Pelos Olhos do Gavião escrita por Mayor Hundred


Capítulo 16
O Último Homem




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Joseph R. Lewis, amado filho.

Sob o epitáfio do seu falecido motorista, uma nota repousava. Uma plaquinha modesta, com a assinatura de Steve Rogers: “Para um homem corajoso, descanse em paz”. Era bonito, mas, para Clint, era também um lembrete eterno da promessa que falhou em cumprir.

Aliás, não somente com Joseph, mas com todos os outros seguranças que morreram e ele nem ao menos foi ao funeral. Sequer fez questão de decorar os nomes deles.

Agora sabia, mas era tarde demais.

Estava prestes a abaixar a cabeça e deixar escorrer as lágrimas que se acumulavam nos olhos quando ouviu alguém se aproximando. E então um calor familiar lhe encontrou. Não precisava se virar para saber quem era. Conhecia aquela presença.

— O Steve abraçou a mãe desse. Na verdade, abraçou a mãe, esposas e filhos de todos os seus seguranças. Ele ainda tá com o nariz torto e a boca rasgada, mas, você sabe, continua sendo o Capitão América. — Natasha deu um ou dois passos à frente, colocando-se ao lado de Clint.

— Bom, bom.

— Não, Clint, seu idiota. Nada bom. Era você quem deveria ter feito tudo isso. — Ele a encarou e a viu bonita, como sempre. Despida de maquiagem e com uma roupa estranhamente sutil.

— O Capitão América estava no funeral deles, Tasha. A lenda viva. Por que eu deveria estar aqui? — Achou que aquela conversa lhe dava justificativa o suficiente para desviar o olhar das lápides e encarar Romanoff. Era mais fácil assim.

— Uau, você tem olhos de gavião e não enxerga nada. Você era o John Wayne desses caras. — Clint foi quase capaz de sorrir com aquilo. Quase. Adorava os filmes do John Wayne. — Ser seu guarda-costas era mais disputado do que vestibular de medicina.

O Gavião abaixou a cabeça, e esqueceu a vergonha ao fluir as lágrimas. Era estranho, mas Natasha o abraçou. Bem rápido, mas igualmente firme. Um gesto que, mesmo com anos e anos de amizade, era raro.

— Quando é que você vai voltar pra casa, Clint?

Aquela pergunta que se fazia todos os dias, desde que fugiu: Quando é que voltarei para casa? Quando tudo voltará ao normal?

— Eu não sei — confessou, baixinho, como se fosse um segredo. — Bobbi estava com medo de mim. Eu estava com medo de mim mesmo. E ainda estou, na verdade. Eu quase matei alguém com as próprias mãos.

Natasha suspirou, olhou para cima e depois encarou os olhos dele com firmeza. Clinton pensou só um pouco sobre o seu drama, e o quão irrelevante e raso deveria soar aos ouvidos da Viúva. Uma ex-agente da KGB. Nascida e criada para matar.

Entretanto, Natasha Romanoff não parecia indiferente. Seus olhos mortos apertaram-se num sentimento que ia na contramão de sua natureza: compaixão.

— Você precisa de um café, não é? — Sabia o que café significava naquela conversa. Significava ajuda.

— Preciso — admitiu, pela primeira vez em muito tempo.

A Viúva Negra prezava pela privacidade.

Era por isso que dirigiram por quase uma hora até chegarem em um lugar estranho, nos limites da cidade de New York. Um prédio abandonado. Subiram as escadas e Clint estranhou ao adentrar no apartamento e notá-lo tão limpo e arrumado em contraste a todo o resto do prédio que estava abandonado e sujo.

Estava descalça e, por algum motivo, Barton reparou nos pés dela. Pés pequenos, de bailarina. Era engraçado, os pés dela eram uma miniatura de sua essência: quebrados, mas ocultos. Encarou as costas à mostra da ruiva e pôde perceber alguns calos, machucados, roxos e feridas que nunca se curariam por completo. Passou o dedo por uma das cicatrizes, e a fez tremer.

— Quantos ossos você já quebrou, Nat? — Ela não precisou virar o rosto, Clint sabia que ela estava sorrindo, dando alguns segundos de brilho nos seus olhos mortos.

— Todos, pelo menos duas vezes cada um.

Eles dois riram, mas Clint não sabia dizer se ela estava brincando. Não duvidaria se fosse verdade. Sentou-se no sofá com a xícara de café na mão e ficaram em silêncio por algum tempo.

— O seu café tem gosto de água suja — reclamou, e a fez sorrir.

— Todo café tem gosto de água suja. Eu sou russa, Clint; você prefere vodca? — Ele balançou a cabeça e bebeu mais. Ela achou graça.

— Você não pensa em férias? Ficar algumas semanas sem quebrar nenhum osso e só descansar? — Natasha não precisou abrir a boca para transparecer que não gostou da ideia. — Só de olhar pra você me dá vontade de dormir por uns cinco anos.

— Eu posso descansar e dormir quando estiver morta.

— Essa foi, literalmente, a coisa mais triste que eu já ouvi. — Clint sentiu sua língua formigar, mas imaginou que era apenas por conta da temperatura da sua bebida. — Boooobi quééeé... — De repente, sentiu a língua pesar dentro da boca. Olhou para Natasha, que, sem expressão, passou uma mecha do cabelo ruivo por trás da orelha.

— Sinto muito, Barton.

Sentia como se não estivesse mais preso a nada.

Como se a gravidade não mais fizesse efeito em seu corpo, e que podia voar por aí, como um verdadeiro gavião. Voar para longe, para perto. Para todo lugar. Mas então, no segundo seguinte, sentiu o seu corpo pesar. Aumentar o peso até cair, cair e cair. Numa escuridão infinita em espiral, até chegar no fundo e perceber que era macio.

Macio como uma cama.

Abriu os olhos devagar, ainda sentia o cheiro do café. Olhou para baixo e estava seminu, trajando apenas sua cueca. Imediatamente olhou para o lado e viu Natasha deitada, sem roupa, e chorando.

Suas lágrimas não transmitiam, necessariamente, tristeza, arrependimento ou culpa. Clint bem sabia.

Natasha costumava chorar quando fazia amor.

— Nat? — Sua língua ainda estava dormente, assim como parte do seu corpo, mas ela atendeu o seu chamado. — Não me diga que nós... nós fizemos? Por quê?

Por baixo das lágrimas, um sorriso apareceu.

— Fizemos o que era necessário, Clint. — Ela tocou o rosto dele, e as mãos dela eram ásperas, como ele ainda se lembrava. Costumava gostar do toque dela, mas não agora.

Mesmo com a dormência presente ainda em seu sistema, Barton levantou-se às pressas e cobriu-se com o cobertor. Deixou toda a nudez da Viúva à mostra, mas ela achou graça. Ele não.

— Eu... isso não está acontecendo.

Correu até o banheiro e encarou o próprio reflexo. Parecia ser o mesmo Clint Barton. Só que não era. Abriu a torneira, encheu as mãos com água e molhou o rosto. Se fosse um sonho, aquilo, supostamente, deveria o acordar. Mas não parecia ser o caso.

Colocou as mãos no rosto e não pôde mais ver nada. Sentiu as bochechas arderem com as lágrimas cortantes como facas. Sentiu vergonha. Sentiu-se o pior ser humano do mundo.

Não soube dizer por quanto tempo chorou, escondido de si mesmo, mas teve de largar o ato quando ouviu um barulho estranho vindo da banheira. Fungou o nariz e passou o antebraço no rosto, numa tentativa falha de se livrar da umidade, e então foi procurar o que era.

Um macaco-prego.

O animal pulou, o que causou medo em Clint e o fez correr para fora do banheiro. Quando finalmente parou a sua corrida, percebeu o símio em seu ombro e Romanoff rindo da situação.

— Você conheceu o Ampersand. — Ampersand era um nome estúpido para um macaco. Mas toda aquela situação era estúpida. Não podia sequer olhar direito para Natasha, mas ficou em silêncio, esperando por respostas. — Ele foi o único que sobreviveu, tirando você.

— Do que você tá falando? — Ela sorriu de novo, e ele já estava se irritando com a frequência em que os olhos dela deixavam seu aspecto morto de sempre.

— Abra a janela, bonitão.

Sem mais respostas, viu-se quase que obrigado a fazer o que lhe foi sugerido. Caminhou devagar, com medo do macaco ainda em seu ombro, e abriu a janela. O que viu lhe tirou o ar.

Viu-se encarando a Time Square e uma multidão de corpos caídos na rua. Carros batidos, e o asfalto cinza recolorido de vermelho. De sangue. Demorou algum tempo para perceber que, no chão, os corpos eram só de homens. E algumas mulheres tentavam atravessar aquele oceano de morte, enquanto outras lamentavam a morte dos seus entes queridos.

— Você foi o último que sobrou. — Uma terceira voz ecoou naquele quarto, e Clint virou para procurar a dona.

Janet van Dyne, de roupa íntima. Clinton Barton tampou os olhos com as mãos. Aquilo era duplamente errado. Triplamente. Ex-esposa de um colega vingador, ex-namorada de seu melhor amigo, e ele continuava casado.

Ouviu risadas pela sua atitude. Contou agora não duas, mas três. Abriu uma fresta entre os dedos e viu Jessica Drew.

— Olha como ele é fofo — a Mulher Aranha comentou.

— Foi só ele mesmo quem sobrou? — questionou a Vespa.

— Sim. Mas é o suficiente, não é? Ele continua sendo homem. — O comentário da Viúva o fez tampar novamente a visão.

Eu não estou aqui, isso não está acontecendo.

— É, mas... poderia ter sido outro. O Capitão, a genética do Steve Rogers deve ser ótima. — Clint já não sabia quem estava falando e também tinha quase certeza que não queria saber.

— Clint? — A voz soava como a de Jessica Drew, mas ele não tinha certeza. De quem quer que fosse, ela se aproximou. — Querido, você tem que escolher. Qual de nós vai ser a primeira?

Um silêncio que parecia música aos ouvidos do arqueiro. Ele não precisava ver para saber que todas as três o encaravam agora. A quietude foi cortada pelo macaco em seu ombro, e ele balançou a cabeça, ainda com os olhos tampados.

— Nenhuma. Eu sou casado, merda.

— Ele não se lembra? — Agora havia sido Janet, tinha quase certeza.

— Não. — Natasha, talvez?

— Clint, a Harpia... Barbara foi para a Austrália. Disse que ia nas férias que vocês tanto planejaram... só que sem você. — As três ficaram em silêncio, e, por um milagre, até o macaco. — Você nunca voltou, ela deve ter cansado de esperar...

Desta vez destampou os olhos. Olhou para as garotas vingadoras, que sorriam com tristeza para ele. Olhou para o macaco em seu ombro, que o encarava de volta com curiosidade. E então olhou para a janela, e reviu toda aquela carnificina.

Chorou.

Chorou como há muito tempo não chorava antes. Chorou como o seu pequeno filho costumava chorar. Seu pequeno filho. Se todos os homens estavam mortos... então ele...

— Eu preciso ir para a Austrália. — O anúncio trouxe confusão para as três, mas Barton estava decidido.

— Pro outro lado do mundo atrás de uma mulher enquanto o mundo está destruído? — Natasha criticou.

— Onde você vai arrumar transporte? — Agora tinha sido a vez da Vespa.

— Clint, e se ela não estiver lá? Se tiver... morrido? Ou se ela não te quiser mais?

O Gavião Arqueiro não era um super soldado. Não era um gênio. E não tinha a resposta para nenhuma dessas perguntas. Mas quando ele olhou de novo para o quarto, para o seu ombro, e através da janela, não viu nenhuma das outras coisas que tinha visto antes.

Viu apenas Bobbi. Apenas Bobbi e o pequeno Nick.

Sabia que tinha que os reencontrar.

Seus olhos doíam, assim como todo o seu corpo. Estava molhado, encharcado de suor. Sua visão parecia ser rasgada pela luz provinda da lâmpada no alto do quarto. Levantou-se devagar, gemendo a cada movimento e então olhou para baixo. Viu-se no sofá da sala do apartamento de Natasha. De roupas, felizmente.

Examinou ao redor com os olhos semicerrados, e viu Romanoff folheando um livro. Mas sabia que ela estava tão atenta a ele quanto estava à leitura. Não havia lágrimas nos olhos dela, e, felizmente, ela também estava vestida.

— Já sabe o que fazer? — Ela não tirou os olhos mortos do livro para perguntar.

— Sei. — O Gavião levantou-se. Aquela não era a situação mais normal do mundo, nem mesmo para Clint Barton ou Natasha Romanoff, mas ele não queria perder mais tempo.

— Nat? — Ela desviou o olhar da leitura para o encarar. — Obrigado.

Por um segundo inteiro, ou mais do que isso, ela sorriu e ele sorriu também. E souberam. Souberam novamente que nunca estariam sozinhos. Nunca sem o outro.


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Notas finais do capítulo

Esse capítulo é uma homenagem a Y: O Último Homem de Brian K. Vaughan e Pia Guerra.



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