Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 18
Arauto


Notas iniciais do capítulo

Olá!
Aqui vai um capítulo um pouco parado, mas com algumas coisas fundamentais. Bom, não sei dizer se é tão parado, já que há diálogos e uma certa aparição...
Com todos os aplausos e a devida autorização, peguei um trecho de um texto p-e-r-f-e-i-t-o da Auri, uma leitora muito gente fina e com fics simplesmente fantásticas. Vale a pena conferir, gente.
Preparados? Então vamos lá.



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Um lance de escadas acima, Raed e Alethia perambularam de lá para cá iguais a chacais tentando farejar os restos de carniça. A Catedral inteira estava abandonada, cheia de pó e sugada pela ausência, e o mesmo nos aposentos particulares dos sacerdotes não havia muito mais do que papéis carcomidos, tinta seca e teias de aranha. Entraram em busca de respostas que à noite não tinham forças de procurar e nem de manhã fizeram questão; no entanto só desenterraram mais perguntas.

No corredor, havia riscos entalhados sobre a pedra lisa da parede, como se alguém contasse os dias. Havia assinaturas, nomes estranhos em alfabetos distantes e caligrafia exótica. Nomes demasiado longínquos.

– Alethia. – O amo chamou-a, impedindo que entrasse em outra sala. Ela voltou-se devagar para seu mestre, curiosa pelo tom de sua voz. – São os mesmos nomes que vi nas Ruínas, antes da travessia. Pessoas que chegaram até aqui.

“E que não devem ter durado muito.”

A mortalha aproximou-se, somente para encarar as gravuras. Será que reconhecia algum nome dali, ou a origem de uma das muitas escritas estrangeiras? Se fosse o caso, não demonstrou e tampouco afirmou qualquer coisa, apenas mirando a parede com um misto de interesse e desdém. Raed deu de ombros, abriu sua bolsa e de lá tirou uma faca meio cega; em seguida esculpindo seu nome com a ponta da lâmina.

– Não gosto disso. – Ela comprimiu os lábios, por mais que o ladrão não pudesse ver seu rosto e interpretar sua expressão. – Com tantos nomes e ninguém aqui, isso parece de mau agouro. Tire essa faca daí antes que o complete.

– Você não tem de gostar. – A boca dele repuxou-se para cima, num esboço mínimo de um sorriso. Estava debochando dela e do lugar, imitando a voz de Alethia quando conversaram há dias. – Não sou alguém muito ligado à tradições, mas esta é bem apropriada para uma corrente de anônimos que tentaram a sorte.

“Por mais que a sorte não exista.”

– E que morreram, sabe-se lá como. – A resposta dele foi um riso breve, o que tirou outro suspiro cansado dela. – Tens um péssimo senso de humor, se é que tens senso algum.

Desta vez ele parou e virou seu rosto para o manto, com o ar de zombaria infantil dominando seu rosto.

– Obrigado. – E então escreveu o nome dela também, próximo à sua assinatura.

Visitaram a sala que, estruturalmente, ficava ao lado esquerdo da abside e da santa sem os olhos; no entanto não havia como alguém de fora saber que havia um cômodo no andar superior devido aos detalhes da arquitetura e desvio da atenção que levavam seus olhos a mirar para os fundos e para as imagens. Era mais um escritório, porém com mais papéis nas estantes de pergaminhos e nos livros do que papéis ao léu servindo de tapete. Os móveis eram escuros, de alguma madeira fina e duradoura, e se não fosse uma parede inteira feita só janelas e vidro, também seria mais um escritório sombrio e infestado de mofo.
Alethia foi à frente, procurando algo nas gavetas e nas folhas soltas, enquanto Raed passava os olhos nas prateleiras, onde jaziam pequenas figuras de metal, e nos retratos antigos. Devido à falta de manutenção e umidade intensa, só era possível enxergar o rosto de um homem com barba e suas roupas excêntricas, de um tecido pesado e alvo. Talvez ali só se vestissem de branco, talvez tal cor denominasse a classe sacerdotal, já que só haviam visto construções que remetiam aos seus deuses. Sem mais nada para ver e certo de que sua serva examinaria cada centímetro do lugar, ele decidiu explorar a ante-sala ao lado; menor e mais pessoal. Parecia um pequeno depósito, com baús e um espelho oval meio coberto por um tecido, o qual ele teve o bom senso de manter ali. Não queria enxergar-se no reflexo.

– O que você viu? – A gênio disse um pouco mais alto e um pouco mais distraída, investigando os mapas puídos que acabara de encontrar depois que ele saíra pela outra porta. Mapas sempre reservavam boas respostas. Do outro lado, mesmo que não tão distante, Raed ficou confuso. Se tivesse visto algo de interessante, já teria dito à ela. Ou talvez não, quem sabe colocasse o objeto qualquer na bolsa e lhe mostraria depois; e se fosse algo absurdo como mais gravuras na parede, decidiria ignorar.

Franzindo a testa, ele achou que estava pensando demais na pergunta para responder algo tão simples.

– Até agora, nada. E você?

– Ah. – Ruborizada, ela se achou tola e culpou sua forma física. Era estranho ter pensamentos guardados num lugar só, e não distribuídos pela atmosfera. Assim Raed não conseguia captá-los com sua aura, ou ao menos não como antes. – Pergunto o que você viu no Templo Branco, aquele que te açoitou com relâmpagos. Você viu algo, certo?

Silêncio pairou no ar, preenchendo a conversa por minutos, tantos que a gênio sentiu seu coração remexer-se no peito. Algo teria acontecido ao seu mestre? Assinar seu nome na parede teria de fato selado seu destino? Baixou os papéis antigos das mãos, mas antes que ela pudesse levantar-se da cadeira, de acolchoado mole e carcomido, veio mais um murmúrio da ante-sala.

– Nada. – As pupilas dele mexiam-se sobre os baús, sem prestar atenção. As lembranças do círculo de vento e da tatuagem em sua mão encheram seus olhos e fundiram-se nos entalhes da madeira. – Não enxerguei nada, só escutei uma música.

– Uma música... – Repetiu ela, murmurando para si como se estranhasse o sabor destas palavras na língua. A ideia de fato era azeda, pois uma canção trazia muito mais o que se interpretar do que meros dizeres, mais até mesmo do que à algumas visões. Como era o ritmo? O que sua melodia, seus instrumentos e compasso poderiam revelar? Os sons agudos e graves, os timbres... Cada um com sua ondulação de significante, cada um com seu sibilo agourento. Alethia quase amassou o mapa, odiando-se por não ter a serenidade de aguardar seu amo em paz, enquanto este desfrutava dos relâmpagos e da dor. Talvez teria ouvido, caso não tivesse perdido o controle. – Cante-a para mim.

O corpo da gênio sobressaltou-se com a resposta, largando o que tinha em mãos e zunindo os ouvidos. Era a primeira vez que ouvia uma explosão de risadas com seus tímpanos mortais, e a situação levou seus dedos a tamparem as orelhas. Raed nem se deu ao trabalho de mostrar o rosto quando disse “não”, zombando um pouco mais das palavras de Alethia.

– Eu não canto. – Reafirmou de maneira descrente, e examinando uma faca menor para arrombar o baú. Ah, aquela de cabo simples e preto era perfeita, com a ponta levemente virada e de lâmina resistente. – É inacreditável que você não saiba que eu não canto. Logo você, Alethia!

O ladrão mexeu um pouco na trava, infeliz pela fechadura ser mais funda e mais complexa do que parecia. Suspirou, pegando outras ferramentas na bolsa.

– Inacreditável é o que dizes, seu moleque problemático. – Ele sorriu ao escutar a ofensa que ela adotara igual à quem adota um amado jargão, um xingamento leve que mais fazia seu orgulho crescer do que outra coisa. – E o conheci quando ainda esganiçava a voz num grasnado e agora não quer nem cantarolar uma maldita música para descobrirmos o que significa?

Sentiu um clique nos dedos e a pressão que aplicava na tranca aliviando-se, em seguida o rapaz levantou seus joelhos do chão e encostou-se na divisa da porta, cruzando os braços. Apesar de ter quase violado a fechadura, poderia ver o conteúdo do baú depois, só não podia deixar aquela afronta passar.

– Eu não esganiçava a voz, muito menos grasnava.

A mortalha deu de ombros.

– Grasnava igual uma ave de língua presa.

Raed endureceu o olhar, fazendo uma expressão com o maxilar travado como ela poucas vezes vira antes, e nos momentos em que viu algo estava errado. No ímpeto de calar suas palavras na boca da garganta, o caçador de recompensas engoliu em seco e em seguida desviou sua atenção para a janela.

“Você foi hipócrita” – Disse ele num tom invariável, pouco ligando se sua interpretação dos versos estava certa ou eloquente. Caminhou mais para dentro do escritório principal, próximo ao vidro que revelava-lhe o novo cenário lá fora, onde somente o vento poderia ver sua face gélida. – “Fechando seus olhos para o amor enquanto o fogo brilhava em seu coração...”

Com as mãos unidas atrás do corpo, a marca de falcão esquentou perto de seu dedo e também em sua palma, entretanto não fez mais do que ignorar a sensação presente e reviver os sons calmos do coro, suas vozes melódicas e bem ritmadas umas com as outras.

– “Não pertenço mais às pessoas da terra, nem sou capaz de voar para o céu. – Continuou, agora com a cabeça doendo. - Eu sou a agulha; Você, o meu magneto”. Não lembro bem da ordem, só sei que não era em nossa língua. – O conjunto ainda ressoava em seus neurônios, os encontros consonantais truncados e ao mesmo tempo com palavras melífluas. Nunca ouvira nada igual. – Perdão, ainda estou meio desorientado... Mas, o que acha?

Somente então virou-se para sorver da resposta e possíveis considerações de sua serva, a qual decerto não pouparia o veneno em suas palavras ou ironias sobre a sua voz na puberdade. Viu a luz incidir alaranjada sobre o manto marrom, uma silhueta de costas tão estranha quanto etérea naquela ambiente também sombrio, e aguardou. Aguardou até que aguardar tornou-se enervante, pois retirar tais versos dos pulmões havia o deixado frio por dentro, além de meio zonzo. Faria graça do que dissera? Não murmuraria um único suspiro? Ele remexeu-se no mesmo lugar sem saber para onde ir ou o que protestar, e som de suas botas pareceu despertar a gênio.

– Tente lembrar-se do resto. – Reluziram prateados os braceletes em sua pele ao mover as mãos e folhear os papeis em seu colo. Ele pôde ver os dedos dela em pedra mais uma vez, tracejando delicados o caminho por um estranho mapa com as pontas das unhas de ametista. Alethia sussurrou os versos ditos por seu mestre como se nem lembrasse a existência dele e muito menos a sua, por fim recordando-se que deveria falar algo mais pelo mínimo de educação. – Manterei tais trechos em mente, enquanto isso, ide lá arrombar mais um baú em tua contagem.

Raed apertou os olhos, a boca seca e sua aura transbordando a cor rubra. Soltou alguns grunhidos indistintos e tropeçou de propósito numa banqueta, para logo em seguida ter a desculpa de poder chutá-la contra a parede. Regressou à ante-sala escura para continuar com seu pequeno e ingênuo delito de furtar os podres tesouros dos mortos da Catedral, afinal, mexer com trancas e segredos foi sempre o seu remédio.

Só havia os rangidos metálicos de sua ferramenta raspando o miolo da fechadura, encontrando seus pontos sensíveis e enferrujados. O ruído, breve e sem ritmo, cortava também o silêncio pesado, mas não o destravava para algo leve. Ao aplicar mais pressão do que deveria, quase quebrando a haste de ferro, Raed expirou com força. Geralmente apreciava o fato de sua gênio não questionar seus súbitos silêncios e não demonstrar pena quando bem poderia... Mas não ficara claro que aquela música ressoava como um réquiem? Que ele vira o branco da ilusão igual à um corpo vê a terra cobrir seus olhos?

Sim, a canção aconchegara-o docemente em suas ondas e mais ondas do mar, saudosas em encontrar seus tímpanos. Sim, quando a cegueira alva esvaneceu e as cores vieram, quando a paz fresca começava condensar-se no ar, o ladrão ansiou ver a tempestade mais uma vez. Ansiou o vento e a dor. Ele desejou aquele estado de não consciência, de não ser, de não lembrar.

Parecia ter morrido naquele momento, agradecendo por isso. E não sentiu nenhum pingo de remorso, apenas choque pela morbidez do desejo. Que flertara com a morte em diversas ocasiões, sabia que sim, mas realmente a desejava?

O ladrão viu a morte branca como alguém que estende a mão, porém vacilou em alcançá-la. Por quê?

“Não pertenço mais às pessoas da terra
Nem sou capaz de voar para o céu.”

Raed continuou a arrombar o baú, mexendo os dedos sobre suas ferramentas, girando-as também. Encontrava um ponto, mas era o errado; partia para outro e somente na terceira tentativa conseguia fisgá-lo. Ele não conseguia ver bem a fechadura, pois não havia luz, no entanto tinha tempo o suficiente para testar os pontos de pressão e aos poucos conseguir destrancar o fecho. Mexia, mexia, mexia: ás vezes brotava um estalo que lhe deixava seguir em frente.

Alethia não era humana e decerto não tinha noção de uma vida mortal, de um tempo finito. Para ela, sempre existiria o amanhã, o Sol brilharia na mesma intensidade e Lua completaria seu ciclo de vinte oito dias. Para ela, não haveria morte e então não haveria o medo da morte. Portanto, também não poderia culpá-la por não saber como é caminhar nessa tênue fronteira, sentindo-se um cadáver nas terras da Vida, aspirando a vida na Morte, por fim sem pertencer à ambos. Ao suspirar outro bafejo cansado, ele perdeu um ponto na fechadura.

Será que, à despeito das centenas de anos e alguns acompanhando-o, ela não notara o que ele sentiu? Seus olhos não puderam ver o arrepio em sua pele e aquela estranha comunicação que tinham, silenciosa e empática, na verdade não existia?

Talvez não, e ele também não pôde culpá-la por isso.

Ocultas pelo manto espesso do silêncio e da noite que vinha, as batidas do novo coração de Alethia retumbavam dentro do peito e ardiam em seus ouvidos. Tal músculo bombeava fortemente o sangue e adrenalina por todo o seu corpo, acelerando sua respiração. Estava pior do que a vez anterior que sentira sua pulsação pelas veias e a jugular, fato que a obrigou a crer que isso apenas se agravava conforme o tempo. Era impossível que alguém além dela ouvisse, mas a gênio ainda assim temeu. Novamente, seus dedos assumiram a forma cristalina de pedra mais dura que diamante e afiada quanto a língua mais cruel.

“Você foi hipócrita
Fechando seus olhos para o amor
Enquanto o fogo brilhava em seu coração”

Pela segunda vez, ela sentia lágrimas escorrerem pelas bochechas. Agradeceu por seu mestre tê-la deixado na sala, a sós com seus pensamentos, papéis e o pôr do Sol na janela. Alethia passou as costas da mão sobre a face para livrar-se do choro, pois se passasse os dedos poderia arranhar a pele. Observara sim, o quanto os versos assombraram o rapaz e lhe arranharam a garganta de dentro para fora, contudo fora ele que não enxergara.

Ele não conhecia a sua dor, mas culpa era um peso que ela não conseguia levantar de si para colocar em alguém.

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Antes agachado de cócoras sobre os joelhos, assim que a fechadura do velho baú cedeu e ele pôde finalmente abri-lo, Raed sentou-se no chão com as pernas cruzadas. Seus dedos doíam pelos movimentos repetitivos e demorados, mas havia certa graça na latejar de sua carne. Seus lábios se repuxaram para cima. Ao inclinar-se para frente e ver o que havia dentro do caixote de madeira, seu sorriso matreiro não durou muito tempo.

“ Oh, que surpresa. Mais pó, mais teias e mais nada.”

Dentro da imensa variedade de fatos frustrantes, a demora para arrombar algo e então não descobrir nada de importante ou de ouro o fazia perder o pouco de paciência que tinha. Desta vez não fazia tanta questão de preciosidades quanto algum instrumento, alguma faca por menor que fosse, ou vinho. Sim, vinho definitivamente seria bom naquele momento. Com um bafejo, ele esticou seus braços e alcançou os manuscritos amarelados, meio espalhados, meio agrupados por cima de tudo. Por mais que parecesse que a capa de couro gasto do caderno havia vomitado aquela miríade de anotações e lembranças velhas, ele não sentiu nojo nem disto e nem das traças, e juntou a porção de papéis de maneira qualquer.
Desajeitado, começou a arrumar as folhas em um só bloco para dentro da capa e assim que retirou o último dos documentos do baú, um estranho arrepio formou-se na sua coluna.

Os papéis estavam só por cima, e o que havia abaixo daquela camada desgostosa de memórias também remetia à um mundo distante. Raed retirou uma espécie arco pequeno, grosso e estranho de dentro, com uma aljava de flechas curtas e sem adornos. Com cuidado, virou e virou a arma, vendo como aquilo funcionava, e afinal entendeu que deveria segurá-lo de frente ao corpo com as duas mãos e apertar o gatilho.

Um longo e assombrado assovio saiu de seus lábios.

– Encontrou algo? – A voz de Alethia ressoou longe aos seus ouvidos, tanto por sua mente vagar distraída quanto por ela própria estar afastada na outra ponta do escritório. O barulho da madeira rangendo não mentiu em dizer que se aproximava, entretanto seu amo optou por ignorar a pergunta.

Colocou a arma ao lado de seu corpo e retornou sua atenção aos segredos do baú. Tecidos perfeitamente dobrados no canto superior direto, roupas que ele experimentaria mais tarde para suportar o frio e o vento, e que talvez cedesse à sua gênio ranzinza. Dali pegou uma faixa de couro com dois círculos de vidro fumê, objeto que ele reconheceu como um óculos, embora não fossem assim em Sundara. Inaya, a velha que o ensinara o básico, possuía um par de lentes transparentes e em forma de pequenos retângulos bem ornados em hastes de bronze, cujo peso sempre deslizava sobre seu nariz aquilino.

Deu de ombros e decidiu ficar com o item, talvez o ajudasse a enxergar através da névoa e da areia. Isto é, caso encontrasse mais areia e névoa ao fim de tudo.

Teria revirado ainda mais a fundo cada cacareco e artefato dentro do baú, cada memória ali perdida se sua curiosidade não ardesse em puro magma. Estava tudo muito organizado e, dentro dos padrões possíveis, bem conservado. Alguém estivera ali há um tempo, mas há pouco tempo. Em terras onde só existiam ruínas e destroços com dezenas de anos, aquilo não parecia ter sido deixado há mais de um punhado de meses e se tal suposição fosse verdade...

Mais alguém poderia chegar. Mais alguém poderia voltar.

O caçador de recompensas correu seus dedos sobre as folhas do caderno, ávido por alguma resposta, entretanto a pessoa em questão não usava as mesmas medidas de tempo que o povo de Raed. Ali, em tinta negra e caligrafia apressada, a nota na margem da página marcava o “Sétimo Ciclo” e um pequeno anel preto.

O autor parecia ansioso, quase histérico. Narrava sobre sua confusão e sua fome, dizendo que as sombras de sua vida ganharam pele de concreto e asas pontiagudas de mármore. O álcool não o relaxava mais, e ele não conseguia dormir. Suas últimas palavras contavam que iria até o rio para se banhar e pescar algum peixe para matar sua fome, antes que fosse tarde demais ele ouvisse os lobos.

Lobos.

Afirmou que voltaria logo, mas não havia nada mais depois disso. Nem um pingo de tinta, nem uma assinatura. Folheando mais para trás, com suor na testa e tremor nas mãos, ele encontrou algo:

“A dor parece mais amena aqui,
escondido, no escuro,
longe da fogueira e das memórias
que dançam em suas labaredas
Kiest, sinto muito, mas os rios se
tingem de vermelho novamente,
o sangue predomina, e temo que
a culpa seja minha

Temo, Kiest, que toda desgraça que se proceda seja por conta de minhas ações. Ações de um garoto que achava ser homem, em busca de algo tão maior que anuviou minha mente.”


– O que estás lendo aí? – A mortalha caminhou até perto dele, que levantava-se. Ao notar o objeto escuro no chão, largado próximo ao amo, de imediato alarmou-se. – Isso é uma balestra?

– Alethia, - A voz dele era gelo, seus olhos metal. – Em qual Lua estamos?

A garganta dela comprimiu-se, num engasgo invisível e incontido. Naquele cômodo pequeno e longe de outras almas, além da plenitude de seus poderes, a gênio teve súbita consciência das lâminas que seu mestre carregava consigo e de como seu físico poderia ferir tanto quanto suas palavras.

– Crescente. – Ela limpou sua voz, mostrando a confiança cuja solidez desmoronara há poucos segundos.

Crescente. Não encontraram nenhum rastro humano quando chegaram, nenhuma pegada no pó ou sinal de fogo recente, apenas o lampião. O lampião que Alethia achou no andar térreo, próximo a saída dos fundos na sala invadida por romãs. Raed passou as mãos pelas têmporas, raciocinando. A bola preta na última anotação lembrava uma Lua Cheia, o que levou a conclusão que fazia quase um ciclo inteiro da Lua que o autor não escrevia. Quase vinte e oito dias.

Ou então ele estava completamente errado e aquilo não passava de um desenho, talvez alguém trôpego estivesse subindo as escadas naquele exato instante.

– Eu não encontrei nada que preste, por enquanto. – A gênio balançou, indecisa sobre os próprios tornozelos. Seus olhos ocultos pelo manto não desgrudavam do caderno que seu mestre segurava com tamanho receio. – A língua é estranha, e ainda não entendi o padrão que segue. Vai demorar para que eu decifre algo.

Raed mal a ouviu. Continuou a encarar o diário e a folhear suas páginas como se não soubesse da fragilidade do papel tão antigo, fisgando palavras quaisquer que saltavam das páginas. Havia nomes de pessoas, rabiscos, cálculos e até mesmo pequenos retratos. Seus pés caminhavam pela saleta sem que ele bem compreendesse seus próprios movimentos, até que chegara mais uma vez à janela principal do escritório, na primeira parte em que entraram. Por instinto, procurara a luz.

“Vivo, mas não são.”

Auri.

A mortalha o seguiu para o outro cômodo feito sombra, mal tocando o chão conforme andava. Desviou da banqueta caída ao piso e ficou a observar seu amo. O que era aquele caderno?

– Só os mapas me valeram algo. – Disse ela, num falso ar de indiferença, indicando com o capuz as figuras separadas sobre a mesa. Ele não responderia caso perguntasse abertamente o que o deixara de tal forma, ou pior, tomaria como uma ofensa. Teria que contar por vontade própria o que ocorrera. Valendo-se de toda a sutileza que poderia ter, ela limpou a garganta e recomeçou: – E tu? Além destes manuscritos inúteis que tens em mãos, algo mais?

Ele ainda assim não rebateu. O tom jocoso não surtira efeito e nem o aliviara do pavor: Não, seus olhos não fitavam o céu púrpura e muito menos notavam a poeira sobre o vidro, mas sim encaravam a noite engolindo toda a claridade igual à quem encara um ponto muito distante dentro de si.
Ele enxergava algo que Alethia jamais poderia ver.

– Bem, eu... – Seu estado impediu que mantivesse a raiva. – É um diário. A última parte diz que Auri voltaria logo. Talvez tenha alguma nota importante.

A mão magra de Alethia ergueu-se do manto, num gesto debilitado para pegar o caderno. Gradativamente recuperando seus sentidos, o ladrão estreitou as pálpebras frente àquela sua postura acanhada, mais um animal ferido do que sua gênio em carne e osso. Parecia um cão com receio de tirar o osso de outro cão.
Ela por fim cedeu, aproximando-se. Pegou a capa de couro com cuidado e seus dedos passaram delicados página por página, mas seus olhos moviam-se da esquerda para direita e da direita para a esquerda freneticamente. Raed não vira isso, não haveria como: o manto a cobria. Chegou a pensar que o motivo de sua quietude era o mesmo assombro que as palavras do autor lhe provocaram. E então mais uma página, e então outra e mais outra. Silêncio por angustiantes cinco minutos, para em seguida devolvê-lo.

– Você leu isso? Entendestes? – A voz dela foi um fio, um sufocado sussurro intercalando as pessoas das conjugações verbais, e quando ele aquiesceu, a mortalha viu o mundo girar. – Está em outra língua, em outro alfabeto, e nem mesmo é parecido com as anotações sacerdotais destas Ruínas. Tu acabastes de ler as palavras de um outro mundo, de um mundo que talvez nem seja este. Primeiro, chamou esta construção abandonada não de edifício, lugar ou templo. Chamou de Catedral. E agora... e agora compreende línguas desconhecidas.

Se encararam diretamente pela primeira vez, e Raed poderia jurar que vislumbrara um brilho turquesa sair da escuridão do manto. Os olhos piscaram assustados, e então apagaram-se.

– Conveniente demais, certo?

Ela assentiu enquanto o ladrão notava o ardor em brasa vir do falcão em sua palma.

– Exato. Não se trata de mera sorte.

– É claro que não. – Ele passou uma das mãos nos cabelos, sentindo a outra pesar toneladas ao segurar o diário. O amargor da situação lhe escorreu pelos lábios através de um sorriso leve. – Comigo nunca seria tão simples, nunca foi.

Apesar de ser um ladrão, um bom ladrão, havia coisas que seus dedos ligeiros jamais alcançavam: O tempo, a serenidade e a sorte.

O que era sorte?

– Bem, - Ele deu tapinhas na capa de couro ao dirigir-se até a cadeira próxima à mesa. Sentou-se com cuidado e abriu sua bolsa, tirando dali um toco de vela velha. – Fogo, por favor. Tenho muito que ler aqui... E enquanto isto, “ide lá” revirar o baú. Não se faças de ingênua, pois sei que gostas de pequenos crimes.

A gênio decidiu deixá-lo sozinho sem questioná-lo. Não queria contrapor suas palavras e fazer com que sua postura humorada se despedaçasse em diminutos e pontiagudos cacos. Ele não merecia. Alethia passou seus dedos pelo pavio da vela e deixou-a queimando bruxuleante para Raed, depois pegou todo o seu orgulho e voltou-se para a saleta escura, sentindo-se em seu ambiente natural.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado - Principalmente você, Auri!
Quaisquer correções, sugestões e broncas, é só comentar!
Muitos beijos e até a próxima!



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