Camélia escrita por SatineHarmony


Capítulo 6
Fracasso/Sucesso




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Inspirou fundo enquanto encarava o monitor do computador. Shion protelou ao máximo digitar aquelas palavras; ele as temia profundamente, e vê-las escritas, preto no branco, dava a sensação de que eram verdadeiras.

— Terminou? — perguntou Nezumi, entrando no laboratório. Ele interrompeu seus passos ao ver uma lágrima escorrer do olho direito de Shion: — Deixe-me fazer isso. — disse, de forma delicada. Pôs uma mão sobre o ombro do homem, convencendo-o a levantar-se da cadeira para que pudesse sentar-se à frente do computador, concluindo a tarefa de Shion. Começou a ler o que digitava: — "O velório será amanhã, à tarde, no local..." — parou de pressionar as teclas, virando-se para Shion: — Qual é o endereço da sua casa?

Shion suspirou, numa vã tentativa de aliviar a tensão sobre seus ombros. Em vez de responder diretamente a pergunta de Nezumi, curvou-se sobre este para alcançar o teclado, digitando o que fora pedido. Tendo feito isso, Nezumi apertou o botão de imprimir, e apenas a impressora ousou romper o silêncio presente na sala.

— Agora você só tem de entregar isso para Rikiga, e fazê-lo publicar o texto na página de obituários do jornal de No. 6. — comentou Nezumi, levantando-se da cadeira. Shion pretendia continuar mudo, porém não conseguiu conter-se ao ver o outro com sua tesoura nas mãos:

— O que você vai fazer? — perguntou, confuso. Nezumi deu de ombros, notando a preocupação desnecessária de Shion:

— Yoming e seu pai podem não ser atléticos, mas é certo que eles irão lutar quando tentarmos detê-los. Cabelos longos não são nada práticos em confrontos diretos, então vou cortá-lo.

Shion franziu os lábios, tentando não mostrar sua decepção. Já fazia um tempo que ele tinha se acostumado com aquele Nezumi, de extensos cabelos azuis, que se moviam, livres, cada vez que realizava um movimento brusco. Agora que parara para pensar, Nezumi não havia nenhuma vez prendido seu cabelo desde quando voltara. Shion deu um sorriso descrente:

— Essa é uma tesoura de papel. — foi capaz de falar apenas isso, incrédulo. Notando que Nezumi pretendia contestar, logo continuou: — Venha cá, eu farei isso para você.

E foi assim que os dois terminaram num dos banheiros da casa. Nezumi estava sentado sobre uma cadeira, no centro do cômodo. Fios azuis caíam sobre o chão azulejado aos pedaços, cortados pela tesoura mais resistente que Shion encontrara — uma tesoura de tecido usada por Karan quando se aventurava a costurar.

— Você quer que corte até os ombros? — perguntou o homem de cabelos brancos, com o cenho franzido de concentração.

— Até o queixo. — informou Nezumi, de olhos fechados. — Vossa Majestade é ecologista, médico, político e cabeleireiro? — assoviou, com um tom de orgulho sarcástico.

Shion bufou com a declaração alheia, mas rapidamente voltou sua atenção ao cabelo azul à sua frente:

— Eu não consegui concluir meu curso de Ecologia, se lembra? E, novamente, não sou um médico. Não me considero um político, pois não sou um demagogo. E caso você ache que me chamar de cabeleireiro torne o seu corte de cabelo mais seguro, então assim seja. — listou, enquanto pegava um pente para pentear os fios compridos de Nezumi. Este não mostrou intenção alguma de respondê-lo, porém Shion necessitava distrair-se com alguma conversa no momento, portanto continuou falando: — Nós podemos revisar o plano? — pediu, num sussurro. — Eu estou me sentindo muito vacilante com tudo isso.

Nezumi ponderou por um instante, antes de responder:

— Eu falaria para você não se preocupar, porém você está reagindo da forma correta. Bom saber que você ainda possui certo senso de autopreservação. Mas devo apontar que não há muito para temer. Quero dizer, quando eles dois morderem a nossa isca e vierem para cá, Inukashi estará bem longe com Rikiga, Karan e Shion. Eles não correm risco algum, a não ser que você não acredite no que o velho te disse.

— Eu confio em Rikiga-san, ele foi sincero quando falou que ninguém sabia da casa dele no Distrito Oeste. — Shion falou rapidamente, mostrando a certeza que tinha no seu padrasto. — Mas me sinto meio desconcertado com a situação. — confessou, ocupando-se com a tesoura em mãos, como pretexto para evitar o olhar de Nezumi.

— Nada mais natural. — este simplesmente disse. — Poucas pessoas se sentiriam confortáveis com a ideia de prenderem o próprio pai. E mesmo se Kensei não estivesse envolvido, e fosse outro cidadão desconhecido, eu aposto que você se sentiria da mesma forma. Você é assim, Shion, e não tem como negar. — abriu um pequeno sorriso satisfeito, e esse era autêntico. — Você não mudou nem um pouco nesses últimos anos. — comentou num murmúrio. Shion corou ao perceber o elogio implícito na fala do outro. Mordeu o lábio inferior, redirecionando a conversa:

— Quantos voluntários você convenceu a nos ajudarem?

— Apenas sete. Na verdade, eu falei com apenas sete, e todos aceitaram a proposta. — Nezumi respondeu.

— E os outros catorze? — Shion estalou a língua. — Nezumi, quanto mais, melhor. Já basta você rejeitar minha sugestão de chamarmos a polícia e fazermos isso da forma legal; você chamou poucas pessoas apenas por capricho? — sua fisionomia estava desapontada.

Nezumi levou uma das mãos à testa, como se estivesse tendo uma torturante dor de cabeça:

— Shion, eu trabalho com eles há mais de um mês. Eu sei julgar as pessoas, e posso garantir que os outros só nos atrapalhariam. Eu escolhi os melhores, confie em mim.

Shion engoliu em seco ao ouvir a confiança inabalável presente na voz de Nezumi. Quem dera ele ter tanta fé assim em si mesmo. Ele tentou conter a tremedeira de suas mãos enquanto voltava a cortar o cabelo de Nezumi.

* * *

Era o dia do velório. Shion e Nezumi eram os únicos na casa — Karan, Inukashi, Rikiga e Shion estavam muito longe, num esconderijo localizado no Distrito Oeste que, de acordo com Rikiga, ninguém sabia que ele possuía.

Eles dois tinham de agir de forma natural até Kensei e Yoming arriscarem dar as caras, porém Shion estava falhando miseravelmente nisso — como se fingia que tudo estava normal, quando se tinha um caixão com um manequim na sala de estar? Ele não conseguiu fazer nenhum progresso na sua pesquisa sobre o vírus de Inukashi, uma vez que se distraía constantemente com a presença de Kuchinashi — ruiva, olhos azuis —, escondida atrás do seu balcão, portando uma pistola munida por tranquilizantes.

Sim, as sete pessoas, que aceitaram serem cúmplices deles, estavam camufladas pela casa de Shion, tendo inúmeras armas não letais — spray de pimenta, tasers, munição de borracha — em mãos para protegê-los.

— Kuchinashi-san. — Shion chamou num sussurro, enquanto fingia observar o líquido cor-de-rosa que era sugado pela pipeta que segurava.

— Shion, você não deveria estar falando comigo! — apesar da sua censura murmurada, ela cedeu: — O que foi?

— Você poderia, por favor, me dar alguma arma? Todos estão carregando uma, até mesmo Nezumi, e eu me sinto desprotegido. — admitiu, com um sorriso amarelo. Kuchinashi parecia estar prestes a negar seu pedido, quando colocou um spray de pimenta próximo aos pés de Shion. O homem assentiu em resposta, agradecido.

O relógio da sala de jantar badalou com a chegada do meio-dia. Nezumi reuniu todos na cozinha da padaria de Karan. Ele falou numa voz baixa e cautelosa:

— A partir de agora, a qualquer momento, eles podem chegar. Eles pensam que Inukashi morreu, e pretendem vir aqui para pegar o corpo dele. O cadáver é precioso para eles; é a prova de que eles usaram um civil como cobaia para um vírus muito perigoso. Portanto, o melhor é vocês cercarem o caixão de forma oculta. Atirem apenas se eles fizerem menção de nos machucar fatalmente, e lembrem-se: nós precisamos deles vivos, e que falem o máximo possível sobre seus crimes antes de os deixarem inconscientes. Há câmeras instaladas pela casa inteira para gravarem o momento da confissão.

Todos assentiram prontamente às ordens de Nezumi, e este continuou:

— Agora se posicionem, enquanto eu e Shion vamos trocar de roupa. — virou-se para o homem de cabelos brancos ao seu lado: — Inukashi não acharia nem um pouco respeitoso caso passássemos o seu velório de camisa e jeans, certo? — ergueu uma sobrancelha.

Menos de dez minutos depois, Shion estava na sala de estar, vestindo um terno impecável, e velando por um manequim. Ele não precisou fingir muito para transmitir a impressão de que estava triste. Nezumi sentou-se próximo a ele no sofá e, ao vê-lo, franziu o cenho:

— Shion, não havia uma gravata no meio das suas roupas à toa. Coloque-a. — instruiu. Shion mordeu a língua para não insistir em ficar sem gravata; discutir por coisas pequenas não era algo adequado de se fazer num velório.

Foi até o seu quarto, pegando a peça de roupa que antes fora ignorada, sobre sua cama. Shion aproximou-se do espelho, lutando para fazer o nó corretamente — quando foi a última vez em que ele vestira uma gravata? Algo no reflexo chamou sua atenção — uma mão estava abrindo a cortina da janela na parede atrás de si.

Seu corpo ficou estático de nervosismo e expectativa — o que eu faço agora?, pensou, desesperado. Uma repentina determinação tomou conta de si, para a surpresa de Shion — ele pegou o spray de pimenta que Kuchinashi lhe dera, segurando-o em suas mãos enquanto aguardava pacientemente o intruso atravessar a janela.

Um par de pés pousou sobre o assoalho com um silêncio invejável, e Shion viu, pelo reflexo, Yoming dar o primeiro passo em sua direção. Seus olhares se cruzaram no espelho, e ambos reagiram ao mesmo tempo: Shion virou-se para o homem, apontando o spray à altura de seus olhos, e Yoming simplesmente ergueu a arma que segurava; confiança presente em cada uma das suas ações.

— Você provavelmente se esqueceu de mim, não é? — perguntou, sua voz grave reverberando pelo quarto num volume baixo, para os outros na casa não notarem sua presença.

— Claro que não, Yoming-san. — Shion disse em troca, sinceridade clara em cada palavra sua. — Estou muito decepcionado com você. Nós temos consciência do que você anda fazendo, e saiba que não permitiremos isso.

O homem fez um movimento negativo com a cabeça, rindo silenciosamente do que Shion falara:

— Você não sabe de nada. Se soubesse, apoiaria o meu plano. — rosnou.

— Yoming-san, por favor, me explique. A pensão e os agradecimentos não eram suficientes? Eu te ofereci a oportunidade de viver na tranquilidade pelo resto da sua vida, apesar de você ter roubado de No. 6, e mesmo assim você não está satisfeito. O que você quer? — Shion suplicou. Ele desejava compreender o raciocínio de Yoming, que lhe era tão confuso.

— Shion, você é mais ingênuo do que eu pensava, se acha que uma vida calma seria suficiente para me saciar. Eu tenho muito a oferecer ao mundo, mais do que você. Ironia do destino, eu terminei demitido enquanto você continua trabalhando no governo. — sua voz transparecia nojo e desprezo. Shion abaixou a cabeça, absorvendo a declaração alheia. Suspirou ao levantar seus olhos, que mostravam apenas melancolia:

— Por que Inukashi? Por que testar nele o vírus com a nova enzima?

Yoming abriu um sorriso que pingava escárnio:

— Você realmente acha que aquele cachorro tem vocação para rato de laboratório? — ergueu uma sobrancelha, duvidoso. — Nós nunca injetamos o vírus nele. Nossa cobaia era do Distrito Oeste, e fugiu para lá antes mesmo de a doença se manifestar. Quando o encontramos, era tarde demais; ele havia morrido de gripe, você acredita? — revirou os olhos à sua própria retórica: — É claro que você acredita, você tem estudado o vírus há meses. Nós pegaremos o corpo do seu amigo para futuras referências, e todas suas anotações.

— Só por cima do meu cadáver. — Shion trincou os dentes, sua fisionomia tornando-se furiosa.

— Então assim seja. — Yoming sorriu ao encostar o cano da arma na testa de Shion. Este engoliu em seco, apreensivo, e deixou o spray de pimenta cair no chão:

— Você não faria isso. — blefou.

— E por que não? — desafiou o homem mais velho.

— Porque você precisa de mim. — Shion estava fazendo uma aposta arriscada, ele sabia disso, porém era a única tática disponível no momento.

— O que te faz pensar isso? — Yoming lançou-lhe um olhar irritado, sondando-o. — Como todo bom cientista, eu sei que você guardou todas as informações sobre a doença no seu computador. Sua morte não mudaria nada.

— E você sabe as senhas também? — Shion ergueu uma sobrancelha, petulante. Yoming riu baixo:

— Do jeito que você é, sem dúvida elas devem ser algo sentimental, como datas de aniversário, ou o nome da sua mãe. — divertimento apareceu no seu rosto ao ver o desespero de Shion. — Viu só? Você é completamente inútil.

A feição do homem de cabelos brancos se tornou sombria, ao fazer uso da sua última carta:

— Boa sorte sendo morto por Nezumi, caso você me mate. — aproximou sua boca do ouvido de Yoming. Sua voz soava perigosa: — Eu já o vi torturar um homem por informações. Ele é bem criativo, quando planeja uma morte lenta e dolorosa.

Yoming pareceu finalmente se decidir, fazendo um aperto de aço, com sua mão livre, em volta dos pulsos de Shion:

— Você é meu refém. — informou, com um ar de orgulho e sarcasmo. — Vamos à sala, ver se seu pai já está com o corpo. — Yoming o puxou, seguindo pelos corredores da extensa casa. — Vejo que você está fazendo bom uso do seu salário. Você roubou No. 6 também, não foi? E ainda teve a cara de pau de me prender pela mesma acusação. — estalou a língua de desaprovação.

— Minha família e eu temos o que temos pelo nosso esforço e trabalho honesto. Nós não somos fracos a ponto de precisarmos recorrer a meios ilícitos, diferente de você. — Shion murmurou, ácido.

— Será que eu tenho de relembrá-lo da sua posição? — Shion sentiu o cano frio da pistola contra seu couro cabeludo. — Se você for inteligente, você não irá me insultar de agora em diante.

Eles dois chegaram à sala antes que Shion pudesse retrucar mais alguma coisa. Kensei estava em pé, no centro do cômodo, com as mãos erguidas em um claro sinal de rendição. O caixão estava fechado, e Nezumi e os voluntários estavam apontando uma diversidade de armas não letais ao homem mais velho: tranquilizantes, pistolas com munição de borracha e tasers.

Nezumi trincou os dentes audivelmente ao ver Shion com uma arma apontada à sua cabeça. No entanto ele controlou-se, mantendo sua expressão facial indiferente:

— Que bom que vocês vieram juntar-se a nós. — abriu um sorriso irônico. — Kensei estava, agora mesmo, me explicando o porquê de vocês estarem tão desesperados pelo corpo de Inukashi. Talvez você possa complementar com alguns detalhes, Yoming. — a voz de Nezumi estava terrivelmente doce. Sua intenção era óbvia: implicar com Yoming e Kensei.

— Boa tentativa, garoto, mas nós não falaremos nada. Viemos aqui apenas pelo cadáver. — Yoming respondeu.

Shion teve de reprimir um suspiro de alívio — eles realmente pensavam que Inukashi estava morta. Nezumi deve ter fechado o caixão para eles não verem o manequim..., notou ele. Inukashi estava a salvo, que bom. Nezumi captou o consolo presente no olhar de Shion, e assentiu em um sinal afirmativo.

Nezumi tomou as rédeas da conversa novamente:

— Vocês alegam não estarem desesperados pelo corpo de Inukashi, mas sempre voltam a esse mesmo assunto. — observou. — Por que será? Talvez seja porque a última amostra do vírus está no sangue dele? A atual responsável pela área da Saúde deve ter se livrado de várias experiências organizadas durante o seu mandato, e agora vocês não têm nada. Seu plano foi por água abaixo. — alfinetou, rindo do olhar revoltado de Kensei e Yoming.

— Ah, sim, então você está contando com esses cães de guarda — Yoming gesticulou com a cabeça para Kuchinashi e os outros voluntários. — irão nos matar caso tentemos pegar o cadáver? — franziu os lábios. — Seria uma pena, se nós não tivéssemos um refém... — sorriu, encostando mais a arma contra a têmpora de Shion.

— Correção: nós não pretendemos matá-los. — Nezumi nem pestanejou diante da tentativa de ameaça de Yoming. — Morte seria uma punição leve demais para vocês. Ficarão presos pelo resto das suas vidas. Matar por dinheiro?! Isso é deprimente.

Kensei se manifestou pela primeira vez desde quando Shion e Yoming adentraram a sala de estar:

— Garoto, você não pode apontar dedos para nós. Você viveu no Distrito Oeste, não se faça de inocente. Aposto que você matou muito mais do que nós mataríamos.

Nezumi fechou as mãos em punhos, e então voltou a apontar a sua pistola, com mais determinação, na direção de Kensei:

— O Distrito Oeste matava para conseguir comida. Para conseguir abrigo. Para conseguir proteção. Vocês vivem nas suas casas confortáveis, têm mais de três refeições por dia, saúde e educação impecáveis, e acham que podem abrir a boca para reclamar de algo? — cuspiu as palavras com feracidade.

Nezumi engatilhou a arma, mirando na cabeça de Kensei. Shion pensou em avisar-lhe que um tiro naquela região tinha grande possibilidade de ser fatal, por mais que a bala fosse de borracha. Um segundo depois, ele notou que essa era a intenção de Nezumi:

— O que vocês pretendem fazer com este vírus? É melhor que tenham uma boa razão, senão... — não foi necessário que ele terminasse sua ameaça; todos a compreenderam perfeitamente.

Kensei respondeu antes que Yoming pudesse fazê-lo:

— Faremos uma limpeza no Distrito Oeste. Menos habitantes, menos bocas para alimentar, menos cidadãos para cuidar. A porcentagem dos fundos da No. 6 que era destinada a eles acumularia, e seria aplicado no projeto de mineração da No. 6. — concluiu Kensei, com um sorriso ganancioso. — Você se lembra do ouro que eu te contei quando nos conhecemos, não é, Nezumi?

— Vocês me enojam. — o homem de cabelos azuis disse entre dentes. Suas mãos tremiam de raiva. Shion estava tão irritado quanto ele:

— Como vocês podem fazer isso?! O pessoal do Distrito Oeste é tão humano quanto nós! O muro foi derrubado; agora todos nós fazemos parte da No. 6. Todos somos iguais. — gritou, alterado.

— Todos em No. 6 são iguais? — riu Kensei. — Shion, você teve de criar um projeto de voluntariado para tentar controlar o preconceito sofrido pelos habitantes do Distrito Oeste. Você sabe que uma ideia fantasiada não ajudará em nada.

Shion expressou toda a fúria contida dentro de si:

— Cale a boca, você é um alcoólatra que não foi homem suficiente nem para lutar para ficar ao lado da mãe! Quem é você para esmagar as esperanças das outras pessoas? — ele explodiu, e todos na sala de estar o observaram com os olhos arregalados. Yoming chegou a afastar um pouco a arma que segurava contra a cabeça de Shion. Kensei parecia estar mais surpreso pelo que ele falara sobre Karan. — Nada é fácil no começo, você acha que eu não sei disso? Se eu desistisse logo no início, eu me tornaria alguém feito você. — a última palavra foi dita com o máximo possível de desprezo.

Yoming soltou um suspiro cansado:

— Não discutiremos ideologias aqui; não temos tempo para isso. Nezumi, pare de apontar essa arma a Kensei e me passe o corpo do seu amigo. Caso contrário, Shion morre. — foi sucinto.

Nezumi deu uma risada divertida, recebendo olhares desconcertados de todos. Alheio a eles, o homem de cabelos azuis foi até o caixão, abrindo-o. Quase no mesmo instante em que o manequim foi revelado, Shion notou a ausência da arma fria contra sua cabeça — Yoming refez o caminho que percorrera até a sala de estar, e provavelmente pulara de novo a janela do quarto de Shion para completar sua fuga.

Kensei, ainda com as mãos erguidas em rendição, fez uma reverência antes de atravessar a sala de estar, rumo à saída mais próxima. Passando ao lado do homem de cabelos brancos, disse:

— Tchau, Shion.

Adeus, Manjushage. — sussurrou ele em resposta.

Todos no recinto pareciam estar sem ação. Suisen, um voluntário jovem e moreno, resumiu a confusão que eles sentiam:

— Nós não deveríamos persegui-los, Nezumi?

Este deu de ombros:

— Eu liguei para a polícia hoje de manhã, e armaram bloqueios em todas as ruas com acesso para a casa de Shion. A polícia de No. 6 é competente a ponto de reter dois velhos armados, não é, Shion? — perguntou, reprimindo uma gargalhada. Shion revirou os olhos:

— Você me assustou; nunca mais faça isso. — fez bico, parecendo uma criança mimada quando não consegue o que quer. — Eu já te disse para não me deixar por fora de nada. — resmungou.

Nezumi aproximou-se dele para afagar seu cabelo pálido:

— Você não teria atuado tão bem se eu tivesse te contado que estávamos seguros desde o início.

— Eu não atuei. — Shion murmurou, e, em troca, recebeu um beijo na testa:

— Eu sei. — Nezumi deu um breve aperto na sua mão antes de se afastar de Shion. Voltou-se para os voluntários: — Vocês irão para casa hoje tendo em mente que prenderam dois homens que provocariam um grande estrago a No. 6. Vocês fizeram uma formidável performance, pela qual estou profundamente grato. Estão liberados. — fez uma reverência respeitosa.

Os voluntários despediram-se entre si e de Shion e Nezumi antes de partirem. Shion estava sorrindo tanto que uma dor estava começando a aparecer em seu rosto — tudo isso apenas por ver a forma como Nezumi interagia com os outros. Agora ele entendia a confiança que Nezumi depositara nestas pessoas — elas a mereciam. Assim que se viram sozinhos, Nezumi virou-se para Shion:

— Por que você está sorrindo feito um idiota em silêncio?

— Porque você vai ficar.

Nezumi conteve um sorriso, porém foi em vão: seus olhos mostravam toda a felicidade que ele sentia no momento.

— Sim, eu pretendo. — assentiu. — E Karan não precisa se preocupar, eu pretendo encontrar um lugar para mim.

A feição de Shion tornou-se decepcionada:

— Você pode continuar morando conosco pelo tempo que quiser.

Desta vez Nezumi sorriu, de fato:

— Seu plano de vida é morar com sua mãe até morrer? — ergueu uma sobrancelha, sarcástico. — Você precisa deixar o ninho, e se tornar cem por cento independente. Venha morar comigo. — propôs.

— Vou pensar na sua oferta, senhor. — Shion respondeu com seriedade exagerada.

— Sim, Vossa Majestade. — Nezumi revirou os olhos em resposta à brincadeira do outro. Eles passaram um breve instante em silêncio, e Shion logo o quebrou:

— Por que você vai ficar? — perguntou, e Nezumi franziu o cenho, contemplativo:

— Certo pensador uma vez disse que os começos nunca são fáceis. Eu gostaria de pôr essa declaração à prova, permanecendo em No. 6 para saber se essa cidade é capaz de me agradar. Eu quero ver o que você vê em No. 6, Shion.

Shion não respondeu, sabendo que seu silêncio seria o suficiente como resposta para Nezumi. Ele sempre achara isso curioso — a forma como eles dois conseguiam ter conversas inteiras sem pronunciar uma palavra sequer. O futuro se desenrolava à sua frente, e Shion ousava dizer que ele era promissor, muito promissor — e recheado de mais conversas como esta.

Nezumi entrelaçou seus dedos nos de Shion.

Quente.

Pessoas vivas são quentes.

Shion se lembrava de ter sido sempre quente, mas era irônico como ele só se lembrava de começar a viver sua vida a partir do seu primeiro encontro com Nezumi. Uma janela aberta, o desejo de destruir tudo. Uma pessoa desesperada, uma pessoa disposta a ajudar.

Uma janela aberta, a possibilidade de reconstruir tudo. Uma pessoa que amava, uma pessoa disposta a reciprocar.

A janela sempre ficaria aberta — afinal, de que outra forma se era possível apreciar esta obra chamada vida?


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Notas finais do capítulo

* Eu escolhi "Manjushage" (ô nome esquisito de pronunciar :s) como nome verdadeiro do pai do Shion porque ele é "lírio-da-aranha-vermelha" em japonês. Apesar do nome estranho da flor, ela é, na verdade, muito bonita: http://migre.me/oqM3B Essa flor significa "memória perdida", "abandono" e "nunca encontrar-se novamente", e eu achei que ficaria interessante se o pai do Shion se chamasse assim.
Prevejo pedras sendo tacadas em mim x.x Mil desculpas pelo desfecho tão "rápido", mas é que eu sou péssima com suspense e "climas", e posso garantir que vocês não gostariam nem um pouco se eu alongasse a história - ia ficar uma coisa horrorosa de chata, sério. O próximo capítulo a ser postado é o epílogo ç.ç