A vida do garoto morto escrita por Quetzal


Capítulo 2
Coma




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Estrelas liquefeitas compunham o horizonte pálido. Uma mão tocou meu ombro, sua leveza cósmica seria capaz de criar pura matéria, e sua presença tão azul consumia meus olhinhos recém abertos. Ai de mim!

“Caleb, você chegou mais cedo que eu esperava.”

Era o hierofante! A minha criação em tocos coloridos usados, o garimpo dos lápis perdidos de muitos e muitos donos, um homem composto por sobras e sonhos. O hierofante azul em sua plenitude!

“Você me conhece?!” Vociferei, embasbacado.

“Você próprio me criou para prever seu futuro.” Ele sorriu. Parecia jovem, demasiadamente jovem. “Então irei te guiar até ele. Será uma jornada para esquecer, Caleb. Será uma jornada para esquecer Caleb.”

“Uma jornada para esquecer...” Assim como fazia aquele céu de astros consumindo séculos, extinguindo a si mesmos em um brilho pequenino. A abóbada celestial era pintada de verde, roxo, laranja, rosa, havia também sete luas. Ei! Eu não quero esquecer tal lugar incrível!

“Caleb, você realmente precisa esquecer que viveu um dia, então irei te guiar até a morte.”

Parando para perceber, sua pele transparente vazava as cores do universo porque faltou lápis de cor marrom para pintá-la. Riscos mal acabados, cantos em branco, força no traço: tudo revertia em vestes puídas, rasgadas e deformações no corpo. Minha criação era real, e de tão maravilhado que fiquei apenas concordei com tal enunciado sórdido... Quem sabe já não estivesse esquecendo?!

Caminhamos longamente pela utopia multicolorida, multifacetada, pot-pourri explosivo e incandescente. O cenário era tão lindo, lindo, lindo, lindo de morrer. Irei contar o que vi:

Havia sereias de duas caudas, um homem cujo grito era tão feio que quebrou espelhos e galáxias, os olhos roxos da tempestade engoliram montanhas, beijos de açúcar perfumaram o ar com framboesas e coelhos, vestidos alucinógenos dançavam em ciano e limão.

Arregaçamos as mangas e batemos as botas com o Judas, cuspimos, escarramos, e fumamos com cobras. Não só ficamos com as cabeças nas nuvens, mas o corpo todo. Aparamos a vista grossa, achamos agulhas no palheiro (e várias outras coisas escondidas lá, tudo na Casa da Mãe Joana), fritamos ovos com pelo, conhecemos o tal Deus Dará, descascamos abacaxi depois de chutar o pau da barraca, e dormimos nesse ponto mesmo.

Todas essas coisas – esses mistérios quiméricos da humanidade – eu e o Hierofante Azul conhecemos. Andamos por uma estrada com tantas curvas, altos e baixos, aquela tal estrada à porta de meu coração. Após um tempo tudo ficou plano, tão plano que me senti estranho.

Em uma sala, muito distante daqui, luzes apagam. Um monitor bipa e sua tela negra descreve a perfeita reta verde. Andamos todo esse tempo pela linha de meu coração. E a nossa música, as batidas, cessaram.


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Notas finais do capítulo

Obrigada pela leitura. :)