A vida do garoto morto escrita por Quetzal
No dia anterior a minha morte a quintessência planetária parecia derreter. Os sonhos esculpidos em minha mente esfacelavam pois não fui talentoso o suficiente para continuar tais obras; a tinta da caneta rabiscava um livro com a minha história, e secou. O hierofante azul teve uma visão inexplicável, mas, para mim, todo o mistério da vida já perdera a graça.
Minto quando disse esculpir sonhos. Na verdade eles foram pintados a lápis. Sempre inventei muito, então sequer acreditam na mais pura verdade – então qual seria a diferença entre mentir e dizer a verdade?
Gosto de desenhar para contar coisas, afinal, se o que não se conta nunca aconteceu, minhas histórias sem palavras passam a existir. Quando meus pais perceberam que eu não pintava direito deixaram de comprar lápis de cor. Fui, no primário, o pior aluno no quesito de colorir, então deixaram de me presentear com algo que gosto tanto.
Meu estojo passou a ser composto de sobras dos anos passados e pequenos furtos dos achados e perdidos (ou devo dizer perdidos e achados? Por que primeiro deve se perder para então encontrar!). Também estou mais perdido que achado, na verdade, e o que sou senão sobras da personalidade de outrem?
No dia anterior a minha morte voltei a casa mais cedo após tirar dois em Geografia. Havia um prato de comida em cima da pia e as formigas conquistavam-no tal qual vermes fazem à carne. Tomei a refeição fria e garfei com vigor, ignorando aos seres insignificantes pois tornar-se-iam maiores em mim. Eu também quero ser maior. Senti-os passeando entre meus dentes, entre minhas cáries e palavrões, transformando-se palavras e um engasgo.
Resolvi continuar o desenho da noite passada. Os toquinhos quase não davam para apontar – e aquelas saias, restos de lápis apontado, seduzem como vestido de menina, suas formas rodopiam e as migalhas da cor sujam ao papel.
Eu desenhava o hierofante azul. Meu adorável maldito capaz de vislumbrar o futuro em traços de lapiseira 0,7HB, manchas de café e dedos engordurados de comida. Ele vomitava o universo derretido, as estrelas tão vagas e planetinhas mentirosos. E eu os entendia.
Então houve uma batida à porta, uma batida à porta de meu coração. Eu levantei para atender, mas não consegui me erguer.
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Obrigada por ter lido o primeiro capítulo dessa shortfic! Deixa um comentário sobre o que achou? ❤