Nesperim - A Irmandade Fantasma escrita por L S Gabriel


Capítulo 2
Capítulo 1 - O Primeiro e Último Baile


Notas iniciais do capítulo

Bem, um início meio chato, mas qual não é?



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Moreau. Ah, a belíssima Moreau. Uma metrópole mediana e calma; linda para quem quiser conhecê-la em qualquer estação do ano – a mais recomendável é o verão. Centro de Nova Itália: um grande estado ao sul da America do Norte. Curiosamente por uma pequena separação em espaço, Nova Itália não é considerada parte dos Estados Unidos; mas nem por isso é um país. É apenas um estado na America do Norte, pronto e acabou! Colonizada ao fim do século XV por italianos – óbvio –, e, seguindo a cultura e os costumes da Renascença, eles ergueram grandes e belíssimas cidades que até hoje lembram muita a Itália renascentista, porém com um toque contemporâneo em tudo.

Moreau. Cidade onde, entre várias pessoas, mora um garoto. Beirando os quinze anos. Franzino. Pele cor de oliva, olhos e cabelo castanho escuro, ligeiramente franjando sobre uma boa parte da sua testa. Seu nome?... Bernardi Balleny.

Um ragazzo normal. Uma vida normal que consiste em acordar todos os dias propositalmente atrasado para ir ao colégio, conviver indesejavelmente com os outros adolescentes, e passar o resto do dia trancafiado no quarto estudando para um futuro próspero. Todos os dias. Sempre a mesma coisa. Nos fins de semana, enquanto os outros jovens aproveitam as horas reunindo-se à família ou com os amigos, praticando esportes, andando pela cidade, senão simplesmente conversando e divertindo-se de alguma forma, Bernardi não se atreve a pôr o pé fora de casa. Não há tempo para isso. Ele ignora qualquer pensamento em desvio que tente lhe convencer a fazer o mesmo que os outros, pois, para ele, ultimamente o que ele menos precisa é perder seu tempo com “distrações”.

Assim são seus dias e também as noites. Nessa noite, por exemplo, seu colégio deve estar infestado de alunos se divertindo enquanto terminam os preparativos do baile de Benvenutti, ou Boas-Vindas se preferir. A tradicional cerimônia festiva, feita para receber bem os novos e antigos alunos do Ensino Médio.

Manhã de segunda-feira. O despertador ao lado de uma cama escondida à escuridão dispara antes dos ponteiros encontrarem às seis horas. Como sempre, Bernardi sobressalta deitado, assustado com o alto e desafinado alarme do despertador. Abre os olhos semicerrados e desanimados, implorando por mais cinco minutos. Ergue o braço e estapeia a superfície do aparelho, que geme antes de parar de tocar. Prazerosamente, o ragazzo volta a fechar os olhos. Mergulhado à escuridão confortante e ao aconchego de sua cama, apenas retorna à lucidez quando um baque espanca a porta, e seus olhos – arregalados novamente – surpreendem o despertador marcar quarenta minutos além.

Em resposta, ele solta um gemido insatisfeito. – Tenho que levantar – resmunga como se isso fosse um problema sem solução. Salta da cama e começa a vestir-se diante ao armário, com toda a sonolenta lerdeza que faz questão de desfrutar.

BUUUUUM, BUUUUUM, BUUUUUM...

Outros golpes violentam a porta, seguidos por resmungos vindos do corredor.

– Bernardi, mio filho, quer chegar atrasado ao colégio de novo?! – resmunga uma mulher, a voz ainda debilitada de sono, tomando uma pausa para repor o fôlego. – Sempre a mesma coisa, parece que você faz isso por prazer...

– Já estou indo, madre – ele retruca terminando de passar a cabeça pelo colarinho da camiseta. – Qual seria o problema de faltar hoje?! Eu poderia deixar de ir ao resto do mês que ainda seria o melhor da turma – murmura, agora para si.

Não, modéstia não é um ponto forte seu.

Termina de apertar o cinto para evitar outra queda de suas calças frouxas enquanto estiver correndo ao colégio. Recolhe os óculos de grau sobre a escrivaninha e os encaixa no rosto. Pendendo a alça da mochila ao ombro, sai preguiçosamente de casa, contudo, correndo o mais rápido que se permite, na esperança de ainda chegar a tempo e não ouvir mais um sermão, agora dos professores.

Falta apenas uma rua – uma ladeira serpenteando os arredores do colégio. Ofegante, o ragazzo correra até então. Por tantas as vezes que teve de correr atrasado ao colégio – ou de brigas contra valentões cismados pelo ego de Bernardi –, acabara ficando bom nisso.

Subitamente uma mão agarra seu colarinho e o faz recuar dois passos. Bernardi cambaleia antes de firmar-se outra vez, e precisa levantar o rosto para ver bem quem o puxou.

– Atrasado novamente? – deduz um ragazzo, alto e atlético; pele parda, olhos verdes, e cabelo preto, liso e naturalmente arrepiado. Nada menos que um velho e grande amigo: Hugo Foullen.

– O despertador atrasou – responde Bernardi.

– Pela vigésima vez?

– Está quebrado.

Hugo sorri debochadamente. – Planeje outra desculpa, pois essa não engana mais ninguém.

–... É... Hum, hum – pigarreia tentando mudar de assunto. – Buon giorno para você também.

Um “bom dia”, caso não entenda de italiano.

Buon giorno.

Ambos voltam a caminhar, ladeados e com menos pressa.

– Por que não foi aos preparativos do baile de Benvenutti? – pergunta Hugo.

– Simples, eu não vou ao baile! – reponde Bernardi sem parecer se importar.

– Ah Bernardi. Ele é a graça de estarmos, ou, no nosso caso, entrarmos no Ensino Médio. É o nosso primeiro baile. Imagine o quão deve ser divertido – explica ele, claramente animado.

– Sabe que ultimamente ando sem cabeça e sem tempo para isso. Minha prova para o estágio na Cambell é na semana que vem, e mio babbo não me quer longe dos livros. Nem eu, para falar a verdade, pois se eu conseguir... Bom, minha carreira profissional terá um pontapé perfetto, e não precisarei preocupar-me quanto a isso por um longo tempo. Nem em estudar rodeado por ignorantes, já que serei transferido para a renomada Academia Cambell.

O olhar franzino de Hugo parece ter se ofendido.

– Não, você não vai porque não quer. Sempre foi assim – queixa-se, antes de voltar a se empolgar. – Os preparativos já foram bem divertidos. As amostras do cardápio, as músicas, as belas bambinas loucas para achar um par para dançar... Imagine como será a sexta-feira. E você quer trocar tudo isso por mais uma noite sem graça e solitária, trancado naquele quarto?

Bernardi sorri sem vontade. – Desculpa, mas é isso o que vou fazer. Mas prometo que, assim que passar a prova, eu relaxarei um pouco e irei me divertir. Além disso, virá o baile de fim de ano e eu estarei nele, mesmo que como um visitante.

– Mas já terá perdido este...

Atravessam a rua silenciando esse assunto. Entretanto Hugo pretende usar mais uma carta na manga.

– Sabe o como a Sarah ficará aborrecida se você não sair conosco novamente – ele alfineta, conseguindo o que queria: ver Bernardi ficar incomodado. – Ela estava lá aproveitando os preparativos do baile e, como as outras ragazzas, estava exibindo a roupa que usará.

– Verdade?! E como ela estava?

– Belíssima naquele vestido preto, com a tiara e a rosa branca no cabelo. – Ele fez questão de detalhar para atiçar a imaginação do amigo. E o rosto afundado em pensamentos entrega que deu certo. – Ela está ansiosa para ir e espera muito que você leve-a como acompanhante. Então, por favor, não a decepcione. Não dessa vez.

Va bene... – responde o rosto que fraquejara um pouco. Ainda assim, algo segura sua decisão. – Vou pensar melhor.

– Aproveite o momento e faça o que já deveria ter feito, afinal, passou bem da hora de vocês formarem um casal. Quero dizer, a Sarah é uma ragazza fantástica e gosta muito de você, assim como você dela. Muitos momentos provaram que a relação de vocês vai além de “amigos íntimos”. Então, por que raios vive adiando o momento de fazer o pedido e assumir um relacionamento com ela?

Bernardi reflete cuidadosamente antes de responder.

– Você tem razão... eu gosto muito dela. Porém, por hora não posso desviar-me um milímetro sequer do mio objetivo. Não posso me dar ao luxo de distrair minha mente com outra pessoa que não seja eu no momento. Não agora faltando poucos dias do momento crucial da minha vida. Quanto à Sarah... ela ficará feliz por mim e haverá outras oportunidades para fazer o pedido. Afinal, ela esperou até agora, por que não mais alguns dias?!

– Está pensando apenas em si próprio, como de costume. Será que, nem por um segundo, passa por sua cabeça que o seu egoísmo está amargando o que ela sente por você?!

– Eu sempre fui assim, e por mim assim que ela se encantou.

– Não. Você piorou!

– Por uma boa causa.

Finalmente chegam ao destino desejado: Colégio Campos Imperiais Jardim Das Montanhas. Sim, parece o nome de um pré-infantil. Contudo, o nome se apropria ao fato do extenso colégio ser no fim de uma longa ladeira, e ter um vasto e plano jardim esverdeado aos redores do prédio antigo, cortado ao meio por um pequeno e cristalino riacho.

Ambos os ragazzos tomam caminhos diferentes – uma leve vontade desviara Hugo ao banheiro, enquanto Bernardi sobe as escadas. Mal põe os pés no corredor e um ombro largo e duro esbarra ao seu, atirando sua mochila para baixo e espatifando-a no chão.

– Olhe por onde anda Balleny – queixa-se um ragazzo, sem esconder o seu sorriso satisfeito. Ele lança um olhar intimidador aos franzinos e irritados de Bernardi, antes de seguir seu caminho. Trata-se de Xavier Montierre: um colega de classe. Um péssimo colega de classe. Um sujeito cor de oliva e de cabelos encaracolados e castanhos escuros. Não muito mais alto, embora seja mais robusto e encrenqueiro – o que lhe acarreta um longo histórico de brigas e idas à diretoria.

A última vítima de Xavier acaba sendo Hugo, que, ao pisar no corredor, teve o corpo esbarrado com violência e empurrando contra a parede.

– Babaca! – resmunga Hugo irritado. Ele olha para trás para encarar Xavier, no entanto o mesmo já tem descido metade dos degraus, e dá a impressão que sobre passos apressados. Obviamente ouviu a ofensa, mas não teve coragem de vir cobrar desculpas. A rivalidade entre os dois tem um motivo: ambos são os melhores jogadores do time de futebol da sala, no entanto Hugo foi o escolhido a se tornar o capitão do time. Já entre Xavier e Bernardi... bem, deve ser apenas a leve arrogância de ambas as partes – a inteligência subjugando a força bruta, e visse e versa.

Hugo caminha e depara-se com o amigo recolhendo a mochila, agachado entre as pernas dos alunos, que vêm e voltam pelo corredor. A feição de Bernardi ao se levantar é mais nebulosa que o início de uma tempestade, no entanto nem um pouco surpresa.

– Você está bem? – pergunta Hugo.

Bernardi acena que sim, o rosto resmungando mudo, tolerando a primeira desavença do dia.

Sem demorar muito, porém, assim que cruzam o batente da sala, um par de abraços calorosos entrelaça-se em Bernardi – surpreso e confortado –, envolvendo-o em um firme abraço. Agora, um belo rosto feminino encara-o sorridente.

Buon giorno Bernardi.

– Sarah... Buon giorno – responde ele ao rosto corado, mostrando o primeiro sorriso do dia.

Ah, a graciosa Sarah Monalisa. Uma bela ragazza de pele parda clara, cabelos castanhos e brilhosos, olhos escuros e profundos, e uma silhueta magra, mas bem escultural. Talvez a única pessoa de todo colégio que, quando quer, consegue facilmente curvar um sorriso alargado e alegre em Bernardi, sem falar nas pulsadas fortes no peito dele – assim como está agora.

– Hugo, buon giorno – cumprimenta Sarah que tem largado Bernardi para dar um abraço no outro amigo, embora na ponta dos pés para alcançá-lo.

Buon giorno – responde ele carismático, antes de dirigir-se ao seu lugar.

Bernardi também o faria, no entanto uma pergunta o faz derrapar: – Bernardi, você não foi aos preparativos ontem. Por quê? Não irá ao baile de Benvenutti?

– Bom, eu... – ele volta o rosto sem jeito. – Você sabe que a prova para o estágio na Cambell é semana que vem, e eu não posso deixar de me preparar. Principalmente agora que falta tão pouco.

– Mas é só por uma noite – insiste ela esperançosa. – Vamos? Por favor. Já não bastam as muitas vezes que você nos pôs de lado. Ao menos dessa vez, ao menos ao baile de Benvenutti que é só uma vez ao ano...

– Sinto muito, mas ainda tenho muito a estudar. É um sonho mio que depende apenas de mim para se tornar realidade... E eu também não sei dançar... – diz ele como se fosse algo de outro mundo. – Será estranho se eu ficar estagnado como um poste enquanto você dança sozinha. Vergonhoso...

Claramente ela acaba chateada. Outra vez. Entretanto, esconde o melhor que pode a frustração, devido às experiências passadas que a calejaram. – Eu entendo.

Cabisbaixa, ela passa por Bernardi, seguida pelo próprio, cujo, mais uma vez, finge não enxergar o desapontamento dela.

Outro tedioso dia acadêmico arrasta-se movido pelos ponteiros do relógio. Um dia normal aos alunos – três primeiras aulas a assistir, seguido do intervalo no gramado do jardim do colégio e, por fim, as três últimas aulas que, por infelicidade, parecem redobrar a lentidão dos minutos. Contudo, a agonia tem um basta quando os alarmes desafinados predominam todos os corredores. O mar de alunos então flui cobrindo a distância à saída. Bernardi e seus amigos não deixam de fazer parte dele, todavia com uma desvantagem: levam consigo um assustador dever de trigonometria para amanhã.

Tagarelando, os três amigos trilham a serpenteada ladeira. Como moram seguindo basicamente o mesmo caminho, então, desde que se dão como amigos, eles voltam juntos para casa. O primeiro a deixá-los é Hugo, após umas cinco ruas de distância do colégio.

Ciao amigos. Até amanhã – são as últimas palavras dele. Então entra em casa.

Enquanto caminham, Sarah e Bernardi riem alto com os relatos da ragazza sobre as coisas estranhas que testemunhou nos preparativos do baile – como ver a professora dançando tango com o velho faxineiro Ralph, que não deixou os pés travarem nem por um segundo. Quando percebem, estão no começo da rua onde ela mora, e de volta ao assunto sobre o baile.

– Certamente foi bem divertido – comenta Bernardi segurando um esquecido e curto sorriso.

– Sim, e muito. Ajudamos na decoração e nas músicas. Todos exibiram a roupa de Gala que usarão. Eu levei o mio vestido, claro. E, no final, dancei um pouco.

– Hugo?

– Não – ela solta um riso debochado –, ele arrumou outras companheiras de dança. Eu dancei com o Xavier!

De repente Bernardi tropeça abobalhado, mas em milésimos volta à postura. – Xavier? Ele... estava lá?... Dançando?... – ele indaga ao rosto alerta, evidentemente não pelo susto do desequilíbrio.

– Sim, e dança muito bem, aliás – responde ela tentando ignorar o tropeço do ragazzo.

– Não sabia que vocês eram amigos. – Ele tenta esconder o incômodo que sofrera com a notícia.

– Bem, não somos... mas ultimamente venhamos conversando bastante. Ele é legal, divertido, gentil...

Ela não deve estar se referindo ao mesmo Xavier que Bernardi tem em mente. Claro que não. Certamente Xavier sabe ser amavelmente falso quando quer.

– Ele será o seu acompanhante no baile?

O rosto dela dá sinais de desconfiança quanto a um leve toque de ciúmes no ar.

– Não. Ele até me convidou, e eu ia aceitar... porém, espero ir com outra pessoa. Com você. – Os olhos brilhosos de esperança lançam-se contra os dele. Os lábios rosados curvam-se num sorriso timidamente contente. – E eu ainda espero que isso aconteça... senão, me divertirei muito com o Hugo e mios outros amigos.

Instintivamente Bernardi ignora gentilmente o pedido da ragazza mantendo o silêncio, como é de costume fazer. E Sarah, novamente, parece aceitar isso, mas com insatisfação. Os passos acabam de deixá-los diante ao portão da casa da família Monalisa. Sarah entreolha-o para algo além de uma despedida. Uma resposta.

– Você tem certeza que não vai ao baile?

– Quase que sim, bambina. Ainda assim, acelerarei os estudos e verei se conseguirei tempo para ir. Eu prometo. Mas de qualquer forma, haverá mais chances de podermos sair e nos divertir.

– Eu entendo... – murmura ela apontando os olhos ao chão. Mas rapidamente levanta-os para fincá-los seriamente aos olhos de Bernardi. – Sabe... esse seu ser decidido, ambicioso e empenhado, é admirável. Muito. Porém também é admirável aproveitar os momentos felizes ao lado das pessoas que nos amam. Afinal, nunca sabemos até quando teremos essas pessoas conosco. E eu espero mesmo que você entenda isso antes que seja tarde demais... Bom, se for mesmo ao baile, estaremos lá. Ciao Bernardi.

Os dois se aproximam para um beijinho de despedida. Bernardi busca o caminho aos lábios de Sarah, como há muito tempo não fazia – e está sedento por fazer. No entanto, a ragazza rejeita-o virando sutilmente o rosto, deixando para ele a bochecha, que, por mais quente e macia que esteja, não alivia a frieza do gesto. Ela entra em casa, e Bernardi volta a caminhar, sozinho – o que lhe deixa propenso a refletir na visão tristonha de Sarah, embora que por poucos segundos. Inevitavelmente, seus assuntos tomam todo o espaço em sua cabeça.

Chega então o momento tão ansiado por muitos: a noite de sexta-feira. Não uma noite de sexta-feira comum – imagine –, mas sim a noite do baile de Benvenutti, que, ao passar dos dias, foi mais discutido que as matérias do primeiro semestre. Nesta noite, desconsiderando os alunos do Ensino Fundamental, poucas almas – além de Bernardi – estão em vossas casas.

Bernardi disse aos amigos que talvez aparecesse; no entanto, debilitado de cansaço do jeito que está – resultado de uma tarde toda com a cara nos livros –, sente a vontade lhe fugir sem remorso. Ela desaparece por completo quando ele finalmente atira-se na cama e repousa o rosto prazerosamente no travesseiro. Espia rapidamente o relógio, cujo indica às sete horas – uma hora após o início do baile. Ele ainda não sente o mínimo arrependimento perturbar-te por não estar junto aos seus amigos, ou todas aquelas pessoas, aquela barulheira, e o pior: ter de dançar. Contudo, apenas algo lhe receia – Sarah deve estar mais do que bela! Por compensação, propõe a si vê-la se exibindo e dançando em sua imaginação, com todos os detalhes que Hugo descreveu. Agora, ambos devem estar na companhia um do outro, e até dançando nesse exato momento. O ciúme não cutuca sua paciência, pois ele confia bem que seu melhor amigo nunca tentou – ou tentaria – algo com a bambina que ele gosta. Mas... e se Xavier estiver lá?... Não há perigo, imagina. Hugo faria questão de afastá-los – assim como Bernardi ordenou – depois de um “Ciao, e boa festa”.

Ele prega os olhos, aliviado quanto a tal ameaça. Entretanto, outro pensamento atinge-o como uma bala. Sarah havia comentado sobre as ragazzasloucas por acompanhantes, se recorda bem – que Hugo dançou na preparação. Ele seria capaz de deixá-la de lado por uma delas, abrindo caminho fácil a Xavier?... E se isso acontecesse, eles... dançariam?... E... Se...

O próximo pensamento faz Bernardi saltar dos lençóis direto à porta. Ele avança ao quarto vazio de seus pais, rouba um dos vários ternos escuros de seu babbo, e, nem por ser um traje simples de trabalho, não o deixa elegante o suficiente para ir ao baile. Quando termina de pôr o paletó, já tem cruzado o corredor e saltado metade da escada. A casa está ausente de quem o pergunte o porquê de tanta pressa, ou para onde vai. Obviamente seus pais devem ter ido a algum lugar e levado a caçula da família Balleny junto. Antes de sair, ele passa pela cozinha e furta uma rosa branca da jarra sobre a mesa; talvez sua madre não dê falta de menos uma ao arranjo de flores. Então, sai correndo apressadamente, assim como fez de manhã, ironicamente, para o mesmo destino.

Por fim cobre a distância ao seu destino. É a primeira vez que ele passeia pelo jardim do colégio sob a sombria beleza da noite. As luzes do baile em andamento no salão festivo estão no caminho de seus passos. Mais alguns e... pronto, está diante à porta dividida. Dá a última endireitada no paletó e na gravata, antes de empurrar sutilmente uma das metades. As luzes coloridas em flash ofuscam-no por alguns segundos, enquanto a música faz questão de gritar em seus ouvidos. Contudo logo ele se acostuma e corre os olhos atentos pelo salão atrás de seu alvo, além das dançantes luzes coloridas, o punhado de corpos misturados, agitados e balançantes, saltando de lá pra cá que atrapalham, e muito, a procura. Incontáveis vezes o ragazzo jura ter visto a bela face ou a silhueta de Sarah vestida de preto, antes de perceber que estava errado. Bernardi caminha e perfura a multidão e os pares de adolescentes, ampliando a visão e estudando cada rosto que encontra. Até reconhecer um deles e se espantar – Hugo, bailando uma dança com uma ragazza, cuja deve estar sem ar por conta do beijo que estão travando.

– Se Hugo não está com Sarah... – sussurra boquiaberto –, então...

Nas próximas pontadas de olhares, encontra Sarah cedendo os lábios a Xavier. Os olhos atrás das lentes nunca se arregalaram tanto. Está boquiaberto, petrificado, sentindo o coração disparar mais rápido que uma bala, levando alfinetadas de dentro para fora. Os pensamentos turbulentos barram qualquer tipo de raciocínio ou reação, a não ser tirar os olhos daquela cena e recuar à porta, esbarrando em todos que surgem à frente. Quando passa pela porta e paira sobre a noite, ouve sussurros – na verdade, chamados abafados pelo barulho. Uma mão engancha em seu pulso, e Bernardi dá meia volta para então entreolhar o rosto surpreso de Sarah.

– Espere um pouco. Já está indo? – resfolega ela. – Achei que não viria.

– E eu também, e me arrependo por isso – retruca ele ríspido, puxando grosseiramente o pulso da mão dela. – Mas por que continua aqui perdendo seu tempo?! Pode voltar ao seu amigo lá dentro... Ou já devem ser namorados?! – queixa-se esticando o dedo à porta.

– Está falando do...

– Como pôde beijar aquele idiota com os lábios que um dia beijou os mios?... Aposto que também disse a ele as mesmas palavras melosas que dizia para mim.

– Dá para se acalmar e me escutar? – Sarah levanta a voz querendo atenção. Mas o ragazzo não cede.

– O que mais fez?! Hã?! Jurou a ele que seu coração pertencia a ele?! –. Bernardi a cada palavra está mais furioso e resfolegante de raiva. – E eu, estúpido, achei que você gostava de mim.

– E quem disse que eu não gostava de você? – ela retruca, explodindo e conseguindo, finalmente, intimidar e quietá-lo. – Certamente o termo gostar não é o suficiente para representar o que eu sentia por você. Você é um ragazzo maravilhoso em diversos aspectos, Bernardi, mas em compensação tem um grande e odioso defeito. Você é egoísta. Sempre coloca seus desejos, suas ambições, seus sentimentos, seus prazeres acima das outras pessoas, acima de mim, de Hugo, das pessoas que tentaram ser suas amigas; até mesmo acima da sua família. – ralha ela que, mesmo contra o orgulho, não consegue evitar o início do lacrimejar dos seus olhos brilhosos. Resultado por pôr à tona uma dor antiga que cravava seu coração. – E eu... eu sempre deixei claríssimo os mios sentimentos por você, minha atração, mio afeto e carinho; os pensamentos românticos que enchiam mio coração que, por acaso, são as palavras melosas que você zomba tanto. E quanto a você, me pôs de lado como se eu fosse apenas um objeto que você desfrutaria quando sentisse carência ou solidão – funga ela limpando as lágrimas. – Eu sou uma ragazza cheia de sentimentos, Bernardi. E, por mais que eles fossem fortes por você, eles foram amargando-se a cada vez que me magoava... até que então deixaram de ser importantes para mim também. E eu começasse a gostar de outra pessoa.

Bernardi se mantém paralisado, o rosto moldurando uma expressão confusa e com respirações profundas por conta da falta de ar. A essa altura metade do baile deixara a dança de lado para ser a platéia ao drama dos dois. Um dos jovens perfura a parede de corpos e consegue alcançar os protagonistas da cena.

– Está tudo bem?... Bernardi, você veio – comenta Hugo parando ali, entre os dois. – O que houve? Porque estão discutindo?

– Não importa. Nada disso teria acontecido se tivesse feito o que eu havia lhe pedido. Seu imprestável – resmunga Bernardi alto, as cores retornando ao rosto emburrado. – Voltem ao baile. Eu não preciso de vocês dois. Eu não preciso desse lugar. Minha prova para a Cambell é daqui a poucos dias, assim não precisarei voltar a pôr os pés aqui, e nem voltar a vê-los. – de relance, o ragazzo lembra-se da rosa esquecida entre seus dedos e então ele atira-a contra os pés dos amigos. – Addio.

Ele dispara em passos largos e rápidos a caminho da saída, sem importa-se com os poucos apelos de Hugo, as fungadas chorosas de Sarah, ou os cochichos soando entre os corpos que assistiram tudo até o último segundo.

Mal entra em casa, e a primeira coisa que Bernardi se depara é sua madre caminhando sorridente em sua direção, carregando um vasinho de cerâmica enfeitado por flores. Uma mulher pouco mais baixa que ele, de olhos castanhos claros e pele semelhante a do filho. A Madame Mariana Balleny.

Buona sera mio bambino. Olha o que eu e seu babbo compramos hoje no... –. Ela interrompe a si própria ao perceber o quão elegante está o ragazzo. – Onde estava assim? No baile do colégio? Achei que não fosse.

Ele levanta os olhos mortos e força as palavras indispostas. – Acabei indo. Infelizmente. Mas não precisei ficar lá por muito tempo.

Mariana bate melhor os olhos no filho e estuda-o profundamente – seu rosto frustrados, seus olhos segurando as lágrimas, a expressão angustiada... Sabe como são as madres: conseguem ver os menores detalhes.

– O que você tem?

–Hã?! Nada importante.

– Sabe que não gosto quando esconde as coisas de mim.

Essa foi fácil: ele mal não consegue olhá-la diretamente nos olhos.

Madre, eu só estou com muito dor de cabeça por causa da música alta. Mas logo irá passar.

– Está me contando toda a verdade?

Ele reafirma assentindo com a cabeça chacoalhante.

Va bene. Então vá jantar, tome um remédio e durma. Amanhã conversaremos.

Ele concorda novamente e sobe ao seu quarto. No entanto não segue a sugestão. Ao invés disso, tranca a porta, retira os sapatos, arremessa os óculos sobre a escrivaninha e atira-se sobre a cama, sem se importar em retirar o traje. Afunda o rosto ao travesseiro, enquanto descarrega os punhos no colchão por lembrar-se dos rostos dos amigos e dos curiosos e risonhos perante a grande humilhação que ele passou – inclusive o Xavier. Pragueja-os. Contudo, aos poucos a raiva perde força para a sonolência acolhedora, até que então ele adormece profundamente.


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Notas finais do capítulo

Que se inicie o fim...



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