O mistério dos alunos transferidos escrita por Jel Cavalcante


Capítulo 2
Bia


Notas iniciais do capítulo

Todos os capítulos serão no ponto de vista de um personagem, porém a história segue sendo narrada em terceira pessoa. Até o momento escalei 6 personagens para terem pontos de vista (que serão revelados na medida em que eu for publicando os capítulos).



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Todas as meninas haviam descido para tomar café. Bia estava atrasada, ou melhor, estava praticando seu esporte favorito: fingimento de atraso. Ao ver que estava sozinha no quarto, abriu a mochila e tirou uma revista em quadrinhos. De todas as coisas que lhe davam raiva, e olha que estamos falando de uma lista bem extensa, a pior de todas era pausar a leitura numa parte importante. E mesmo com o perigo iminente de alguém entrar de repente para apressá-la, passava as páginas com calma, como se nada mais existisse.

Quando a história atingiu um ponto onde poderia ser pausada sem problemas, seus olhos pousaram na parte inferior da folha, bem em cima do número da página. Já havia chegado na 80, sendo que a revista terminava na 112.

"Ai não. E agora? Eu preciso da décima edição o mais rápido possível. Será que já chegou na banca?"

Pôs a revista de volta na mochila e correu em direção à cozinha. Quanto mais perto ia chegando, mais forte ficava o cheiro da comida do Chico. As crianças, já prontas em seus lugares, esperavam agitadas a hora de comer. De todos os lugares vagos, somente dois chamaram sua atenção. O primeiro era exatamente ao lado de sua melhor amiga, Ana. O problema era que nessa mesa só tinha as "pirras", como costumava chamar as menores. O outro lugar era entre Vivi, que preferia dar atenção para as suas unhas mais que para as colegas de mesa, e Cris, que não estava com uma cara muito boa. Decidiu sentar com as maiores.

"Então, meninas. O que vocês acharam daquela garota novata de cabelo aguado?"

Um risinho começou a brotar no rosto das outras, quando Mili resolveu impedir que aquilo se transformasse em algo maior.

"Bia! Não fala assim. Você nem conhece a menina e já vem falando desse jeito!"

Na mesa da Mili estava também sua melhor amiga Pata, que nunca se deu muito bem com Bia. Ao ver que a situação ia contra a garota, completou:

"É, Bia. Você nunca vai com a cara de ninguém. Aposto que essa menina novata é muito mais daora que você"

"Ah é? Então aproveita e faz o trabalho de História com ela. Já que ela é tão gente boa assim. Eu sempre sou a excluída mesmo. Podem trazer ela pra vir morar aqui no meu lugar também. Já tô de saco cheio de todas vocês"

O trabalho em questão, havia sido passado dois dias antes e deveria ser feito em duplas. Vivi se adiantou para fazer par com Mili, o que é totalmente compreensível já que Vivi nunca presta atenção na aula e precisava tirar uma nota boa para não ser chamada atenção mais uma vez. Bia só tinha esquecido um detalhe, Cris ainda estava sem dupla. Naquela manhã toda, Cris não deu um pio. Ficava sempre olhando para as meninas como se estivesse prestando atenção no que elas estavam falando, mas aos poucos ia ficando claro que a cabeça dela estava em outro lugar.

Para terminar a discussão, a comida chegou na mesa e todos começaram a comer calados. A ida para a escola não foi diferente. Somente os menores pareciam ter alguma animação para fazer brincadeiras na vã do orfanato. Chegando na escola, cada um foi para o seu lado. Para Bia, somente uma coisa importava naquela manhã: fazer amizade com a aluna nova. Assim nunca mais iria depender das garotas do orfanato para fazer trabalhos.

A aula foi tranquila. Bia escolheu sentar estrategicamente atrás da novata, assegurando que ninguém mais ousasse falar com ela sobre o trabalho. A oportunidade veio quando a professora precisou sair para atender a um chamado lá fora. Estava chovendo e o friozinho fazia as mãos de Bia tremerem. Não parecia mais um simples convite. Era como se muita coisa dependesse daquele momento. Cutucou a garota e disse:

"Malva. Você já tem par para o trabalho de História?"

A chuva aumentou e o frio foi intensificando cada vez mais. Malva se virou para trás, mas pareceu que seu corpo estava congelado na cadeira. Devagar, como em um filme de terror, mirou os olhos na colega. Seus olhos pareciam estar mortos e enterrados em um cemitério esquecido há muito tempo no meio do deserto. No canto da boca, apareceu um mísero sorriso, e a voz saiu rouca e um pouco dolorosa:

"Não. Por que?"

O medo tomou conta mas Bia já tinha ido longe demais para regredir. Arriscou um convite de quem não está muito interessado:

"Sei lá. Tava pensando se a gente podia fazer o trabalho juntas. Você é nova aqui e deve ta..."

Antes que terminasse a frase, foi interrompida pela volta da professora pedindo silêncio à turma. Malva ainda encarava Bia com um olhar mórbido e penetrante. Se ela não fosse só uma garotinha numa sala de aula, alguém poderia achar que dentro daquele corpo havia um soldado de guerra analisando diferentes táticas de acabar com o seu inimigo. Um "pode ser" escapou da voz, agora um pouco menos rouca, de Malva, que logo em seguida voltou a olhar para frente como se nada tivesse acontecido. No final da aula, Bia recebeu um bilhete da colega, escrito: "me encontre do outro lado do pátio, nos bancos isolados".

"Bancos isolados?" A menina ainda não sabia muito bem de quais bancos a outra estava se referindo, mas imaginava que o outro lado do pátio deveria estar encharcado devido à chuva. Como sabia que nenhum aluno deveria estar por perto, já que naquela escola todos eram "babacas e medrosos" e portanto não iriam querer se molhar de forma alguma, decidiu ir ao destino marcado. "Certo. Já sei onde ficam os bancos isolados. Mas como vou fazer pra chegar lá sem que alguém me veja? Está chovendo e provavelmente ninguém poderá andar pelo pátio na hora do recreio… Bem, é melhor eu tentar. Não quero perder essa chance. Essa novata precisa ser minha nova melhor amiga".

O sinal do recreio tocou e os alunos saíram correndo, com exceção do pessoal do orfanato, que impediu Bia de levantar. Pata foi direto ao ponto perguntando se estava tudo bem elas fazerem o trabalho juntas. Antes que Bia pudesse responder, Cris abriu a boca pela primeira vez, dizendo que também estava sem dupla. Nesse momento Mosca e Rafa se olharam e, ao perceber que alguma confusão iria acontecer entre as meninas, resolveram sair para não perderem o recreio. Mili foi a primeira a tentar resolver o impasse sugerindo que as outras fossem pedir a professora para fazer o trabalho em trio, mas Bia se adiantou dizendo que já tinha alguém e que não fazia questão alguma de se envolver com as "traíras do orfanato", como preferiu chamar as amigas. Dito isso, saiu apressada da sala para não ter que discutir. As outras ficaram para trás. Todas sabiam que quando Bia ficava com raiva de alguém, pouca coisa adiantava.

A chuva estava fraca mas mesmo assim ninguém podia andar livremente pelo pátio. Bia se certificou de que não estavam olhando para ela, e andou apressada por debaixo das árvores, tentando se molhar o mínimo possível. Ao avistar os bancos isolados, percebeu que Malva já estava lá, sentada e de cabeça baixa. "O que será que tem de errado com essa garota? Parece mais um fantasma encharcado", pensou baixinho. Sentou no banco em frente à novata e esperou que ela dissesse alguma coisa. Malva levantou a cabeça e proferiu, no mesmo tom de sempre, uma espécie de proposta:

"É o seguinte garota. É verdade que eu não tenho ninguém nesse colégio, a não ser meu irmão mais novo. Mas não sei se é uma boa ideia a gente se juntar pra fazer esse trabalho. Você parece que não foi com a minha cara desde que cheguei aqui. Não me sinto muito bem perto de você"

Bia se apressou para acalmar a garota.

"Não foi isso. É que eu sempre preciso de um tempo pra aceitar novatos na escola. Não quis que parecesse que não gosto de você. Eu só não te conheço. Mas a gente pode mudar isso. Se você fizer esse trabalho comigo, podemos virar amigas. E quem sabe até, melhores amigas"

Malva sorriu exageradamente e, combinando aquela expressão com seus olhos sem vida, a menina parecia realmente um fantasma no meio da chuva. "Sério? Você quer mesmo ser minha amiga?"

Bia se espantou com a gargalhada repentina de Malva. Pensou em diversas formas de zoar com a cara dela para as meninas do orfanato, porém lembrou que agora elas não eram mais amigas com antes.

"Claro que sim. Acho que vamos nos dar super bem." Completou a frase com um sorriso cínico. No fundo, dava para ver que as duas não tinham uma personalidade muito parecida.

Malva revelou algo que estava escondendo embaixo do uniforme. Era um caderno de capa preta com roxo, que logo chamou atenção de Bia. Eram suas cores favoritas.

"Você vai ter que escrever um juramento no meu caderno. Senão, nada feito"

Bia franziu a testa, não entendendo muito bem onde a colega queria chegar com aquilo. Pegou o caderno e a caneta das mãos de Malva e procurou onde deveria escrever. Todas as folhas estavam em branco. "Será que eu sou a primeira?", pensou com um pouco de vergonha.

"Escreve aí: juro oferecer minha amizade acima de qualquer coisa para a dona deste caderno. Depois você assina embaixo."

A caneta começou a tremer um pouco nas mãos da menina. Os pingos fracos de chuva pareciam não tocar no caderno. Bia começou a temer aquilo que estava prestes a fazer.

"Mas por que eu preciso fazer isso? A gente não pode simplesmente ser amigas?"

"E você acha que eu vou cair nessa? Já fui muito enganada por garotas como você, que fingem serem minhas amigas mas na verdade só querem me usar quando falta alguém pra fazer trabalho. Desde que cheguei nessa escola ninguém quis falar comigo. Como você quer que eu acredite que, de repente, você quis, sem mais nem menos, ser minha amiga, bem na hora de escolher par para uma trabalho? Preciso me certificar de que você está realmente disposta a ser minha escrav… digo, minha amiga."

O cabelo das duas já estava ensopado e, mesmo assim, nenhum pingo ousou cair no caderno. Bia escreveu o que tinha que escrever e assinou seu nome com uma caveirinha no final. Era sua marca registrada. O sinal do recreio tocou e as duas voltaram para a sala de aula. As meninas do orfanato estavam esperando na porta, preocupadas com o paradeiro da amiga.

"Relaxa gente, só fui aproveitar um pouco a chuva."

Agora que tinha uma nova amiga, Bia conseguia fingir que não sentia mais raiva de ninguém. O próximo passo era esfregar na cara das outras que conseguia ter uma amiga só sua. E por mais que Malva não parecesse ser tão legal assim, ao menos ela era bem esquisita. No final, se não valesse a pena, era só esquecer a novata num canto e deixar que outra pessoa se fingisse de trouxa assinando "aquele juramento estúpido".

Malva, por sua vez, continuava congelada em sua cadeira. Agora, ao invés de olhar friamente para a professora, como se fosse um robô, suas expressões se tornaram mais naturais e um sorriso curto descansava suavemente em sua boca. O sorriso de alguém que acabara de completar sua primeira missão. Na cabeça da garota, uma única sentença se repetia sem parar:

"Continue com o plano".


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Notas finais do capítulo

E aí, gostaram? Alguém aprovou as atitudes da Bia nesse capítulo? Será que ela tem razão de ficar com raiva das outras meninas ou só está querendo chamar atenção?



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