Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 24
Calêndulas


Notas iniciais do capítulo

Oh, dear.
Senti falta da areia e do calor, e de uma floresta outonal por vir. Senti de uma gênio e seu amo inconsequente. E o mais grave: Senti falta de vocês.
Espero que possam perdoar.
Enfim, dedico minhas palavras e meu tempo à vocês, leitores. Muito obrigada por estarem aqui e por me motivarem sempre. Fica no meu coração um carinho todo especial para Willa e pra Julia Rabelo. Obrigada por me ouvirem!



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Oh.

Um zumbido agudo retinia dentro de sua cabeça, indo e vindo pelo seu corpo e transbordando em suor frio pelos poros. Seu eco incômodo o fazia orar para que não o escutasse mais, pois bem lembrava de quanto tempo permanecera com o mesmo som dentro do ouvido após a fuga de Sundara, no dia da Queda. Maldita pólvora purmânia.
Sabia que seu corpo estava quente. Sabia também que sentia, ainda assim, frio. O colchão estava confortável, macio, e o tecido sobre si lhe oferecia aconchego.
Tentou abrir suas pálpebras ou dizer algo. Pôde escutar o som abafado que saíra de sua garganta, mas seu pescoço não obedeceu o comando de se levantar, tampouco seus olhos abriram mais do que um fresta anuviada pelos cílios.

Suspirou mais forte, algo se mexeu do outro lado do quarto.

Alethia despertou sobressaltada sobre a poltrona, suas pernas se encolheram rápido com o mínimo som e quase a colocaram de pé. Por um segundo vibrou a magia dentro de si, enrijecendo seus dedos e preparando-se para um combate.

Mas era apenas ele balbuciando algo ininteligível. Passara a noite assim, cochilando e acordando, cochilando e acordando. Ela o encarou com olheiras profundas. Talvez nem tivesse realmente adormecido, uma vez que seus músculos doíam e o torpor lhe obrigava a ser mais lenta do que um humano comum. A cada vez que o sono a vencia, ele gritava “Água”, “Não” e “Mármore”; Quando sonhos confusos a alcançavam, nomes antigos da vida de seu amo eram murmurados por ele. Ele não dissera o seu. Os sentidos aguçados da serva logo detectaram movimentação, embora fossem apenas os braços de Raed.

Ela se levantou sem fazer barulho, caminhando pelo tapete e pelo pó do quarto. Ao vê-lo repousado, com a expressão ora serena, ora franzida, suspirou para fora do corpo seus éons de existência. Era hora de lhe dar água, de trocar as bandagens improvisadas em seus ombro e nos dedos esfolados.
Sentou-se ao lado dele na cama, com um recipiente de cerâmica cheio de água fresca. Primeiro retirou as faixas de lençóis, postos na diagonal do tórax. Com outro pedaço rasgado, limpou o principal ferimento delicadamente, atentando-se as bordas da mordida.

Era enorme, mas felizmente não fundo. Seus dedos tocaram brevemente o contorno em sua pele morna, enquanto buscava na memória que tipo de animal poderia ter feito tal estrago. Todos que se lembrava não existiam aqui, e nem deixariam o rapaz vivo.

Da cômoda, ela pegou o pote lascado onde pusera a pasta de flores e ervas, colhidas ás pressas na floresta. Não acreditava tanto em bênçãos, no entanto não podia deixar de ser grata encontrar calêndulas o suficiente para a mistura. A despeito da aplicação variar entre quatro a cinco vezes por dia, Alethia punha por volta de três para que não mexesse muito na carne machucada e lhe causasse um dano maior ainda, como uma infecção.
Seus olhos repousaram sobre Raed mais uma vez. Seu peitoral nu subia e descia num ritmo mais calmo durante o procedimento, mais aliviado. Isso era bom.

Alethia encarou também o estranho objeto que estava perto do corpo de Raed, quando o encontrara sangrando no chão. Era um objeto pequeno e quase imperceptível naquele entardecer. Verde, cilíndrico e ornado em prata e esmeraldas. Parecia ter uma fina abertura, mas era leve demais para carregar mais do que ar ou papel. Algo antigo, algo leve e pesado ao mesmo tempo, o suficiente para que fosse guardado sabe-se lá onde, nas entranhas daquele mundo. Raed também não perderia seu tempo com ele caso não valesse a pena.

Suspirou, guardando o objeto na gaveta da cômoda. Deveria esperar que seu amo despertasse para mostrar. Talvez até devesse esperar mais além disso.

Assim que selava sua pele com mais bandagens limpas, Alethia limpava a transpiração febril da face dele, de sua cicatriz antiga na testa. Era a manhã do terceiro dia assim, e como imposto por ela mesma, seu amo beberia o chã da mesma planta por também atuar como anti-inflamatório. Ainda estava quente por ter sido feito durante a madrugada, antes que a gênio afinal desabasse no estofado da poltrona. Soprou um pouco por precaução, em seguida virou-se para o mestre.

Com uma das mãos inclinou sua cabeça, e com a outra levou a xícara improvisada até seus lábios. Ainda bem que ele colaborava nessa parte, senão teria muito mais problemas quanto a sua hidratação. Raed tomou chás e caldos com o que ela encontrava nos arredores, mantendo-se alimentado o bastante para continuar para mais um dia.

Ela esperou que alguma reação de rejeição, alguma tossida ou engasgado. Nada. Suspirou, largando tudo sobre a cômoda. A hora da refeição acabara, ela esperaria pela próxima. E pela próxima. E pela outra, até que seu amo acordasse.

Mas também estava faminta, pois o ronco e a dor vazia em seu estômago não a permitiam mentir. Demorou seu olhar sobre Raed mais uma vez, já projetando as necessidades dele para o futuro. Humanos eram animais e também comiam carne. Precisavam disso, de uma ave, de um cervo, de um coelho, de mais peixes. Ela deveria buscar para ele.

E buscaria.

Girou seu eixo pelos calcanhares, cogitando ir ao rio ou enfiar suas garras na primeira coisa que encontrasse no caminho da floresta. Mas ele pegou debilmente seu pulso, abriu um pouco de seus lábios rachados.

— Fique. – Ele disse.

E ela ficou.

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As folhas cor de ouro e bronze iam e vinham com o vento, trazendo o cheiro úmido da terra e os ecos das aves e animais, embora o silêncio reinasse soberano.
Centenárias, as árvores observavam os habitantes de seus troncos ocos e copas altas saltarem de um galho para outro, insetos a voarem ligeiros e aranhas a pegá-los em sua teia. Sempre fora assim, enquanto elas absorviam o Sol e a água. Cresciam, curvavam-se, perdiam as folhas como agora.

Vez ou outra as árvores assistiam coisas estranhas, criaturas e eventos que não deveriam existir. Mas já fazia tempo, muito tempo, desde que se surpreenderam com algo. Viajantes iam e vinham, tal qual como suas copas e as estações. Chegavam verdes, floresciam em angústia e se esvaiam mortos. Elas não compreendiam porque não renasciam de seus próprios corpos ao chão, apenas aceitavam sua oferenda para si, para suas raízes famintas.

Cuidavam deles, faziam de suas carnes e ossos as mais esplendorosas primaveras.

A faia mais alta, de tronco escuro, largo e com diversos braços, avisou suas irmãs quando aqueles dois chegaram. Elas sentiram o pulsar de maneira distinta. Deviam ser de longe, de outro mundo, e pela língua baixa e sussurrada realmente eram.

A criatura mais baixa, de folhas estranhas e outonais sobre o corpo, era a mais etérea, de cor tão pálida quanto a uma prímula lilás. Colocara sua palma sem destino sobre seus troncos, tentara dialogar em dias anteriores. Viera depois colher de seus frutos, as calêndulas e ervas rasteiras. A floresta questionara de volta quem a fêmea era, no entanto a conversa não se desenrolara. Havia alguma interferência, algo que impedia que se comunicassem assim como alguém tenta falar à quem está debaixo d´água. Só liam e sondavam as energias uma da outra, a floresta e a gênio.

Agora, o macho...

Por quê? Por quê as palavras murmuradas para a fêmea o alcançaram? Ele era igual aos outros, daria sua carne para a floresta no final. Daria primeiro sua sanidade, depois sua carne e enfim sua alma. Já ela não poderia fazer isso, era milenar. Conhecera mistérios, ajudara a construir dezenas deles... Embora os ramos dos arbustos tivessem detectado algo. Havia algo escorrendo dela, como um floema rompido. Seu açúcar, seu alimento, vazava.

Bétulas” ele dissera. “Faias”.

O vento também repetiu o nome deles.

Raed. Alethia.

Apesar de suas raízes e copas pressentirem que não haveriam oferendas, algo aconteceria. Elas observavam com seu silêncio de muitas estações. O outono seria diferente, o inverno também.

As pequeninas e escuras folhas dos arbustos tremeram com a ventania forte, trazida por um vulto veloz e púrpura. Era a fêmea, a saltar pelos troncos caídos e barrancos. Suas garras afiadas prendiam-se nos carvalhos, impulsionavam para a árvore seguinte.

Alethia ergueu o rosto para o céu, do alto de uma faia. Suas narinas dilatadas aspiraram o aroma do Além. Rosnou, tornando-se imaterial até chegar ao solo numa rajada de névoa roxa. Foi de um lado a outro daquela maneira, aumentando o raio de reconhecimento dela e de seu mestre no mapa velho da Catedral. Encontrou uma raposa a choramingar pelo ferimento no lombo. Seu pelo era de uma cor viva tal qual madeira em brasa e os olhos pequeninos reluziam ao encará-la com medo. O coração de Alethia aqueceu-se com a lembrança de filhotes de feneco que tanto gostava e teria ajudado caso a criatura não fosse tão arredia e tão rápida. Fugiu para dentro do mato e a gênio deixou-a seguir seu curso, deixou a lamber seu sangue em paz.
Encontrara também novas trilhas, novas espécies de plantas que não saberia bem pronunciar seus nomes como Raed fizera.

Suas mãos moveram-se lentamente para frente junto com os joelhos flexionados, apoiando parte seu peso na grama macia. Haviam alguns troncos e plantas que a ocultavam, mas ela mantinha seus movimentos silenciosos pois a floresta estava ainda mais quieta.

Somente algumas aves gorjeavam distantes, sem que Alethia conseguisse as enxergar de perto. Encontrara penas, um ninho abandonado no alto de uma árvore e por vezes avistava algumas voando no céu, voando para bem longe. Ela procurara por um alvo grande o bastante para uma boa refeição, um faisão ou um pássaro de nome qualquer neste Além mundo. Poucos restavam.

“Estão emigrando” Ela ponderou com desgosto, o rosto novamente  virado para as nuvens. Numa pequena campina seu corpo era mais visível, embora tudo mais o fosse também. Pensara ter avistado algo de porte grande vindo para essa direção, talvez um mamífero em busca de alimento.

E ela também viera buscar o que comer.

Controlou a respiração, esgueirou-se para o lado. Alguns galhos quebrados indicavam a direção, marcas em certas partes da terra e da relva confirmavam que algo passara por ali. Seria um cervo? Um grunhido quis sair de sua boca, desgostoso. Achava que sim, pela galhada que vislumbrara e pelo cheiro. Ela franziu a testa, tentando ouvir mais além e imediatamente seus olhos arderam em luz turquesa.
Cada poro de sua pele roxa parecia mais aberto e arrepiado. Sentia-se uma esponja, filtrando o ar e as energias dentro de si. Fluía. Engoliu em seco e abaixou seu corpo inteiro no chão, encostando rosto inteiro na sujeira e na grama.

O chão tremeu; Logo um som pesado e veloz aproximou-se. Acima de sua cabeça, Alethia viu a sombra imensa do animal saltar por cima do barranco, e então pousar com força adiante.

A grama fora triturada abaixo de seus cascos grossos, névoa saía de sua respiração enérgica. Devido aos seus sentidos inumanos, a gênio pôde aspirar a fragrância da clorofila nas patas dele, do seu pelo e de pinho. O cervo virou seu pescoço grosso, seus olhos negros sugando a atenção dela para si. Deu um passo, as narinas dilatadas tentando também reconhecer o cheiro estranho da outra criatura.

O corpo de Alethia descolava-se do solo de maneira gradativa e projetando-se para frente, com as garras já transformadas em dedos de carne e pele púrpura. O animal piscou seus longos cílios, ela repetiu o gesto. Cervos existiam em terras distantes no seu mundo, muito antes de cruzar o Arco-Quebrado das Dunas Brancas. Existiam sim, ela se lembrava dos animais tímidos, de galhadas graciosas e filhotes dóceis, no Norte.
Existiam, mas não eram imensos assim. Jamais. E talvez fosse apenas impressão, porém haviam folhas amarelas e marrons brotando nas diversas pontas dos cornos, ramalhetes e diminutos botões de flores, nas quais borboletas buscavam pólen. Um macho com muitos anos, provavelmente. Mas onde estava o resto?

Cervos não eram criaturas solitárias como a gênio. Tinham uma família, um bando. Onde estava um, logo estariam outros. Isso a fez lembrar brevemente dos outros de sua própria espécie, por mais que o pensamento fosse distante e mal formado em sua cabeça.

Quando a palma de sua mão já estava estendida e seus dedos quase encostando no focinho dele, as orelhas do cervo moveram-se de súbito. De imediato, virou seu torso e correu para longe, saltando os arbustos e desaparecendo entre as sombras das árvores.

A barriga dela doeu, vazia. Pensava que não teria que comer assim como Raed ou qualquer outro mortal, pois ainda não era humana e no fim, lá estava ela. Faminta. Sua boca salivou ao imaginar seus dentes pregando em alguma textura suculenta, embora não tivesse nada em suas garras.
Levantou-se encarando o ponto onde vira o cervo pela última vez. Não o seguiu, pois o animal não era quem ela procurava.

A sorte não a acompanhara na caçada aos pássaros, uma vez que as copas das árvores eram muito altas e suas reservas de energia muito baixas. Fazer a pasta de calêndulas não era difícil ou trabalhoso; o que retirava seu vigor era transferir parte de sua vitalidade para o unguento cor de oliva. Aquilo deixaria seu amo mais forte, o recuperaria logo... Por mais que a enfraquecesse. Deu de ombros. Sua espécie era respeitada, ancestral. Nem uma floresta ou fome a devastariam. Não. Aquilo era nada.

Ajeitou as vestes novas sobre o corpo, aquelas que Raed separara antes de ser acometido pela besta desconhecida. Tivera bom gosto, é verdade. Gostara da cor herbal das mangas da camisa e também o conforto oferecido pela blusa de lã, mas não a usava agora. Não queria sujá-la, portanto permanecia com o manto inteiro maltrapilho de Raed, o confortável capuz sobre seu rosto... Ela franziu mais a testa. Encontrara tudo dobrado cuidadosamente no altar da Catedral, e um punhado de quilômetros de distância seu amo estava molhado sem que tivesse chovido ou houvesse uma fonte d´água próxima.

Pensara que ele estava morto quando o encontrara. Havia tanto sangue...

Engoliu seco. Boa parte do sangue não era dele, pois o ferimento fora infligido no ombro e não escorrera até seu abdômen e pernas. No entanto, de quem mais seria esse sangue? Não tinha cheiro característico, mesmo para seus instintos. Não havia trilha, nem sombra do mínimo rastro.

A cena daquele pôr do Sol era violenta. Esperou-o durante meia hora, algo que não lhe parecia muito tempo para sua serenidade de gênio. Estava acostumada a esperar anos, décadas, como o passar da areia e dos segundos em uma diminuta ampulheta. Então descobriu que esperar era o inferno das criaturas corpóreas. Procurou-o pela trilha, pelos arredores da floresta. Cada folha ainda carregava o cheiro dele devido ao passeio de reconhecimento de ambos pela tarde, cada árvore não sabia responder onde seu amo estava.

Seus olhos fizeram aquilo de novo. Sangraram água junto com sua garganta fechada e solucenta. Ele havia partido, partido.

Agachou-se novamente, rente ao chão, farejando. Murmurou breves xingamentos, tanto para si mesma quanto para as circunstâncias. Não sabia com o que estava lidando e pela forma que abatera seu mestre, sua preocupação era grande. O menino não era estúpido quanto à própria sobrevivência. Não seria atacado sem revidar, não seria ingênuo demais para não captar algo tão brutal. Ou a criatura era sorrateira como o mais vil demônio ou então seu amo teria uma história e tanto para contar.
Moveu-se gradativamente até as árvores baixas das bordas da campina, grata por deparar-se com a agradável sombra. Sombras eram boas, sempre boas. Não a deixavam ser vista e permitiam passe livre de ponta a outra. Talvez a besta também as utilizasse e, se isso fosse verdade, então o combate seria muito mais interessante.

Ela sorriu.

As brumas roxas desvendavam parte do labirinto composto por árvores, desníveis no chão e pedras. Subia os galhos, descia-os. Alethia queimava em fúria, relembrando cada fibra sua de quem ela era: Uma gênio.

E desrespeitar o amo de um gênio era desrespeitá-lo também. Ferir o mestre deles, significa feri-los. E ninguém o faz sem as mais catastróficas consequências.

A floresta observava a ira abrasiva da fêmea, tal qual um incêndio no mais seco verão. Consumia tudo. A consumia. Ela fizera o mesmo nos últimos três dias, até que se refugiava para a construção antiga com ervas em uma das mãos ao entardecer, quando chegava a vez das próprias árvores respirarem do ar noturno. Os olhos flamejantes dela miravam atentamente o mínimo líquen, o menor inseto. Caçava, mas o quê?
A faia mais velha sentiu um puxão ao leste. Era seu irmão ainda mais antigo que ela, um carvalho. Alethia estava ali, próxima a ele. Rosnava de quando em quando. A fumaça ainda relava nas raízes expostas, cobria o solo. A ponta dela, tal qual uma estrela cadente, ardia em luz turquesa e direcionava-se aos quatro ventos, investigando e queimando.

O Sol cansou-se, despencando.

Mais uma vez as árvores assistiram a fêmea retornar ao empilhado de pedras, madeira e vidro; plantas numa mão e agora peixes na outra. Por detrás dos ombros, seu rosto lançou uma última olhadela à floresta, as órbitas em chamas.

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— Onde você estava? – Foi a primeira coisa disse ao vê-la atravessar a porta do cômodo, onde ele debilmente tentava se locomover. Apoiava-se com um dos braços sobre a escrivaninha, já o outro estava imobilizado por uma tipoia improvisada com mais tecido.

Quando vira os móveis cobertos por lençóis amarelados, que um dia já foram alvos, achara tudo muito peculiar e desnecessário. Mal sabia que tal fato seria um tanto quanto conveniente, para servir de toalhas, bandagens e agora tipoia. Passou os dedos no rosto, tentando retirar o torpor do corpo, e fechou o diário de Auri. Em seguida seus pés descalços moveram-se meio arrastados em direção a Alethia.
Ela também estava sem botas, com os pés e as barras da calça sujos. Não andava com dificuldade, pois não havia mais o corte na lateral. Encarou-a com as pálpebras cerradas, enquanto a serva movia e estralava os ombros como quem acaba de voltar de uma tarde serena cavalgando ou num ocioso momento de lazer. Deixou um amontoado de peixes ainda úmidos em cima da mesma mesa em que ele se apoiava e abaixou ainda mais o capuz sobre o rosto.

— Caçando.

— Caçando? – Engoliu seco, querendo um pouco mais de água para umedecer sua garganta. Sua voz estava trêmula demais para o próprio gosto. – A tarde inteira e volta com trutas?

A gênio inclinou a cabeça como uma coruja docemente faria, e aquela fraca luz turquesa saiu da escuridão do manto, piscando.

— Trutas?

Ele sacudiu a cabeça. “Trutas”. De onde viera aquele pensamento? Mal sentira quando a palavra se formou na boca, igual a “faia” ou “bétula”. Grunhiu.

— O que estava caçando, exatamente?

— Eu não sei. – Raed pôde ver o peitoral dela soltar um longo suspiro conforme dirigia-se para uma poltrona. – Não o vi. O que quer que seja, abandonou sua marca em tua carne, mas não seu rastro.

— Por quê não me avisou? – Deu outro passo a frente, com as costas inteiras doloridas. Suor nas têmporas escorriam pela lateral de seu rosto.

— Amo, creio que não estejas dentro da tua razão. – A calma dela somente incendiava sua ira. – Tu adormecestes profundamente mais uma vez, mal conseguira falar outra coisa. Como sabe o que falei ou o que deixei de falar? Nem teria como entender mesmo.

— E acha certo me largar aqui?

Acordara a tarde, o Sol no meio do céu. Estava com fome, sede e uma com vontade urgente de evacuar todos aqueles líquidos que Alethia lhe dera, mas assim que abrira os olhos e fora capaz de erguer seu tronco, se viu sozinho. Todos os seus desejos primários desapareceram naquele instante, à despeito da energia fria que lhe despertara os sentidos.

A gênio dissera que iria ficar. Dissera.

Odiara levantar da cama e arrastar-se pela frio dos cômodos da grande Catedral, odiara mais ainda descer as malditas escadarias para procurá-la. Os deuses o encararam de maneira debochada enquanto lascas de pedra e madeira machucavam a sola de seus pés.

A Santa Sem Olhos provavelmente não vira nada. O homem do outro lado, com chifres desenhados, lhe diria a direção errada. Já o do centro... Bem, a grande mancha do centro não existia.

Onde estava Alethia?

Raed soltou outro grunhido, os joelhos falhando. Alethia adiantou-se com velocidade para ampará-lo, mas seu amo afastou-a com somente um gesto da mão, com a palma e dedos esticados. Ela abaixou a cabeça.

— Perdão, amo. – Sua voz brilhou em prata, afiada. – Mas não está mais em perigo. Mesmo que um raio despenque dos céus, não o acertarás. Mesmo há milhas de distância, tu não serás mais atingido por nenhum mal. Tens minha palavra inquebrável, como a guardiã que jurei e juro ser por toda a minha existência.

— Eu não estou falando sobre minha segurança. – Ele disse, entre dentes. – É bom senso, o mínimo que deveria pensar.

Suas íris cinzentas miraram aquela figura sombria sentada na poltrona, aquela figura ancestral arranhando as pontas dos braços de madeira tal qual uma fera mal domada faria. Parecia controlar-se para não explodir em mil pragas, talvez apenas contida por ter pena ou estar mortiça. Ou, como ela própria dissera, pelo juramento.
O vento uivou lá fora, trazendo o som terrível e ilusório de lobos. Seria tão ilusório assim?

O rapaz desabou sobre a poltrona oposta, esticando seus calcanhares para a mesa de centro. Dali bruxuleava a luz do fogo no lampião, o qual ele acendera pouco antes de fechar todas as cortinas puídas e pesadas do ambiente. O trabalho de arrastar quilos de tecido e a fragilidade da madeira que os suportavam foi bom para que ele se ocupasse apenas em xingar e aproveitar de sua dor muscular.

— Nenhum rastro?

— Nem o menor aroma.

Ele encarou o teto.

— Você deveria ter levado a balestra consigo.

— Sabes que não preciso disso.

— De qualquer forma, – Raed alterou seu tom de voz, falando mais alto e logo lançando seu olhar para sua serva. – Você não se afastará mais.

A pele dele se sentiu inteira alfinetada por perguntas que a gênio jamais questionaria e que ele também não tinha intenções de responder. A despeito de muitas vezes acordar no meio da noite devido aos sussurros dos próprios pesadelos, ela nunca perguntara a razão de seu suor frio, de seus movimentos assustadiços depois. Não perguntara ainda o que diabos acontecera naquela tarde, há três dias.

Seus pensamentos grasnavam canções fúnebres, canções de guerra e tortura em seus ouvidos, madrugada após madrugada. Alguns dias eram mais fáceis, outros simplesmente não.

Como iria dizer que simplesmente não lembrava-se do que ocorrera?

— Então, – Ele pigarreou, em seguida amaldiçoando-se por isso. As sacudidas para executar esse breve ato foram suficientes para desencadear uma corrente de protestos em todas as junções de seu corpo, principalmente na lombar. – Como quer comer esse peixe?

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Raed piscou e piscou em frente ao peixe, a truta. Estava num outro cômodo, um pequeno e quase escondido no final do corredor, para que a luz de sua diminuta fogueira não atraísse insetos, ou o que quer que estivesse o esperando lá fora.

Ou ali dentro.

Ele expirou mais uma vez, fechando os olhos. Estava com uma faca na mão e dera licença à sua gênio, que desejava descansar um pouco e limpar-se. Sua mão cheias de hematomas tremia um pouco, embora gradativamente encontrasse firmeza no pulso ao cortar o animal. Já tirara as escamas mais grosseiras e prateadas, decepara sua cabeça. O cheiro, apesar de fresco, o incomodava severamente. Se suas narinas humanas bem o sentiam, o que mais poderia vir atrás disso? Por precaução decidira queimar também algumas ervas, daquelas bem aromáticas e de tons alaranjados que Alethia pusera em seus ferimentos.

Não adiantava muito.

Colocou o último pedaço da truta na ponta de sua adaga e o pôs sobre as línguas do fogo. Era bom que a Catedral inteira fosse de pedra, senão a construção teria incendiado-se há tempos. Ele riu, pois seria uma desventura imensa, daquelas ótimas de se contar.

E com o som de seu abafado riso, gotas.

Gotas ao longe. Gotas perto. Uma, duas, três; cada uma após a outra.

Uma para a porta oculta abrindo-se ao fundo da Catedral, o cheiro úmido e estagnado a infestar o ar.

Duas para o ranger da escadaria revelando-se a suas pupilas dilatadas, para as flores de pedra que abriam-se em pura luz no alto do cômodo.

Três para a sombra que correu dos fundos até ele.

A garganta de Raed foi incapaz de gritar, no entanto a dor lancinante atingiu a sua mão. Estava perto do fogo, a truta virara carvão e a lâmina da adaga tornara-se da cor do pôr do Sol, incandescente.

Nada mais acontecera.

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Quando a Lua chegava, as gravuras e entalhes em mármore eram mais serenas, pois o contraste de seus vincos e sombras já não era tão grande em relação à luz pálida. As flores e folhas de pedra respiravam, também sentindo a brisa fresca entrar pelos vidros quebrados da Catedral e dos vãos demolidos; já os vitrais jaziam mudos, refratando a Lua com os fachos de seu brilho descendo quase como cortinas, quase como teias alcançando o distante pó do chão.

Em meio a corredores vazios e quartos e mais quartos abandonados, Alethia sentara-se diante do o púlpito e do retábulo abaixo de seu andar. Aparentemente havia uma parte reduzida e projetada para frente no piso superior, talvez para um público seleto ouvir as palavras de seu sacerdote ou sacerdotisa em datas comemorativas. Sentavam acima do povo comum, olhavam para as três figuras santas inferiores a suas pálpebras.
Ela sacudiu a cabeça levemente, trazendo o foco para sua meditação. Algumas coisas não mudavam, independente de onde ela ia.
Repousava sobre um tapete gasto, que um dia fora belo em seus brocados de ouro no fundo cor de vinho. Afastara os parcos bancos de madeira com apenas um movimento da mão, para logo sentar-se ali e usufruir da noite invadindo o imenso ambiente. Escutava um grilo e outro do lado de fora, criquilando e saltando sobre a grama. Escutava o bater diminuto de asas de insetos, do vento contra a rocha esculpida. Escutava as marteladas do próprio coração.

Ela expirou novamente, todos os músculos a colocar para fora o ar de pânico que a preenchia.

Outro compasso ecoava baixinho em seu ouvido, num ritmo alternado e rápido. Bombeava sangue quente e adrenalina, pouco atrás de si. Era Raed e seu coração.

Ele aproximou-se devagar, em parte por ainda se recuperar do ferimento e do estupor, mas o mero som dos seus pés movimentando-se pela poeira do piso foi capaz de arranhar os tímpanos de Alethia.

Os ombros dela tencionaram-se imediato, junto ao rosnado abafado que soltara.

— Estou atrapalhando?

— É óbvio que sim, menino tolo.

— Se bem que... – Agachou-se devagar, murmurando um impropério e outro aqui e ali. Seus joelhos flexionaram-se a frente do corpo, os cotovelos apoiados em cima deles. Com a mão esquerda massageava a palma da direita, onde ardia a queimadura. – Eu não entendo como consegue meditar com esse ronco todo do seu estômago.

Alethia franziu o cenho. Mesmo com os olhos fechados, ela pôde ver o meio sorriso que se formava nos lábios rachados do mestre, através de seu tom jocoso. Mas, se sua despreocupação era tão grande assim, qual era o motivo de seu coração quase pular do peito?

Sentiu-se culpada por não ter ainda mostrado o cilindro verde e prata para ele. Talvez fosse hora. Talvez não. Naquele instante, porém, ela não tocou no assunto e deixou o pensamento se desvanecer. Não queria quebrar o momento em que seu amo sorria sarcástico.

— O que quer, Raed? Pelo cheiro você queimou o peixe mesmo. –  Colocou um pingo de veneno na voz. –  A truta.

Nem ela, nem as gravuras de santos ouviram uma resposta, e o Além permaneceu em silêncio. As pálpebras lilases da gênio tremeram delicadas antes de se abrirem, quando ela então repousou sobre o seu mestre um olhar curioso.

— Você está sem o capuz. – O ladrão respondeu, retribuindo o olhar. – Pensei que jamais a veria sem ele.

Um riso mudo escapou de sua boca, esboçando somente seu contorno de brumas na atmosfera.

Quando afastara-se daquele quarto que servia de cozinha, ele andou pelo corredor. Vislumbrara o nome dele entalhado na pedra, junto com o de sua fiel guardiã. A sentença de morte de ambos, segundo ela. Não gostava de pensar em Alethia como serva, como escrava, ainda mais por se tratar de uma criatura com anos e anos de vida. Ela assistira reinos nascerem. Ela assistira reinos caírem.

Os mesmo erros repetiam-se inúmeras e inúmeras vezes diante de si.

Como suportava o peso do mundo e do passado? Se já não estivessem no Além, talvez perguntasse. Talvez ela realmente não suportasse e a pergunta seria nada mais do que um estúpido erro. Talvez ela guardasse respostas que mudariam tudo.

Gênios são voláteis. Gênios são fogo e fúria e fumaça. Gênios quebram almas.

Quanto disso ele havia visto nela?

Raed então a observou sentada de costas, com as pernas dobradas uma sobre a outra e as palmas voltadas para visão santa das abóbadas em cruzaria. Cintilava a sua pele lilás tal como irmã da Lua, enquanto estrelas caíam ao buscar enxergá-la através dos vitrais coloridos. Ar faltou aos seus pulmões mortais, desacostumados a lidar com o etéreo.

O par de luzes turquesa eram seus olhos, e eles estavam acesos naquela noite. Piscou, sem íris e sem pupilas.

— Revelar meu rosto tornou-se um fato inevitável. – Sua voz alternava-se entre um timbre comum e o cheio de ecos, espectral. Parecia cansada. – Seria tolice sustentar meu manto e meu ego por mais tempo, embora não faça diferença. Já fui vista sem ele antes de você, e meu rosto é mais um que será esquecido feito uma pegada nas dunas. Não vale o esforço escondê-lo.

Brumas compunham seus longos cabelos, separados em madeixas trêmulas que ondulavam como se estivesse debaixo d’água. Iam e vinham em marés fúcsias e cinzentas, em ondas cor de lavanda que quebravam ao vento. Gradativamente desapareciam junto ás moléculas do ar.

— Talvez nem o tempo – “Ou o revirar dele”— Sirva para apagar a imagem de suas orelhas da minha memória. Pontudas feito uma lebre. Ou então sua detestável amargura característica.

As mãos dela, já estalactites roxas e afiadas nos dedos, foram de encontro com suas orelhas, as quais surgiam levemente por dentro dos cabelos. Ela soltou um bafejo irritado.

— Eu sabia que falaria delas, seu tolo. Sabia. E não se parecem com as de uma lebre!

Fazia tempo que a Catedral não sentia uma risada ecoar pelas pedras de maneira tão fortuita e genuína. Fazia já um tempo que Raed não gargalhava assim.

— É claro que não. Lebres não usam brincos, quem dirá uma quantidade dessas.

Tentou tocar uma da meia dúzia de argolas reluzentes, porém um tapa o impediu.

— Eu não consigo lhe compreender, amo. És tão parvo e confuso!

Raed estalou a língua.

— Se sou uma ave que grasna de língua presa, você há de ser uma lebre. Uma daquelas rápidas e mau-humoradas.

A gênio fez como ele mil vezes imaginara em sua cabeça: piscara lentamente, comprimiu seus lábios pálidos e levantara apenas uma de suas sobrancelhas fúcsia.

— Você mal viu lebres na vida.

— Ainda assim, as vi. – De fato. Abatera algumas nos bosques do extremo Norte, havia uma espécie gorda e nutritiva em Marinto. Raed, no entanto, era um viajante de terras áridas e não conhecia bem como gostaria os animais de climas mais temperados. – E posso reconhecer uma quando vejo, pois não são criaturas lendárias que pouco se encontram na areia. Tipo gênios. Mas, caso insista, posso trocar lebre por feneco.

— Quer que eu diga desculpas pela comparação com uma ave?

— Naturalmente. Melhor se de forma humilhante, como compor algum ghazal melódico em minha homenagem.

Alethia balançou a cabeça. Lá se fora seu pequeno momento de contemplação.

— Espero que a travessia no tempo te ensine a ser mais humilde. Algo tem que recompensar essa sua notável falta de discernimento e respeito.

— Bem, – O olhar de Raed saiu sobre ela, sobre as inebriantes marés de cabelos e o bronze de seus brincos, para então repousar sobre o vitral gélido. A ardência de sua mão passara um pouco. – Isso eu não prometo. Ao menos terá sua garrafa de volta. A original.

O vento quis responder pela serva, uivando e latindo forte pelos vãos da Catedral. Alethia endireitou sua postura ainda sem proferir uma única palavra, e pensava se alguma vogal besta pularia de seus lábios de carne.

— É algo.

Foi a vez dele franzir a testa.

Por mais que soubesse que aquele momento viria, em que abandonaria tudo o que vivera e todas as memórias que forjara dentro do crânio, a perspectiva era tão distante quanto uma miragem ao longe. Mas hoje ele estava perto daquele oásis, esperava que amanhã estivesse ainda mais, para se refrescar na água cristalina.

Voltaria a Sundara, a Sundara que ele conhecia e aprendera a odiar naquele seu ódio infantil de quem tem sede por aventuras e pouca liberdade. Não se atrasaria naquela tarde. Kadar ficaria bem dentro do possível, pois Tamir fora buscá-lo. Talvez se encontrassem depois da Queda. Raed não deixaria mais o seu irmão, nem Déa deixaria Neriah. Iriam para onde sua mãe, Inaya e o resto da criadagem foram pelo portão Oeste. É claro que poderiam todos morrer ali, como ele bem acreditara nas notícias do longo massacre, entretanto existia a possibilidade de que novas peças e novos lances desencadeassem eventos de bom augúrio no jogo.

Esse era o plano. Esse sempre foi o plano.

Mas, Alethia...

Algo em sua garganta se apertou. Devia ser a friagem do recinto ou o pânico afinal se rebaixando do corpo, depois da visão fantasmagórica que tivera há pouco.
Alethia se esvairia de sua mente, o que era correto, o acordo combinado entre os dois sem que nenhuma palavra fosse dita.

Ele seria apenas mais um amo, e ela uma daquelas pessoas que encontramos em sonhos: Marcante somente nos primeiros vinte minutos após o sonho em si. Quiçá nem a gênio recordasse do menino magricelo e tolo, da ave que grasnava.

Ao menos ela não tinha o porquê de se lembrar.

Dentro de Raed, havia um grito. Ele não sabia dizer se era seu ou de outra pessoa, mas ainda ecoava na sua cabeça feito uma melodia. O cheiro de umidade.

“Vivo, mas não são.”

Novamente, pedras se arrastaram no chão. Algo reluziu aos fundos, um par de olhos grandes. Depois outro. Gotas. Poças. Um urro. E dor. Uma pontada aguda na nuca o retirou destes fragmentos, trazendo-o a realidade.

— Está pálido e não para de massagear as próprias mãos. – “Suas mãos esfoladas” —  Algo aconteceu, amo?

— Deve ser a febre. Eu... Eu estou um pouco desorientado. – “Eu estou vendo coisas”.— Talvez mais repouso resolva.

Ela não se convencera, porém levantou-se.

— Vamos lá. Quero ver o que tu fizeste com as trutas.

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Eles comeram naquele outro cômodo, para que o cheiro de comida permanecesse somente ali. Raed reclamou da falta de sal, Alethia mastigara tudo sem emitir um som. Voltaram ao quarto para afinal desfrutarem de uma longa noite de descanso, e antes que o ladrão fosse para cama e ela para o sofá, a gênio aplicou mais uma vez o unguento de calêndulas nele. Não pudera proferir mais cânticos ou queimar sua magia, mas ele estava bem.

Bem ao menos fisicamente.

Verificou se as cortinas todas estavam bem fechadas, arrastou um criado-mudo e cadeiras para frente da porta. Impediu que sua guardiã apagasse a luz do lampião, embora também reclamasse da possibilidade da luz atrair mais do que mariposas.

Ela apenas enrolara-se em um cobertor de pele nos estofados e virou-se de lado, desfrutando da maré de sono que lhe invadia. Estivera vigilante demais para os limites deste fraco corpo. Prestes a dormir e feliz por seu amo afinal ter sossegado, ela ouviu:

— Espere aí. – A voz dele arrastou-se, também embargada pela sonolência. – Outros já te viram? Te viram sem ser fumaça, antes de mim?

Graen.

Não houve somente ele em sua vasta existência, mas não houve um único humano igual. O jeito que suas íris verdes feito um rio desciam sobre ela, precisos e indecifráveis, ou o seu riso abafado, grave. Mas também era um homem mais ambicioso do que todos os outros, e ela uma gênio ainda sem muito contato com os humanos. Nova e cega.

E o que seria mais perigoso do que um mortal capaz de realizar três desejos?

Ele era o seu amo, portanto Alethia não conseguira sentir o seu interior. Além disso, não acreditava que seria necessário. Sentia outra coisa, algo tão etéreo e ilusório quanto ela.

Ela enxergava apenas virtude. Ele era somente um vício.

A garganta dela fechou-se de repente.

— Vá dormir, Raed.

O tempo correu acompanhado das constelações, virando a noite para que logo regressasse o dia, enquanto a gênio remexia-se no sofá. Perdera o sono e ouvia a respiração ritmada de seu amo, finalmente a descansar bem sobre o colchão. Aquilo a acalmava um pouco, bem pouco.

Levantou-se.

Anos de existência traziam toneladas de amargor, era verdade; Sabor cujos lábios humanos também experimentavam naquele breve período de tempo que chamavam de vida. Ser ástrea e imaterial mantinha a dor longe, igualmente impalpável e distante.

Tropeçou nos pés do criado-mudo, fazendo um barulho oco. Encarou Raed, que continuava a dormir de maneira tranquila e ininterrupta. Em seguida expirou o ar de seus pulmões, esperando que o pânico em seus alvéolos se esvaísse junto do carbono.

Como aquele corpo era inútil.

A luz do lampião apagara-se há muito quando enfim ela tornou-se fumaça e desapareceu por de baixo da porta de madeira. O mármore e os santos a observaram subir e subir além da abóbada em cruzaria, através do teto.

Apoio-se em um dos pináculos e ali permaneceu acordada.

Distante e eternamente desperta, a floresta encarava a figura pequena e ancestral no alto da construção de pedra. A fêmea, a criatura de fogo. Alethia. Mas ela não encarava de volta.

Haviam lágrimas em seus olhos de luz.

No quarto onde o ladrão dormia, seu sono era povoado de areia e vento, até que o vento cessou. A pedras esculpidas e tracerias na coluna brotaram com um estalo do chão, até ferirem as nuvens com os pináculos agudos das duas torres laterais. Era a Catedral crescendo aos poucos feito uma miragem no mais árido deserto, cada vez mais nítida e clara conforme aproximava-se da mesma maneira que a vira de frente, pela primeira vez. A rosácea então pôs-se a girar e girar, fragmentando seu vidro colorido em pó, na direção do rapaz abaixo de si.

Foi quando os pesadelos de verdade começaram.


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Notas finais do capítulo

Sugestões? Críticas quanto a minha demora?
Tudo bem, eu aceito.



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