sintomas e dores diminuíram, no entanto, impulsionaram o sangue em cascata pelas beiradas da boca. No entanto, a enfurecida Sombra ergue a foice com a mão livre e, afobada demais para mirar, abaixa-a bruscamente, rasgando o vento. Bernardi sente o toque gélido da lâmina lhe rasgando a pele, e quando tenta franzir o olhar assustado à procura de aonde, outro golpe violento – agora vindo do cabo da foice – atinge-o no peito e arremessa-o longe. O ragazzo aterrissa chocando-se feio contra a porta do terraço, cuja acaba despedaçada. Repousando sobre um tapete de cacos de vidro, ele geme por conta das pontadas rasgando sua pele. Uma dor insuportável que encoraja os gritos abafados e fracos. Debilitadamente, ele luta para levantar-se e agachar-se contra a parede. A respiração desesperada pela boca ganha espaço sobre os gemidos dolorosos. Inevitavelmente, Bernardi visualiza o que a lâmina atingiu com maldade – seu braço direito, atravessado por um profundo rasgo ensanguentado e com falta do dedo Anelar. Tenta movimentá-lo... mas é inútil! Nem mesmo consegue sentir o calor do sangue escorrendo por ele.

Entrementes a Sombra pára de uivar. Assustadoramente, Bernardi acompanha o som de passos arrastados e o desafino da lâmina raspando no chão. Está se aproximando! Cada passo abafado soa explosivamente como uma pedra desmoronando no silêncio.

Sem saída, o ragazzo ergue o rosto retorcido e aponta os olhos lacrimejados à noite. Não importa agora, no entanto, a lua cheia está radiante. Não é tarde demais para um último apelo. Uma última oração.

– Deus... ajude-me, por favor. O que eu faço?... – sussurra.

No segundo seguinte, olha vagamente os estilhaços da porta. Um longo e pontudo igual a uma lança, em especial, chama a sua atenção. Uma ideia corre em sua mente – uma ideia com quase nenhuma chance de dar certo, porém a única. Ele se arrasta sentado até a lança, agarra-a e se esgueira à extremidade da sacada.

Apenas cinco ou seis passos distanciam-nos. A Sombra segue os vestígios de sangue deixados até a sacada, e encontra a vítima e ladeada ao parapeito. A Sombra anda ao ragazzo, e, entrementes, ambos travam os olhares – A Sombra não demonstra nem um pouco de arrependimento ou piedade; já o olhar abatido de Bernardi parece ter aceitado a morte de boa vontade. A Sombra ergue a foice para dar o golpe final. Bernardi, segurando firme o estilhaço oculto nas sombras, aproveita as mãos ocupadas do predador, levanta-se e avança contra ela, e crava a lança em seu tronco. No outro segundo, usa o que lhe sobrou de forças para lançar-se e, eventualmente, empurrá-la além do parapeito. Um ato em questão de milésimos, pois, quando dá por si, a Sombra está terminando de debruçar impotentemente sobre o parapeito, abraçada por Bernardi, cujo, Inevitavelmente, também despenca em queda livre.

O fim parece ser no próximo segundo. Diferente aos clichês de filmes, a vida não parece rebobinar diante Bernardi. Não. Mas o tempo é suficiente para permiti-lo a fechar os olhos e se preparar para o impacto, que não demora em abatê-lo. Ouve o baque do choque. O segundo de dor estia-se eventualmente – assim como o pouco de vida que tinha, roubada pela escuridão acolhedora.

Não deve ter se passado muito tempo – minutos, provavelmente –, pois ele ainda acompanha o enfraquecer dos seus últimos suspiros. Entorpecido de dor. O corpo amolecido como uma marionete sem cordas. Os olhos forçando uma mínima brecha para assistir os momentos finais, foscos como se estivessem enxergando através de uma vidraça embaçada. Ainda assim, ele consegue acompanhar a figura assombrosa se arrastando naturalmente até ele. A Sombra foi mais dura na queda. Bem mais. Faltam mais dois passos arrastado, e ela alarga o sorriso medonho por não ter falhado em levar mais uma vida. No entanto, apaga-o descontentemente, pois outra sombra sinistra parece ter pousado não muito distante. Contudo o ragazzo não afirma essa suspeita – nesse milésimo seguinte a escuridão volta a afogá-lo e adormecê-lo. E, dessa vez, definitivamente.

Dessa vez, parece que arrastara uma eternidade na escuridão; acolhedora, mas solitária. Então será essa a vida após a morte? Um vazio?... Misteriosamente, entretanto, Bernardi sente estar retomando gradualmente a lucidez. É como se estivesse apenas despertando de um sono profundo. Despertando de um pesadelo, mais sinistro impossível. Pergunta-se outra vez se esse então é o mundo dos mortos... porque se for, a sensação é idêntica à de estar repousando o corpo sobre um leito macio. Abrem-se os olhos devagar, capturando perfeitamente a nitidez, sem sentir a menor necessidade dos óculos. A miopia parece ter-lhe abandonado durante o sono, acompanhada das dores insuportáveis. Bernardi se vê em um modesto quarto marrom de pisos de madeira, aconchegante e iluminado.

– Onde estou? – sussurra. A cabeça ainda lateja e o corpo parece que foi espetado enquanto dormia. Luta para conseguir sentar-se. Amargurado por uma detestável melancolia pós-sono. E eis que as dúvidas explodem após Bernardi tentar identificar seu leito: onde estou? Como fui parar aqui? O que aconteceu? Estou vivo? Aquilo realmente foi real? Por que me sinto tão estranho?

Ah, que maldita vertigem que o atormenta.

Repara que nem o pouco que restara do terno continua em seu corpo – agora vestido num roupão negro, uma camisa branca e calça e meias escuras. Bernardi encontra a porta do que parece ser o quarto de alguém – talvez quem o tenha levado para cá. Levanta-se contra a indisposição e dispõe dos sapatos ladeados ao pé da cama. Avança à saída. Entretanto, logo derrapa ao passar como um flash diante o espelho, e volta alguns passos, comparando o rosto boquiaberto de espanto ao do reflexo. Assustadoramente, surpreende estranhando a si próprio. Ou melhor, seu próprio corpo. Ainda é o seu rosto – com alguns traços diferentes, mas ainda o seu se olhar bem –, porém não são os seus olhos – agora prateados e claros como um luar. A pele está empalidecida. Nem o cabelo é o mesmo: negro igual à noite e bem mais franjado, escondendo até as orelhas.

Bernardi não faz ideia do por que, como e quando lhe aconteceram essas mudanças. Nem por isso as perguntas deixam de interrogá-lo sem uma trégua.

– O que houve comigo?... – sussurra ele apavorado, apoiando as mãos trêmulas no espelho. Estúpida, entretanto, uma tentativa de confirmar se é mesmo o seu reflexo e se ele o seguiria como o tal fez.

Mas, subitamente, suspira levando outro susto. Sua mão direita, do início do punho aos dedos, agora está totalmente forrada por um cristal liso e branco ao lugar da pele. Os dedos ligeiramente mais pontudos, parecendo de relance com uma garra. Linhas trilham pela mão, dando marcas ossudas. Olhando bem... parece ser o mesmo cristal da foice que a Sombra feriu-o, principalmente na mão direita.

Gagueja palavras mudas, ofegando fundo procurando ar, e sofrendo mais calafrios na barriga. Nada faz sentido. E, agora, tem a atenção roubada novamente – ele vira o rosto bruscamente à porta, após ouvir o som de destrave e, no segundo seguinte, reagindo empurrada. Um corpo oculto em vestes negras entra no quarto sem cerimônia.


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