O Doador de Sonhos escrita por Emanuel Hallef


Capítulo 9
Ato IX. Um fogo devora o outro fogo


Notas iniciais do capítulo

Por favor, leiam ouvindo Warrior https://www.youtube.com/watch?v=74aOxH4R5Ow
Prometo que se fizer isso, todos os sentimentos que senti escrevendo você sentirá também. Adicione essa história aos seus favoritos, isso me ajuda a continuar :)



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Anne ainda podia sentir, mesmo que descrevesse a sensação como emoções naturais, uma culpa devorando-a por dentro a passo. E era engraçado para a menina sentir aquilo, afinal, havia saído da roda-gigante e sabia que tudo que sentiu enquanto estava na cabine não passava das consequências do flashback. Tom deixara claro, logo no início, quando a segurou pelos braços, que ela sentiria absolutamente tudo. E fora isso que aconteceu, de fato. Ainda assim, Anne acreditava que tudo cessasse assim que se libertasse do casulo de memórias.

Mas não fora isso que aconteceu.

Ela continuava sentindo tudo, mesmo que fracamente.

Caminhava na mesma direção que os monstros levaram Tom, mas suas pernas insistiam em fazê-la parar e retornar. Ela lutava contra esse desejo ardentemente, pois sabia que não se perdoaria se partisse sem ajudar Tom. Tinha se afeiçoado ao rapaz, ou em suas próprias palavras: “A criança, ao Tom criança...”. O que era uma verdadeira mentira.

Quando retornou ao parque de diversões e não viu o Tom adulto ali, seus neurônios pararam de funcionar por alguns segundos e ela não sabia o que achar: se conseguisse se salvar, partiria sem ajudar Tom? Ou enfrentaria aqueles monstros e o traria de volta?

Podia mentir para si mesma, mas não para o destino.

Não para o parque de diversões.

Estava indo atrás para salvar o Tom adulto, não o Tom criança.

A lua brilhava com uma intensidade anormal. Anne, enquanto tentava passar por cima das cordas de isolamento da montanha-russa, admirou-a por alguns segundos e percebeu uma saudade sendo transmitida. Sabia que muitos a julgariam como louca, mas, mesmo assim, sentiu isso e ainda quis continuar olhando-a e tentando entendê-la, mas sabia que não tinha embarcado naquela aventura para ser distraída por qualquer alucinação que visse.

Depois que percebeu seu caminho livre, Anne apressou os passos e agora corria, ofegante e esfalfada. Os cabelos esvoaçantes, as mãos fechadas em punho, a menina acreditava que ainda existia esperanças. Não fazia a menor ideia de como conseguiria vencer aqueles monstros para libertar Tom, mas tinha que tentar, pelo menos tentar...

Chegou a um corredor muito estreito e se perguntou se era aquele o lugar que os monstros tinham levado o rapaz. Tentando trazer de volta as suas recordações das aulas de matemática, a menina tentou ter uma ideia se aquele beco bitolado cabia dois monstros e um homem encapuzado (ela riu ao fazer isso, lembrando que suas memórias foram todas apagadas).

Deu um passo à frente e bateu o pé em um pedaço de pau, abaixou a cabeça e viu que aquilo não era um pedaço de pau, necessariamente, mas a varinha de condão de Peter, o mágico. Abaixou-se e pegou-a com cuidado, segurando o objeto pela parte vermelha lustrosa e com marcas de digitais. Não sabia usar aquilo, mas achava que talvez precisasse. Quem sabe um “Abacadabra” funcionasse...

Com a varinha de condão em mão, Anne saiu correndo, desta vez com rapidez, pelo estreito beco à esquerda da montanha-russa. Não era longo e ela, assim que adentrou, avistou o fim.

Demorou alguns segundos e agora estava diante de uma estátua. Era um anjo, aparentemente sentado e com a mão esquerda sustentando sua cabeça. Parecia pensativo... A menina se assustou, pois no lugar dos seus olhos, dois diamantes rubros brilhavam e refletiam a luz da luz que entrava bisbilhoteira pelas pequenas aberturas do lugar, que parecia uma caverna. Anne se aproximou da estátua, receosa, e viu gravuras na testa do anjo. A menina não reconheceu, de imediato, os caracteres, mas sabia que podia traduzir aquilo. Com sua mão esquerda, ela passou, gentilmente, seus dedos por cima das gravuras, fechou os olhos e sua boca se movimentou sozinha, dizendo: OFEREÇA UM SACRIFÍCIO!

“Está escrito em búlgaro”, sussurrou Anne, afastando-se da estátua.

Quando, prontamente, o anjo pareceu se mexer. Ele saiu da posição de alguém que estava pensante e retirou dos seus alforjes uma faca, entregando-a a Anne, que se assustou com aquela cena, pensando que talvez tivesse despertado alguma maldição.

O anjo sorriu e jogou a faca, que caiu em cima dos pés de Anne. Em seguida, como se fosse tudo automático, retornou a sua posição de pensante. A menina assimilou uma coisa à outra e soube que teria que sacrificar alguma coisa para entrar, só não sabia o quê.

Começou a raciocinar por alguns minutos, olhando para baixo, onde pegou a faca e a segurou com força. Estava estampado, como se fosse um letreiro com várias luzes coloridas, que aquele parque era movido por sacrifícios. Na realidade, não só aquele parque de diversões era movido por sacrifícios, mas todo o mundo. Você não pode ter duas coisas ao mesmo tempo. Para realizar um sonho, muitas vezes é preciso abrir mão de alguma coisa. E Anne sabia que todos os brinquedos ali eram movimentados pelo sacrifício de Tom, que se intitulava, a mando de alguma força superior, talvez, que era o novo “Aurélio”. Poderia parecer bobagem, mas Anne sabia que o velho homem não tinha sobrevivido daquele acidente. O parque era liderado por ele e sem o velho nada ali funcionaria direito. Obviamente, Tom ficou no lugar dele. Por vontade própria? Talvez sim, talvez não. Mas para estar fazendo o que faz, Anne sabia que fora um sacrifício. Não viu nenhum tipo de “amor pelo que faz” nas expressões do rapaz.

Por essa razão, a menina colocou a varinha de condão no bolso e, com a faca segurada em punho, apontou-a para sua mão direita e pressionou a lamina sobre a pele fria e branca, criando um buraco muito profundo, de onde surgiu, posteriormente, muito sangue. Caminhou até o anjo e passou o sangue em cima das gravuras.

Retornou alguns passos e recebeu a resposta do seu sacrifício. O anjo se abriu ao meio e agora a menina via uma luz forte, muito forte, que a fez colocar a mão sob os olhos para não ficar cega.

Segundos depois a luz cessou e agora Anne via o rapaz...

Acorrentando, Tom mantinha a cabeça baixa. As algemas conectavam cada braço seu a um objeto enferrujado e sujo de sangue. A princípio ela viu alguém de capuz, com a máscara, mas depois que se aproximou o suficiente, podia vê-lo como uma pessoa normal. Não trajava sua capa, não carregava sua máscara, ele era o Tom, somente o Tom. E Anne ficou admirada com o que viu.

Era forte o rapaz; seus braços esticados avantajavam seus músculos e o suor que caia ligeiramente, serpenteavam seu bíceps e pingavam no chão arenoso. Via também os cabelos dele caídos sobre a testa, sombreando seu rosto. Estava fascinada com tudo aquilo, mas toda aquela admiração cessou quando ela viu o sangue cair, junto com o suor, dos olhos do rapaz. Ele ergueu a cabeça e Anne viu, pela primeira vez, o rosto do Tom adulto.

Seus olhos eram incrivelmente verdes, diferente do tonalidade que viu nos olhos do Tom criança quando estava com ele dentro daquele carro. Sua boca era vermelha e muito bem desenhada, ela encarou-a de súbito, sem respirar. Os lábios do rapaz estavam entreabertos, brilhavam úmidos como se uma luz o iluminasse interiormente. Seus olhos resplandeciam, mas não podia distinguir se era de dor ou de misteriosa alegria. Sua testa alargara-se para o alto, seu corpo mal se compensava no esforço de se conter, de não vibrar.

— O quê? — sussurrou Tom assustado.

Ele olhava-a.

— Tenho medo — disse Anne por fim.

Fitaram-se um segundo. E ela não teve medo, mas sentiu uma alegria compacta, mais intensa que terror, a possuía e enchia todo o seu corpo.

Os lábios do homem tremeram um segundo. E mal se libertando do olhar de Anne, escondeu bruscamente o rosto nas mãos longas e morrudas.

E quando pensou em se aproximar mais, a menina ouviu um barulho muito forte de um sino badalando. O fogo se acendeu, outra vez, e agora dominava Tom com mais ardor e intensidade do que antes. Anne percebeu isso e se virou, com os olhos cheios de lágrimas, para o seu Tom queimar e ser debelado por aquelas labaredas.

Sentindo um impulso superior a ela própria dominando-a, ela saiu correndo em direção a Tom. Não sentia pena, nem compaixão, sentia algo diferente conflagrar seu coração. Ela queria, mesmo que inevitavelmente, compartilhar daquela dor com Tom. Achava que talvez pudesse amenizar a sua dor, dividi-la e suportá-la também.

Agora de frente ao Tom queimando, ela se ajoelhou e abraçou o rapaz. As chamas perceberam isso e avançaram, dominando a garota e fazendo os dois corpos se grudarem e se queimarem ao mesmo tempo. Anne sentia o fogo devorar cada fibra do seu corpo, ao mesmo tempo em que percebia o corpo de Tom tremer contra o seu peito. Ela ergueu a cabeça e olhou diretamente para os olhos do rapaz, ficou assim, por alguns segundos, sedenta e assombrada, cogitando tomar uma atitude que talvez os livrasse daquele tornado.

E assim o fez...

Encostou delicadamente seus lábios nas do rapaz e as bocas se uniram. Anne agarrou os cabelos de Tom e o puxou para mais perto de si, o rapaz notou e de início ficou vacilante, sem saber o que fazer. Fechou os olhos para tentar passar por aquilo sem se contaminar, mas sabia que era tarde demais. Queria aquilo. Precisava daquilo. E não conseguiu mais se segurar...

O fogo começou a se acalmar aos poucos e Tom agora queria. Anne percebeu e colocou suas duas mãos em cima do peito cheio do rapaz, sentiu os ligamentos do homem vibrar e depois desceu para a barriga dele, sentindo o abdômen definido e atlético. Tom tentou se livrar das correntes, mas não conseguiu. Relaxou e esperou que Anne continuasse... Sentir o toque da menina viajar pelo seu corpo era a melhor sensação do mundo. Sua boca tinha gosto de morango com chocolate e ele queria devorá-la. Afastavam-se, ofegantes, procurando respirar, e continuavam na mesma intensidade. O fogo cessou e a garota se afastou devagar, mantendo os olhos firmes naqueles olhos verdes que a fez sorrir.

O momento acabou e Tom ficou sério — Precisa ir embora daqui, Anne. Não sei como conseguiu sair daquela roda-gigante, mas os Oscuros podem voltar a qualquer momento. E se vê-la aqui, comigo... eles... vão machucar você.

— E desde quando se importa comigo? — rebateu Anne, ainda olhando o rapaz de frente e sem abaixar a guarda.

— Não me importo com você, eu... só estou...

— Desculpe se estou atrapalhando o momento feliz, mas preciso da minha varinha, senhorita Catherine...

Os dois olharam em direção a abertura do anjo e se surpreenderam com o que viram...


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Notas finais do capítulo

Meu mundo paralelo, acesse: emanuelhallef.wordpress.com