Echoed escrita por Kallin


Capítulo 3
Aonde acaba o Paraíso




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Durante aquela época, nada mais de especial ou importante tinha chegado a acontecer, não mais do que já havia até então... Eu vivia tranquilamente, isolado naquele meu mundo, e com aqueles que eram meus amigos, minha família...
Isso até meus 9 anos.

Ainda me lembro bem daquela manhã, o sol entrava friamente pelos vitrais da capela, e por mais que eles pudessem aquecer meu corpo, meus ossos por dentro pareciam tão gelados quanto o orvalho que caia das folhas das árvores.
Tinha chovido muito nos dias anteriores, e finalmente era bom poder sair pelas enormes portas de madeira e observar o céu claro e aberto, como se a muito tempo eu não o visse... Minha impressão era de tanta satisfação, que nem ao menos reparei quão calmo e vazio estavam aquelas colinas pela primeira vez, sussurrando silenciosamente as más notícias que chegavam dos campos vizinhos, como um código secreto que nem mesmo eu poderia entender a princípio...

Eu me estiquei sobre o batente da porta, admirando a longa vista da pequena estrada que se estendia infinitamente para o leste, com aquela mesma admiração que sempre tive por nunca ter seguido aquele caminho até fora das colinas... e ainda sim, sabendo que todos os tipos de pessoa poderiam surgir subitamente daquele ponto, como se aquele caminho desse para o fim do mundo, e em sua ponta, houvesse um mágico portal que conectava todos os diferentes mundos que eu conseguiria imaginar...
E mais uma vez, como em todas as ocasiões, não tardou para aquele caminho me impressionar... Dessa vez, não com pessoas que singelamente caminhavam até a capela, com seus desgastados calçados, apoiadas sobre objetos, ou acompanhadas de outras pessoas igualmente desgastadas pela viajem...
Não... Não poderia ter sido similar a isso...
Seguido por um ar denso de perigo, eu vi marchando até a frente da capela, não mais do que três homens adultos bem vestidos, eles pareciam usar uniformes do clero, mas ao mesmo tempo, tinha um ar mais... militar... carregado naquelas vestes tão bem alinhadas... Isso sem poder realmente ignorar também aquelas armas que eles carregavam na cintura de suas roupas. Eu sabia oque eram armas desde jovem, afinal eu sempre vi muitos forasteiros carregando elas, como companheiras de uma difícil jornada por aquelas terras. Mas eu realmente nunca vim a saber oque elas faziam, até realmente crescer.

Assim que eu avistei aquelas pessoas, eu deduzi que elas não estavam ali apenas de passagem. Suas roupas, seu porte, tudo nelas já me adiantava que eu precisava chamar o Padre correndo, antes mesmo que elas alcançassem os portões.
Mas antes que eu pudesse dar as costas para elas e correr em busca do Padre, eu o vi surgindo por trás de mim, repousando sua mão em meu ombro, e me puxando sutilmente para dentro, em um gesto para que eu o deixasse a sós com os recém-chegados...
Se eu soubesse do que se tratara aquele momento, então talvez eu poderia dizer que aqueles foram os minutos mais demorados da minha vida... Mas por pura ingenuidade, eu apenas resolvi ignorar novamente os viajantes que estavam ali como sempre, e ir até o poço para pegar água e começar os preparativos para o café da manhã...
Recolhendo a água do poço, eu permiti que minha visão corresse pelos arredores, aproveitando a vista, e me ajudando a ignorar o frio matinal que arrebentava pelo simplório tecido das minhas roupas... Foi quando eu notei de relance, Ama se debruçando escondida atrás de uma das árvores da floresta, não ousando se aproximar mais do que aquilo, e com uma expressão angustiante em seu rosto, como se quisesse quase gritar meu nome, em vão.
Quando finalmente voltei meu olhar, com mais atenção, para onde ela estava, ela já sumira...
Talvez até hoje eu ainda guarde a incerteza de realmente te-la visto ou não...

– "Freyjah, venha aqui dentro!"

Eu pude ouvir me chamarem de dentro da capela! Sem esperar que o balde subisse todo seu trajeto até o fim do poço, eu o larguei e corri na direção daquela voz.
Bem diante do altar, eu pude ver o Padre, com uma expressão desconsolada, ao lado daquelas outras três pessoas que pareciam firmes, todas me encarando, e me observando pacientemente...
Eu congelei em meio a porta, sabendo que algo muito estranho estava acontecendo, especialmente porque nunca antes o Padre me envolveu em qualquer assunto de fora... (Na verdade sempre foi o contrário, ele fazia questão que eu não participasse...)

– "Venha Freyjah... Não tenha medo..."

O Padre estendeu uma de suas mãos, me convidando a aproximar dele... E foi exatamente o que eu fiz sem questionar, encarando com um olhar assustado os outros homens ao seu redor...
Quando finalmente cheguei ao alcance de seus braços, o Padre se agachou e ficou na minha altura, sem conseguir disfarçar suas sobrancelhas arqueadas e expressão pesada que brigava contra as suas linhas de idade, marcando seu rosto ainda mais...

– "...Freyjah..."

Sua voz era pesada, e ele lutava, para tentar falar as palavras necessárias, mas quanto mais ele parecia buscar elas dentro de si, mais ele continuava preso a aquele silêncio que se acumulava ali dentro em nosso entorno...
Finalmente, com um pesado suspiro, ele decidiu de que modo iria falar o que precisava...

– "Frey... Estes homens... Eles estão aqui para..."

Novamente, as palavras engasgaram, por culpa de seu peito que estava apertado com a situação...
Sem mais paciência, um dos homens do seu lado interviu, se aproximando um pouco mais de nós dois, e direcionando com sua mão minha atenção para longe do Padre, que apoiava sua mão sobre meu ombro enquanto seu rosto apontava para o chão, decepcionado... E com uma voz direta e neutra, recitou aquilo que marcou o fim daquele meu capítulo...

– "Freyjah, você, como um órfão criado por uma das instituições da Ordem de Omnos, está sendo recolhido para nossa divisão central nas fronteiras, para ser educado e treinado devidamente sob nossa jurisdição como seus responsáveis. Assim que terminarmos nossa conversa com seu Padre, você partirá conosco. E não há necessidade de levar suas posses, pois providenciaremos tudo aquilo que você irá precisar a partir de agora."

Sabe aquele momento... Em que parece que seu corpo se separa da sua mente, e você não consegue mais contactá-lo para que ele se mova? Aquele momento em que você congela, e fica olhando fixamente para algo que nem sabe se está mais lá ou não, porque está ocupado demais tentando ao menos se concentrar em seus pensamentos? Aquele instante em que nem mesmo você sabe se está mais respirando, ou se o tempo continua a se mover?
Aquela foi a primeira vez que eu me senti assim.
Talvez hoje em dia, eu me chocasse menos diante de uma situação dessas, especialmente depois que passei tantos anos estudando no Instituto, e aprendendo a viver sem realmente poder tomar qualquer decisão sobre minha vida... Mas naquela época, aquelas palavras não foram para mim, mais do que o início de um tratamento de choque quanto a realidade...

– "Frey...? Saia agora um instante, por favor... Para terminarmos de conversar..."

O Padre disse, se levantando com certo controle sobre seus sentimentos, que naquele momento, estavam despedaçando-se sob seus pés... E eu pude notar isso, ao que ele pois a mão sobre minha cabeça, e sorriu friamente, impotente... Como se pela primeira vez, ele não tivesse a escolha de intervir por mim, como um pai que interviria por seu filho...
Mesmo ainda não conseguindo aceitar aquela situação, eu me deixei recobrar os sentidos, guiado por aquele sorriso distante, que levemente balançava sua cabeça, em um gesto para eu me afastar... E assim eu o fiz, andando para trás, sem conseguir dar as costas para aquele momento... Apenas ao chegar até a porta, que eu pude recobrar minha noção graças a brisa gelada vinda de fora, e comecei a correr para longe dali! Como se eu pudesse fugir, sem realmente poder me afastar de lá... Como se eu pudesse correr, sem realmente escapar daquela situação... Eu parti até a floresta, como o único refúgio que eu sabia que eu ia ter naquele instante, sem esperar que qualquer peça que estava compondo aquela cena, fosse poder realmente mudar seu roteiro...

Assim que eu adentrei a floresta, eu logo fui recepcionado por Ama e Eldanoth, ambos ali, parados no meio do caminho, de lado, olhando para mim com certa expectativa... Eles sabiam porque eu estava ali, eles sabiam oque estava acontecendo... Estava na expressão deles...
Ama desviava seu olhar para o lado, e sem nenhuma sombra de seu constante sorriso... Enquanto Eldanoth me encarava com um olhar sábio e compreensivo... Pela primeira vez...
Eu sabia que não podia correr para abraçar Ama e implorar ajuda, eu sabia que eles não podiam fazer nada, e ainda sim eu estava lá, esperando que eles me salvassem de algum modo!

– "Garoto... Venha aqui..."

Eldanoth me chamou, olhando para mim de cima, mas com uma voz calma, como se quisesse me tranquilizar...

– "Esse é o momento em que eu não poderei fazer mais nada por você... Além de dizer que você deve aceitar partir..."
– "Você sabia que isso ia acontecer?!"

Eu perguntei alto, já sabendo chegar a esse tipo de conclusão, apenas por considerar o modo que ele sempre me tratou, e a tranquilidade que estava até então, já completamente informado do que estava acontecendo.
Mas ao invés de revidar minha reação, com uma reação ainda mais tempestuosa, Eldanoth apenas manteve sua calma, e me respondeu como um sábio observador que não se movia por simples impulsos...

– "... Não por completo... Mas eu sabia que se você estivesse destinado a gastar sua vida inteira aqui conosco, jamais então precisaria possuir o dom que possui... Vocês humanos carregam o peso necessário para a jornada que precisam fazer, e o seu peso não é uma simples folha de árvore que caiu no chão... Por isso eu sabia que o destino se encarregaria de você, mais cedo ou mais tarde, e fico feliz em poder ter cuidado de você antes de ter que partir para longe daqui... Então não... Eu não sabia oque ia acontecer... Mas eu sabia desde que te vi pela primeira vez, que isso viria a acontecer..."

As palavras de Eldanoth possuíam sentido... Mesmo que ele parecesse lutar para me confundir, e não admitir que já esperava por aquele momento a muito tempo... Ele estava lidando tão facilmente com aquela situação... Foi quando uma ideia passou pela minha cabeça, uma ideia perturbadora...

– "... Então vocês... não estão se importando com isso...?"

Eu perguntei, desviando meu olhar para o lado... Não era oque eu queria perguntar naquele tão curto tempo, mas meu coração apertou quando isso me veio em mente, porque era oque parecia vir de todos eles... Do Padre, de Ama, de Eldanoth... Nenhum deles parecia realmente querer se impor, exigir que eu ficasse, como se fosse tão fácil apenas se despedirem de mim e continuarem com suas vidas... E por isso foi aquela a única coisa que conseguiu sair de mim naquele instante...
Afinal, mesmo que todos estivessem tristes, ninguém parecia querer brigar por mim... Todos pareciam ter aceitado muito rapidamente, que eu fosse levado para longe...

– "Nunca!-... Nunca diga isso... Frey... Meu pequeno Frey..."

Em uma explosão, Ama finalmente se pronunciou em fúria, mas aos poucos, dando lugar a uma voz triste, e lamentosa... Ela se abaixou até ficar na minha altura, levando sua mão ao meu rosto... Eu não a sentia, mas ela conseguia me sentir...

– "Eu jamais iria querer isso... Mas não podemos intervir, não podemos fazer nada além de aceitar que você parta, e esperar que um dia retorne... Frey, você precisa passar por isso... Aceite partir, para que seja muito mais fácil para nós, vê-lo partir também..."

Ama falava em uma voz angustiada, lutando contra as lágrimas que se formavam em seu rosto... Ao vê-la lutando contra seus próprios sentimentos, eu também me pus a lutar contra os meus, começando a fungar, ao que era impossível para mim resistir a tentação de começar a chorar bem ali...
"Por que desde que eu nasci, as pessoas me abandonavam?"
Aquela ideia tão atraente, contaminavam meus pensamentos, e eu me senti cada vez mais, sem controle algum da minha própria vida...
Finalmente Ama aproximou seu rosto de mim, beijando minha testa, como uma mãe que amava demais seu filho, e não podia fazer nada mais por ele, do que apenas demonstrar isso...

– "Não resista à eles, Ok...? Você é novo ainda para entender, por isso eu preciso que apenas confie em nós... Deixe que a maré te leve, e um dia ela te trará de volta... Porque se você resistir, vai apenas acabar perdido no meio do caminho..."

Ela falava, esperando que alguma sabedoria daquelas palavras me atingissem e me dessem coragem para suportar aquele caminho sem ninguém mais do meu lado...
E eu jurei para mim, aceitar o pedido dela, como um filho que precisava se agarrar nos conselhos de sua mãe, para se proteger do perigo...
Antes mesmo que eu pudesse gastar mais tempo ali, eu pude ouvir a voz do Padre me chamando de volta... Eu comecei a me afastar de Eldanoth e Ama, que balançavam suas cabeças, concordando que eu partisse dali sem mais prolongar aquele difícil momento.
Eu dei alguns passos para trás, e então me virei, começando a correr com todas as minhas vontades, tentando não olhar para trás... não tentar pensar para me arrepender depois... e permitir ser... arrastado pela "maré"...

– "Frey!... Não se esqueça, jamais diga a eles sobre nós! As coisas que você vê, só podem ser entendidas por você!"

Eu pude ouvir Ama gritando a distância, se tornando aquela frase, a última memória vívida que eu pude guardar dela, e de Eldanoth...

Chegando até a entrada da capela, lá estava o Padre e os três homens, me aguardando pacientemente para seguirem viajem, sem nenhuma pretensão a mais de se perder tempo ali... Eles partiriam daquele mesmo modo em que eu estava, sem preparações, sem drama, sem sentimentalismo algum... Como se apenas fossemos andar nos campos e voltar antes do entardecer daquele dia...
Finalmente o Padre se aproximou de mim, agachando-se novamente na minha frente, mas dessa vez, sem dificuldade real para dizer o que queria...

– "Freyjah, eu preciso que você seja mais forte do que nunca, meu filho... Se eu pudesse quebrar meu voto pela Ordem de Omnos, eu o faria para tentar mante-lo aqui, e criá-lo como meu filho... Mas como parte da Ordem, eu preciso acatar e permitir qualquer decisão que eles tomem, e isso inclui não intervir... Eles vão levá-lo para estudar e aprender sob os ensinamentos da Ordem, junto de outras crianças, assim como um dia eu também fui. Mas não será para sempre, e quando você concluir sua formação, você terá permissão para retornar... Quando esse dia chegar eu estarei esperando você aqui, de braços abertos, e até lá, estarei rezando pela sua segurança, todos os dias... Ok?"

Eu balancei minha cabeça, ouvindo a firme voz do Padre, que sem perder mais nenhum segundo, me abraçou com tamanha vontade, que pela primeira vez, como uma ficha caindo dentro de mim, eu decidi como meu objetivo de vida... Retornar a salvo para meu pai, não importa quanto tempo tivesse que passar...

A partir dali, o resto daquele dia se torna cada vez mais nublado na minha mente... Tendo tanto para lembrar, as pequenas coisas que aconteceram comigo na Ordem se tornaram cada vez e cada vez mais, sombras, diante daquela minha infância, e da certeza de querer um dia retornar para casa... Ao que no fim daquela longa estrada, acompanhado daqueles homens que me ignoravam como um pequeno animal andando ao seu lado, finalmente começou a surgir diante de mim, a realidade do mundo em que eu vivia...


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Notas finais do capítulo

Nice! Finalmente K.K. terminou a infância de Frey, e é agora que finalmente virá a parte divertida! (Ao menos para K.K., que briga para conseguir desenvolver personagens infantis...)
Aliás eu sei que pode ter sido bem grande a história até então, e que K.K. possa ter usado muitas palavras desnecessárias para apenas explicar coisas simples, mas K.K. é açoitada pelo terrível mal da Empolgação... Snif... E acaba perdendo todo o controle quando se trata de textos!
Então se vocês, assim como K.K., se intimidam vendo estes textos enormes, perdoem K.K., ela não sabe oque faz!!!
Bem, sem longos monólogos por aqui... K.K. espera que vocês se mantenham fiéis, e com pique para minhas insanidades!

(Falando em insanidade, quem aqui bugou tentando imaginar Eldanoth a primeira vez que Frey o descreveu?? (Ou quem ainda buga, tentando imaginá-lo?) K.K. teria bugado também, se não estivesse acompanhando a história junto dos desenhos que fiz de todos os personagens! (Por isso K.K. resolveu ajudar vocês também, desenhando as vezes algumas coisas, para que vocês possam acompanhar sem sofrerem tela azul! Oque acharam??))



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