Dois Quartos de Vinho escrita por Ninguém


Capítulo 27
O quarto estava escuro e abafado


Notas iniciais do capítulo

Olá, querido leitor. Seja bem vindo! Puxe uma cadeira ou deite no sofá, tome um chá ou coma uma pipoca. Enfim, sinta-se a vontade e tenha uma ótima leitura.



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O quarto estava escuro e abafado, pelas frestas da janela era possível perceber o amanhecer do dia e alternados e fracos trovões levavam a crer que uma tempestade estava por vir.

Uma sequencia de gritos fez-se ouvir acordando a mulher em um salto. Ficou alguns segundos parada, deitada na cama, recobrando os sentidos e tendo certeza se ouviu bem. Mais gritos se seguiram, seu nome era chamado "Aline...Aline...", se levantou da cama e foi correndo ao quarto ao lado.

A porta de madeira estava encostada, assim que abriu, Aline se deparou com algo que não soube entender, muito menos explicar. Lia estava jogada no chão, no meio do quarto, encolhida em posição fetal, ela apertava a cabeça contra o piso gelado enquanto implorava chorando "Me ajuda... me ajuda... faz parar...". A loira correu até a amiga e com o máximo de força que pode juntar desprendeu as mãos dela da própria cabeça, fios do cabelo negro saíram nas palmas das mãos.

— Lia, pelo amor de Deus, o que tá acontecendo?

Lia olhou para a amiga com os olhos arregalados, por um momento a outra teve a impressão de que não estava sendo reconhecida, a morena rastejou até a parede e se sentou, ofegante.

— Eu... e-eu não sei Line, minha cabeça parece... - Ela estava suando, sua pele pegava fogo e seus cabelos se encontravam em um completo nó. Tremia enquanto tentava recuperar o folego para falar - Parece que v-vai explodir a qualquer mo-momento.

— Eu vou pegar um remédio, tenta se acalmar.

Ela deixou a amiga no quarto e foi até o banheiro, abriu o armário do espelho e tirou de lá uma aspirina, a passos largos foi até a cozinha e encheu um copo com água. Em menos de 40 segundos já estava sentada no chão, ao lado da amiga, vendo-a tomar o remédio.

A fina mão de Lia continuava a tremer, quase derrubou o copo ao entrega-lo para Aline.

— Vem cá. - Aline estendeu os braços para que a jovem deitasse em seu colo - Mais calma?

A outra apenas balançou levemente a cabeça positivamente.

— Agora tenta me contar, com o máximo de detalhes, o que houve.

— Eu tive um sonho, um sonho muito ruim, na verdade nem sei se posso chamar de sonho. Eu não vi nada, era tudo escuro, mas ouvia alguns barulhos, uns bipes e outras coisas, senti alguma coisa encostar em mim, ouvi vozes também, vozes conhecidas falando sobre alguma coisa que eu não entendi. Só sei que fiquei assim por um tempo e acordei, fui me levantar pra ir no banheiro e fiquei tonta, senti uma dor na cabeça como se tivesse levado um tiro, caí no chão e não consegui me mexer, ouvi o mesmo bipe do sonho só que mais forte e sem pausas, entrei em desespero e comecei a te chamar pra me ajudar.

— E como se sente agora?

— Bem.

— Vai tomar um banho, vou te levar no médico.

— Mas Line...

— Nem tenta discutir, vou te levar e ponto.

Lia se levantou ainda zonza e se sentou na cama, pegou seu celular e discou um número.

Aline levantou logo depois, estava saindo do quarto quando ouviu a amiga lhe chamar:

— Line.

Ela se virou.

— Obrigada. - A jovem agradeceu sorrindo.

A loira consentiu e saiu do cômodo, já em seu quarto pode ouvir a amiga ao telefone:

— Carla, é a Lia. Estou ligando para avisar que não vou hoje...

...

— Vai Jaque, quebra essa pra mim.

— Por que você não vai lá e pergunta?

— Você sabe que se eu for, vou ser zoado pelo resto da minha vida.

— Meu Deus, Elídio, que drama!

— Fico te devendo uma.

— Fica mesmo.

Elídio e Jaque conversavam em tom baixo próximos da porta de saída do escritório. O treino já havia acabado e o começo de um novo esquete foi gravado, todos estavam prontos para deixar o local. Assim que Daniel apareceu descendo as escadas, a moça foi correndo até ele.

— Dani, eu preciso de uma ajuda, na verdade de uma sugestão.

— Pode falar. - Ele respondeu enquanto vestia o casaco.

— Bom...- Ela pressionava as mãos nervosa, olhou para trás e viu Elídio fazendo sinal para que prosseguisse - Você que entende bem mais de shows, eventos e novidades por aqui não tem uma dica de algum lugar pra um encontro romântico?

— Dona Maria Jaqueline me pedindo dicas sobre encontros, eu ouvi bem? - Ele zombou arrumando o óculos no nariz.

— Tem ou não tem, Dani?

— Hum, deixa eu pensar...

Começaram a caminhar em direção a saída. Era possível perceber o vento forte lá fora e ver, ao longe, alguns raios caindo. Daniel parou de repente fazendo Jaque imita-lo, virou para ela e sorriu.

— Já sei, faz algumas semanas que o Cine Chaparral voltou lá em Osasco. Você sabe né? Um cinema inspirado naqueles dos Estados Unidos em que as pessoas assistem os filmes dentro dos carros. Hoje tem sessão e começa às 22h00. Não sei se você e seu namorado vão gostar, mas avisa o Elídio que a Lia vai curtir.

A mulher riu ao se virar e ver a expressão do Barbixa. Obviamente ele não esperava que o parceiro descobrisse que era para ele a dica, mas Daniel era esperto demais para cair nessa.

...

Aline e Lia estavam juntas na sala de estar. Enroladas até os pescoços em seus cobertores, estavam assistindo um filme de terror enquanto comiam torradas e tomavam chá. Uma das poucas coisas que tinham em comum era o gosto por filmes de terror. Nas férias sempre compravam diversos deles e viravam as madrugadas assistindo, André acompanhava as duas algumas vezes e dos três, era o mais medroso.

— Você não precisava faltar na faculdade por mim.

— Não tem problema, e outra, vai que você tem outro desses ataques.

— Espero não ter isso nunca mais! Ficou tudo escuro, não conseguia ver nada, só ouvir sua voz.

— Tipo um...

— Apagão.

O interfone tocou e Aline se levantou para atende-lo.

— O que será que essa velha quer?

— Encher o saco como sempre.

— Alô? Ah, oi Seu Luiz. Tá, tá sim vou chamar ela. É pra você.

— Ué, o que o porteiro quer comigo à uma hora dessas? - Ela perguntou pegando o interfone - Alô? Me esperando ai embaixo? - Ela e Aline se encararam e deram de ombros - Ele não falou nem o nome? Vendedor do que? Ah - Ela começou a rir - Um vendedor de morcego morto. Okay, Seu Luiz, avisa que eu tô descendo, obrigada.

— O Elídio tá aí.

— E você tá esperando o que pra descer?

— Eu vou assim?

— Dá uma voltinha.

Lia usava um pijama de frio com estampa de sapinhos.

— É, vai assim mesmo qualquer coisa você volta e se troca.

Lia deu de ombros e saiu do apartamento. Já no elevador, parou para se olhar no espelho, estava totalmente sem maquiagem, o que evidenciava suas olheiras, lembrete carinhoso de uma vida corrida, seu pijama folgado era confortável mas, nem um pouco atraente e seu cabelo amassado só contribuía para a impressão de que tinha acabado de acordar. Prendeu o cabelo em um rabo de cavalo e passou a fazer caretas para si própria no reflexo do espelho. Certamente a senhora ao seu lado diria que aquele era o resultado do abuso das drogas.

Saiu do elevador não muito confiante sobre seu estado, mas não deveria ser de outra forma depois das horas perdidas no hospital presa a uma fila imensa de pacientes. Estava cansada, dolorida, esgotada, tudo que queria era terminar o filme, tomar um banho bem quente e dormir cedo. Porém, um príncipe encantado montado em um fusca estava a sua espera sabia-se lá para que.

Um homem alto, vestido uma camiseta preta de mangas compridas e um jeans escuro de tom próximo, conversava com o porteiro. Ela se aproximou lentamente estralando os dedos e mordendo inconscientemente o lábio inferior. Sorriu assim que Elídio se virou.

— Uau, acho que alguém acabou de acordar. - Ele disse, fazendo Luiz rir.

— Essa é minha roupa para receber vendedores chatos e inconvenientes.

— Cruel. Bom Sr. Luiz, foi um prazer lhe conhecer e falar sobre a empresa que represento, infelizmente estou sem nosso cartão agora, mas qualquer interesse fale com a mocinha aqui e ela me passará o recado.

— Pode deixar Seu Emílio.

— Emílio? - Lia perguntou rindo quando já estavam nas escadas de fora do prédio.

— Eles nunca decoram. Boa noite, ó nobre donzela vestida com um pijama de sapinhos.

— Boa noite Duque do Reino da Morcegolandia.

— Vamos?

— Vam... NÃO! Espera, onde vamos? Eu tô de pijama.

— Fica tranquila que não vamos precisar sair do carro.

— Vai me levar pra alguma espécie de motel automobilístico?

— Não, deixaremos isso para semana que vem.

Ela riu envergonhada e acompanhou o humorista até seu carro. Voltaram a conversar já dentro dele.

— Como sabia que eu estava em casa?

— Eu tentei a sorte, se não estivesse aqui iria até sua faculdade como daquela vez.

— Tudo isso pela simples necessidade de me ver? Te beijaria agora se não estivesse dirigindo.

Ele a olhou. Um olhar embebido de desejo, ansiedade, fogo e mais alguma coisa que ela não conseguia identificar o que era. Estranhamente Lia estremeceu, não sabia porque, mas aquele rápido e sorrateiro olhar tinha algo que mexeu com ela instantaneamente. Olhou para baixo e se sentiu idiota ao ver aquela dezena de sapos flanelados a olharem de volta.

— É... normalmente eu não vou de pijama para encontros.

— E resolveu vestir esse pijama assim que soube que eu estava na portaria para acabar com todo o meu tesão por você? Porque se foi essa a intensão, você fracassou fortemente.

— Claro que não. - Ela respondeu rindo - Não tive um dia muito bom hoje.

— O que houve?

— Pra resumir, passei o dia no hospital, mas agora estou bem, só cheguei em casa esgotada, tomei um banho, vesti a roupa mais confortável que achei e fui pra sala assistir filme com a Line. E é por isso que você está me vendo com um pijama que uma criança de 7 anos usaria.

— E então esse chato aqui atrapalhou seu filme para te levar no cinema.

— Exatamente. - Ela respondeu rindo - Espera ai, nós vamos no cinema?

— Sim.

— Mas você disse que não íamos sair do carro.

— E não vamos.

Chegaram até o Chaparral. Logo no portão um homem recebeu os dois dando a cada um deles um panfleto explicando sobre o projeto, seus horários e os filmes. Depois de pagar as duas entradas, Elídio seguiu para dentro do estacionamento escolhendo o melhor lugar para estacionar.

O estacionamento do Sesc Osasco era grande, um ótimo lugar para esse tipo de evento. O lugar estava relativamente cheio, ao fundo se localizavam banheiros químicos e trailers vendendo diversos tipos de comidas, os funcionários estavam caracterizados com roupas de época de acordo com os filmes que passariam no telão de 30 m².

Desde que o projeto começou, em 2012, há cada ano eles passavam clássicos de cada década. Naquele ano os escolhidos foram os da década de 1920. Elídio, Lia e mais outras dezenas de pessoas assistiriam O Gabinete do dr. Caligari, sucesso de Robert Wiene.

— Eu vou comprar pipoca, quer alguma coisa? - Ele perguntou após ter estacionado.

— Não, obrigada.

Ele assentiu e saiu do carro, deixando-a sozinha para que observasse o interior daquele fusca tão famoso. Não demorou 10 minutos para que o Barbixa voltasse. Ele estava com as duas mãos ocupadas, segurando uma pipoca grande e dois copos de refrigerante de 350 ml. A jovem ajudou a segurar as coisas para que ele pudesse entrar e se sentar no banco do motorista.

"Ei, você não é aquele humorista do Improvável? Eu sou sua fã!"— Ele disse afinando a voz, imitando a atendente do trailer. Lia riu.

— Que amor.

— Elas sempre são. Desculpa a demora, fiquei tirando fotos e dando autógrafos.

— Não tem problema. O filme já vai começar.

Elídio inclinou os dois bancos, da parte de trás do carro tirou um cobertor de estampa xadrez e o colocou sobre o colo dos dois. Apontou para o painel do carro e disse:

— É pra você.

A morena franziu o cenho e arqueou uma das sobrancelhas, pegou a caixa retangular logo a sua frente e graças a ausência de luz do local demorou um pouco para entender do que se tratava. Abriu a caixa, rasgou o plástico de dentro e de lá tirou um dos chocolates belga, abriu a embalagem dourada e estendeu o bombom para o homem, que mordeu um pedaço e ela comeu o outro.

Mastigaram olhando fixamente um para o outro, contendo o riso. Assim que terminou de comer, Elídio se aproximou de Lia e delicadamente depositou em seu pescoço um beijo e logo depois uma mordida. Os músculos da jovem se retesaram e ela o puxou para um beijo.

— Vem cá. - Ele disse assim que se desvencilharam.

Lia deitou no colo do homem de modo que pudesse ver o telão e ele abraçou-a da maneira mais gostosa e carinhosa que conseguiu, entrelaçando seus dedos aos dela. Passaram todo o filme assim, trocando olhares, beijos e confissões silenciosas de seus maiores desejos.

O filme acabou e uma grande fila de carros se formou na saída do estacionamento mas, não demorou muito para que chegassem até a calçada à frente do prédio da mulher.

— Esse é o momento triste que tenho que me despedir e te perder pra uma cama onde não vou estar? - Ele perguntou, dramático.

— Exatamente.

— E quando vou poder te ver de novo?

— Espero que logo.

— Se eu pudesse, viveria eternamente nesse momento.

Ela se aproximou e beijou Elídio como se fosse o último beijo dos dois, logo depois saiu do carro e entrou no prédio.

Assim que chegou em seu quarto, Lia se deparou com o furão em cima de sua cama, dentro de sua gaiola.

— Opa, a que devo a honra? Sua mãe loira não te quis lá, né? Ou será que o Gibi tá ai? Nossa. - Ela riu - Acabei de perceber que eu e a Line somos um casal lésbico mães de um furão, que lindo, isso daria uma bela novela.

— E ele achando que eu ia dormir sozinha. - Continuou a conversar com o furão.

Tirou suas pantufas e riu ao lembrar de Daniel Nascimento " tomar banho com pantufas pode ser letal". Deitou na cama ao lado do furão e suspirou.

— Ah, o Elídio... sabe Rumpel acho que estou...- Ela parou de falar e arregalou os olhos- ficando louca, É CLARO!
Ela se levantou em um salto.

— Quem ele tá pensando que é, Rumbel? Aliás, quem ele pensa que EU sou? Acha que vai chegar me dando bombonzinho caro, me levanto pra cinema, apresentação de orquestra e com isso vai conseguir o que quer? E o que ele quer Rumpel?

Obviamente o animal não respondeu, nem sequer se mexeu.

— Isso mesmo meu amor, você é muito inteligente e eu aqui sendo feita de idiota todo esse tempo. Ele só quer me levar pra cama. Usa quinhentos mil disfarces quando saímos de dia e tem a cara de pau, A CARA DE PAU de me tratar como se eu fosse especial.

Ela pegou a gaiola do furão e depositou-a em um dos cantos do quarto, continuando seu monologo.

— Quem ele pensa que é?

O bicho soltou um barulho tímido.

— É, eu sei, mas agora as coisas vão mudar, deixaremos as coisas mais difíceis. Que comecem os jogos.

 


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Notas finais do capítulo

Até o próximo capítulo,
Abraços!



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