O Doador de Sonhos escrita por Emanuel Hallef


Capítulo 8
Ato VIII - Eu falei que eram mágicos...


Notas iniciais do capítulo

Para uma melhor apreciação, leia ouvindo: Seeing for the first: www.youtube.com/watch?v=ayJAzp42TUw

Adicione essa história aos seus favoritos, pois me ajudará muito :D



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/587398/chapter/8

Depois de caminhar ao redor do brinquedo, Aurélio parou em frente a Tom e o olhou atentamente por alguns segundos. Em seguida começou a gargalhar muito alto, colocando a mão sobre a barriga e se abaixando para conter o grande uivo que saia das suas cordas vocais. O garoto também sentiu vontade de rir, mas algo nascia, aos poucos, inquieto, doloroso e incômodo, de dentro do seu peito, e o menino teve a leve impressão que essa sensação era transmitida pela roda-gigante, de alguma forma.

Da mesma maneira que imaginava que todos os brinquedos ali tinham gênio e até um coração, com a roda-gigante não era diferente.

“Está nervosa e insatisfeita”, raciocinou Tom.

O velho, finalizando sua crise de risos, levantou a cabeça e limpou seus olhos lacrimejantes — Não ligue para mim, Tom. Só estou muito feliz. Depois de tantos anos... bem, eu... nunca pensei que viveria para ver essa belezura consertada e doando alegria as crianças de novo.

— E por que o senhor não a consertou antes?

— Porque nenhuma criança quis me ajudar...

— E por que precisa de uma... de uma criança, senhor?

Aurélio não o respondeu, pois agora caminhava para fora do brinquedo, se aproximando da máquina de caça-níquel. Chegando lá, abriu com carinho a pequena e frágil porta e retirou alguma coisa de lá. Fechou-a e, com os olhos ainda lacrimejantes, retornou até aonde o garoto estava, ajoelhando-se — Está vendo essa caixa de lápis de cor? — Aurélio abriu as duas mãos, mostrando o que trazia consigo.

Tom nunca tinha visto nada igual. Não eram os mesmos lápis que costumava usar na escola, pois esses pareciam ser maiores e mais grossos. Eram feitos de uma madeira maciça e tinham uma tonalidade diferente. O menino, sorridente, retirou o lápis de cor vermelha, que era seu favorito, e o ergueu ao céu, quando, na mesma hora, lá da ponta caiu um farelo interessantíssimo e dessemelhante, que caiu no chão e coloriu um quadrado de cerâmica mal trabalhada como se fosse mágica. Tom, curioso e impressionado, se abaixou e tocou o piso, esfregando seu dedo indicador.

— A tinta não está fresca... — observou o garoto, esfregando os dedos e esperando vê-los sujos, mas nada acontecia — Que lápis diferente!

Aurélio sorriu ainda mais, unindo suas sobrancelhas e colocando sua mão esquerda por detrás da cabeça de Tom, enquanto balançava a outra no ar, lentamente, como se tivesse limpando alguma coisa — Não são lápis comuns, Tom. Há magia neles, meu caro.

— Magia? Que nem a do mágico?

— Muito mais poderosa, sabe por quê? Porque ele funciona a partir da imaginação de uma criança. Uma magia tão pura e imaculada que chega a ser rara hoje em dia... Ele só funciona nas mãos de alguém que acredita neles. Que acredita que saíra alguma cor, assim que o esfregar em algum lugar. E você acredita, não é mesmo, Tom?

— Mas é claro que sim, são lápis de cor, afinal de contas. É só esfregar eles em algum lugar, olha, senhor... — então Tom se aproximou de uma cabine da roda-gigante e, com o lápis vermelho que carregava, esfregou-o na pequena portinha, que se coloriu instantaneamente. O garoto se assustou com aquilo e deu alguns passos para trás “Não tenha medo, continue”, estimulou Aurélio e Tom friccionou seus olhos, voltando para perto da cabine e continuando a passar o lápis por lá. No lugar do alvejado que reinava naqueles detalhes, um vermelho extremamente vivo e brilhoso se apoderou. Tão resplandecente que podia refletir a luz da lua com muita facilidade.

— Eu falei que eram mágicos... — disse Aurélio, com uma voz baixa e lunática, como se tivesse lendo um conto de fadas — Agora, o que acha de colorirmos esse brinquedo, Tom?

O garoto virou para o amigo, prazenteiro e esperançoso — Será muito divertido, senhor!

[...]

Levaram apenas duas horas para colorir toda a roda-gigante. As crianças notaram o que estava acontecendo e ficaram curiosas. Algumas se aproximaram, outras subiram em cima das mesas para conseguir ver melhor o espetáculo de cor e excitação.

Aurélio percebeu o movimento e terminou de colorir o último detalhe.

— O senhor não acreditava que podia sair cor dos lápis? — perguntou Tom, de repente, finalizando a penúltima cabine do lado esquerdo.

— Não... Desde que a minha mulher morreu, eu... não acredito em mais nada que envolva magia.

— Sua mulher morreu?

— Faz muito tempo, Tom!

— Ela morreu de quê, senhor?

— Câncer.

— Ah... — o garoto viu que não seria apropriado continuar e voltou a colorir a cabine, pois ainda faltava os fios metálicos.

— Em outra ocasião, prometo que lhe conto tudo — continuou Aurélio, sorrindo levemente e se levantando— Você ia adorar conhecer meus filhos.

— O senhor tem filhos?

— Tenho 3...

— E onde estão eles?

— Onde estão... bem, eles...

[...]

Ao terminar de contar toda a história a Tom (que devo adiantar a vocês que é surpreendente e quase surreal), Aurélio finalizou sua parte e agora a roda-gigante estava pronta para ser inaugurada.

O sorriso voltou a reinar nas expressões vazias do homem. E os dois estavam ansiosos para que as crianças viessem experimentar a majestosa roda-gigante.

E obviamente fora isso que aconteceu.

— Fizeram um ótimo trabalho — parabenizou o mágico.

— Feitos de uma criança, meu caro amigo... — respondeu Aurélio, bagunçando o cabelo de tom.

— Feitos de alguém que agora acredita, mágico — complementou Tom, imitando a voz do velho homem.

[...]

A noite caiu e as últimas crianças cruzavam a roleta e abarrotavam a saída do parque de diversões.

A inauguração da roda-gigante fora um sucesso estrondoso. A fila não parava de aumentar e Tom teve uma vaga impressão que surgira outras crianças do nada, como se existisse algum portal ali.

O menino, sem fazer perguntas, ajudou Aurélio e o mágico a fechar tudo e agora estava deitado em sua cama estreita de solteiro. Apenas cochilava, pois o sono ainda não tinha o abocanhado.

“Você é o culpado...” — era uma voz apavorante, coberta por ódio e amargura. Ecoava em seu subconsciente, o bombardeando sem piedade alguma, como se gostasse de fazê-lo agonizar em sua própria culpa “Será que não consegue ver o que fez?”, se arrepiou dos pés à cabeça, mas continuou a dormir, colocando o travesseiro em cima do rosto “Não finja que está surto, pois sei o quanto és culpado... vire-se para mim, olhe nos meus olhos, veja o reflexo da minha dor...”, o menino se acordou desesperado, como se tivesse retornando a superfície — estava assustado, trêmulo, com as mãos sobre o peito “Volte a se deitar... Deixe-me torturá-lo um pouco mais...”, seus pés já estavam sobre o chão quando sentiu uma tontura o dominar, fazendo-o abaixar a cabeça e sustentar o corpo com apenas uma mão, enquanto a outra, erguida, procurava pelo abajur.

“O quê?” — exclamou em voz alta, olhando para os lados.

Era a primeira vez que ouvia uma murmuração tão atordoante quanto àquela. Suas orelhas estavam vermelhas... — “Venha para mim. Estou à sua espera...” — e nada ao seu redor fazia sentido.

“O que você quer?”, perguntou ao além, sentindo-se mau.

Passou alguns segundos para receber a resposta, como se fosse a sua própria voz ressoando de volta: “Sinta-se culpado...”

“Culpado pelo quê?” — foi quando ouviu o barulho de um sino.

Curioso e trepidante, Tom conseguiu encontrar o abajur e o ligou, percebendo imediatamente que Aurélio não estava deitado.

Atribulado, o menino saiu correndo da cabana e também não viu o amigo na praia. O sino continuava badalando e vinha lá do parque.

Alguma coisa estava acontecendo...

Quando conseguiu abrir os portões que davam acesso aos brinquedos, Tom viu que a roda-gigante estava acesa e se movimentava. Sonolento, começou a caminhar em direção a ele e viu Aurélio mexendo na máquina de caça-níquel. Aproximou-se do amigo e pegou em seu braço — Aconteceu alguma coisa?

O homem se virou, sério — Tom, o que faz acordado a essa hora?

— Tive um pesadelo! — respondeu o menino, não querendo entrar em detalhes. Estava preocupado com o amigo, pois algo dentro dele dizia que havia alguma coisa de errado — E o senhor, o que faz acordado?

— A roda-gigante está com defeito. Preciso consertá-la...

— Não pode fazer isso amanhã?

— Claro que não! Olhe, me ajude, está vendo esse ferro? — Aurélio saiu da frente da máquina de caça-níquel e Tom virou várias engrenagens se movimentarem paralelamente — Quero que segure-o e só solte quando eu mandar, fui claro?

— Mas o que o senhor vai fazer?

— Pode me ajudar ou não?

— Sim, claro que sim.

Tom segurou o ferro com as duas mãos, enquanto Aurélio começou a caminhar em direção a uma cabine, a mais velha de todas. Entrou, fechou a portinha e apertou no botão interno, fazendo a roda-gigante começar a funcionar. Tom não sabia o que estava acontecendo e o que isso representava, mas compreendia que precisava segurar aquele ferro com todas as forças que tinha, pois o objeto não parava de se mexer.

Depois de uma volta, o brinquedo parou. Deixando a cabine onde Aurélio estava lá em cima...

Quando, de súbito, um fogo, partindo dos pés de Tom, começou a queimar o garoto. Não era forte o suficiente para machucá-lo, mas ele sentiu um pequeno beliscão — Não, Tom, cuidado. Não se deixe enganar por essa sensação. Eles estão aqui e não podem ver...

“Quem está aqui?”

Mas, antes de receber a resposta, o fogo aumentou e agora consumia o menino. Com a dor que sentia, Tom soltou o ferro e tudo aconteceu...

A cabine onde o velho estava começou a soltar faíscas e, por causa delas, Aurélio começou a ser eletrocutado. As luzes do brinquedo começaram a piscar aleatoriamente, como se fossem teclas de um piano.

Lá dentro do fogo, vendo aquela contemplação, Tom entendera esmagado e secretamente desnorteado o que a roda-gigante queria dizer a ele desde o início. E, nesse momento de abrangência, sentiu-se livre, perdoado além do que ele sabia de si mesmo, perdoado no que estava sob tudo o que ele era...

O mágico, de pijamas, ergueu sua varinha de condão em direção a Tom, livrando-o das chamas. A cabine se soltou lá de cima e, segundos depois, destabocou-se no chão, com Aurélio fazendo-a companhia.

O mágico, que parecia mais preocupado com Tom que com Aurélio, cobriu a criança com sua capa e gritou “Sumissius!”

Mas Anne não conseguiu saber o que aconteceu depois, pois agora ela havia voltado ao parque de diversões em preto e branco. Estava sentindo, como sempre sentia depois de um flashback, uma dor fulminando e destroçando seus órgãos, desde o coração até a sua espinha.

Sentia remorso, culpa, ódio, medo, angústia, tudo envolvendo-a em um casulo. Ela só queria que tudo aquilo parasse.

Queria morrer.

Com isso, em uma tentativa de cessar as emoções, ela bateu com força no chão da cabine da roda-gigante e o fundo quebrou, fazendo-a cair em cima do solo grotesco do parque de diversões.

Estava livre.

E sentiu que as dores haviam cessado.

Contudo, ao invés de sair correndo, ela se lembrou que Tom precisava de ajuda e se levantou, ligeiramente, limpou sua calça e saiu correndo em direção ao lugar onde os monstros levaram o rapaz...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo


Meu mundo paralelo, acesse: emanuelhallef.wordpress.com