Destinados escrita por Tsuki Dias


Capítulo 21
20 - Castelo de Areia




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Phay observava Kira com apreensão. A moça estava sentada em volta da fogueira com todos, apoiada em Mikki, pálida e muito fraca. Ele continuava a desenhar naquela placa grande de papel, mas não deixava de cuidar dela ao menor sinal. Todos estavam preocupados, na verdade. Quando que veriam a Kira tão mal? Phay não sabia se ela já tinha se machucado tão gravemente daquele jeito, mas esperava que se recuperasse logo. Naquele estado, não poderia nem tocar nela, de tão fraca que estava. Só Mikhil. Mikhil estava curando-a com seu toque.

E estava sentindo inveja dele.

— Estou bem, Phay. Não precisa fazer essa cara. — A voz de Kira saiu fraca, mas assustou a menina mesmo assim. Achara que estava dormindo. — Vou ficar boa logo.

— Machucou muito? — perguntou preocupada, aproximando-se cuidadosamente da moça. — Dói?

— Só quando rio. — Ela riu, levantando o braço com dificuldade. — Vem cá.

— Seja cuidadosa, Phay. — Mikhil advertiu quando a menina se ajeitou para deitar no colo de Kira.

Phay se afastou um momento e pensou, imaginando como faria para não machucar a moça. Com uma luz iluminando sua mente, invocou seu poder e se concentrou, fazendo com que seu corpo mudasse e ficasse menor. Em alguns momentos, a menina não mais existia, agora era uma linda gatinha com pequenos chifres curvados que ocupara seu lugar.

Agora não posso te machucar. — Sua voz ecoou sorridente. Kira sorriu e acolheu a gata no colo, acariciando o pelo macio com letargia.

— Está bem, Kira? — Leo perguntou.

— Sim, bem melhor. — Ela sorriu com os lábios brancos. — Logo estarei pronta para outra.

— Não vai ter outra, só para constar. — Mikhil advertiu autoritário. — Terminei, podem entrar. Phay, espero que goste do seu quarto. Depois te dou a chave de casa.

Tá! — A gata pulou suavemente do colo da moça e se transformou novamente na menina.

Lissa pegou a mão da fadinha, retirou sua chave do pescoço e girou-a no ar, produzindo um brilho discreto antes de fazê-las desaparecer. Leo ajudou o médico a acomodar Kira nos braços e seguiu as meninas. Mikhil estranhou a leveza do corpo em seu braço, Kira estava magra demais em pouco tempo. Não era um bom sinal. Não imaginaria o que fazer se ela…

— Não vou morrer, Mikki. — Ela suspirou dolorida. — Não pense mais nisso.

— Só estou te avaliando. Está leve demais.

— Eu era gorda antes? — Ela riu, aninhando-se nos braços dele. — Parte do meu peso extra estava naquele selo estúpido, agora você estranha minha leveza…

— E sua fraqueza. Tenho medo de não estar te curando direito.

— E está, estou melhor. Mas preciso dormir um pouco para completar a cura. — Ela pousou a cabeça sobre o peito dele e sorriu ao escutar seu coração. — E eu não durmo.

— Com o que você sonha, para não querer dormir?

— Morte. — E ela fechou os olhos, se aconchegando no peito dele. — Só morte…

–-**--

Faziam quantos dias que estavam caminhando? Três? Na verdade nem contou, aquela mata fechada atrapalhava sua orientação e seu senso de tempo. Naquele momento, pelo calor, sabia que estavam no alto do dia, mas a pouca claridade sugeria perto do fim da tarde. Estava ela, agora, caminhando a passos lentos com os companheiros, parando vezes demais para seu gosto. Tudo bem que estava fraca e debilitada por aquele golpe certeiro no coração, mas não podiam acelerar o passo e parar de tratá-la como alguma inválida? Se bem que eles pareciam mesmo cansados… Claro, ainda não haviam enfrentado uma floresta tropical antes. Devia ser mais condescendente, mas isso incomodava, de verdade.

Por algum motivo que só ele sabia, Mikhil pedira para alterarem a rota por alguns dias, levando-os para aquela direção tropical, cheia de mata fechada e plantas que estavam além do senso-comum. Estava quente até demais, suor escorria pela pele e a fadiga parecia ter resolvido se aliar aos jovens. Kira olhou para Mikhil e estranhou aquela visão. Como alguém adaptado ao frio estava se divertindo naquele calor infernal? Nem ela, que vivera a vida toda numa região mais quente, estava aguentando!

— Vamos parar um pouco. — Mikhil sugeriu, evitando olhar para o rosto carrancudo de Kira. — Está cansada, Phay?

— Não muito... — a menina respondeu ao farejar. — Esse lugar é diferente. O calor daqui é pesado… Até o ar é mais denso…

— Estamos numa parte tropical do Império. Logo vocês vão ver qual. — Ele sorriu enigmático.

— Como é que está aguentando esse calor, Mikki? — Lissa perguntou cansada, retirando as luvas que usava e diminuindo magicamente o comprimento das botas.

Pelo menos ela aceitara a magia.

— Esse calor cansa… Está pior que a vez na Amazônia. Lembra, Leo? Aquela viagem com seus pais. — Seus pais?

— Lembro. Você sofreu uma grave insolação, além de ter voltado com uma alergia monstruosa. — Ele riu ao limpar o suor. — Para onde está nos levando, Mikhil?

— Segredo. Mas adianto: eu acho que vocês merecem uma folga. — Ele sorriu.

Kira gemeu em pensamento e se levantou com cuidado, testando o equilíbrio antes de se pôr ereta sem ajuda do médico, que se prontificara a ampará-la. Não queria estragar a surpresa, muito menos decepcionar Mikhil, mas não queria prosseguir com aquela “folga”. Se havia algo que a apavorava mais que ser pega pela cúpula de Erischen, era o lugar para onde estavam indo.

— Não podemos tirar folga. — ela falou incerta, controlando os pensamentos traidores. — Digo, eu não posso. Há muito que…

— Primeiro sua saúde, depois a obrigação. — Mikhil a cortou, olhando-a com severidade, como seu médico, não como amante. — Dois dias, Kira. Só dois dias.

— Já gastamos uma semana com pausas. O tempo está acabando.

— Mas bem que poderíamos tirar essa folga. Erischen não vai se mover tão cedo. — Lissa comentou, emanando aquela aura de “não pergunte como sei disso”. — E você tem que se recuperar, está fraca. Assim é um alvo fácil.

A expressão de Mikhil mostrava superioridade, como se dissesse: “não falei? Não sou o único que nota”. Com um suspiro, ela concordou com os companheiros — sem economizar em seu desgosto — e acompanhou-os na caminhada, sendo levada pela mão por Phay, que assoviava animada ao coro dos pássaros daquela terra.

Andaram por uma hora mais ou menos antes da menina parar e analisar o ambiente com atenção. Aos poucos, os outros puderam sentir o que a fadinha já mensurava desde antes de chegarem àquele ponto. O ar se umedeceu de uma maneira diferente, adquirindo um gosto de maresia ao invés da chuva costumeira. E o som distante era inconfundível. Estavam perto da costa. Estavam indo à praia.

— Vamos ver o mar? — Phay perguntou animada, agarrando Mikhil pela manga. — Sério?

— Sim. E montarei uma casa de praia também.

A felicidade da menina não tinha tamanho. Sem demora, ela correu pela trilha, sendo seguida pelos outros, e só parou quando os diferentes tons de azul se fundiram no horizonte. A visão do mar encheu os olhos do grupo e Leo teve a impressão de estar olhando para as íris de Lissa. Tão bonito… Não parecia com nenhum oceano que já tenha visto — e sim, viajara bastante após seu incidente com Melissa.

— Vamos! Vamos! — Phay chamou animada, puxando a mão do primeiro que viu para descer a trilha íngreme que os separava da areia.

Leo e Mikhil riram, vendo as meninas descerem desajeitadamente a trilha pedregosa, enquanto as seguiam pela encosta. Kira acompanhou o passo dos companheiros lentamente, testando o lugar onde pisava com apreensão. Aquela parte… era como se estivesse descendo para a morte, como se fosse cair sobre sua cova ao final da trilha de cascalho. O que seus companheiros diriam sobre esse seu medo? O que diriam por não partilhar da animação que tinham? E o pior: o que diriam se soubessem que nunca havia estado naquele lugar, mas sentia medo? Ririam, com certeza.

— Kira? — Mikhil chamou carinhoso, estendendo-lhe a mão com gentileza. — Venha.

Olhar para aqueles olhos díspares lhe acalmava a alma, mas a visão da faixa arenosa que antecipava a imensidão azul a fez estremecer, ainda mais com a proximidade que estava da areia… Um degrau de terra… Somente um degrau a separava da fobia desenfreada. Céus! Nem mesmo a calorosa presença de Mikhil a consolava! Que tipo de horrores suas Sombras passaram numa paisagem como essa?

— Venha, Kira. Não deixarei nada de ruim te acontecer. — Ele abriu os braços e ofereceu-lhe seu peito. — Vou te proteger.

— Pode fazer esse medo ir embora? — Ela o abraçou, enterrando o rosto no pescoço dele e sentindo seus pés deixarem o solo. — Pode me deixar tranquila?

— Quando você quiser. — ele sussurrou, embalando-a carinhosamente. — Não se preocupe. Eu entendo seu temor.

— Não me deixe sofrer aqui… — ela pediu, controlando a voz e os tremores. — Por favor…

— Não vou, prometo. — Ele sorriu, movendo os dedos e levantando o rosto dela. — Olhe só para mim, ok? Vou baixá-la.

Seu coração, já acelerado, bateu ainda mais rápido quando sentiu ser baixada lentamente, ainda presa ao olhar díspar. Quando seus pés pousaram sobre algo firme, ela fechou os olhos com força e prendeu a respiração, esperando ser sugada pela areia ou explodida por alguma coisa. O riso abafado de Mikhil soou em seus ouvidos assustados e a obrigou a encará-lo carrancuda. Ele apontou para o chão com o olhar e ela se viu obrigada a segui-lo.

Linhas. Estava em pé sobre uma plataforma de linhas.

— Quem diria que eu conseguisse fazer algo assim, não? Treinei muito depois que te conheci (de novo). — Ele sorriu, afagando o rosto dela e beijando-o. — Treinei muito para conseguir te proteger.

— Você é um bobo, sabia?

— Se você diz…

— Ei! Vocês dois! Não é hora de namorar! — Lissa gritou da praia, fazendo uma onda de areia voar sobre o casal com sua magia. — Venham brincar com sua filha!

— Já vamos, Loki! Guarde suas travessuras para os Jotun! — Mikhil gritou de volta, limpando rapidamente os cabelos de uma Kira um pouco apavorada. — Vamos, Lady Sif?

— Por que está assumindo que você é o Thor? — Kira perguntou, engolindo em seco para tentar clarear a voz. — Não há nada lá, certo?

— Certo. Somente nós, um pouco de água salgada e terra granulada. E se quiser considerar alguns dos monstros... — Ele riu quando ela o golpeou. — Desculpa, desculpa!

— Olha! — Phay se aproximou correndo, carregando uma grande concha nas mãos. — Tá tudo bem, Kira? Você está com um cheiro estranho…

— Tudo, querida. Foi só um susto.

— Você não sabe nadar? É isso?

— Mais ou menos… — Ela riu sem graça, tocando a cabeça da menina. — Eu não gosto muito de praia, mas quero que se divirta muito por nós duas, ok?

— Tá! — E ela saiu correndo, após dar a concha para Kira.

— Tire os sapatos para brincar e não entre na água sozinha! — Kira advertiu quando a menina correu para a companhia de Leo e Lissa, que brincavam na água. — Me sinto mal…

— Por ter toda a atenção da Phay? Espero que sim. Estou com ciúmes. — Ele sorriu, puxando-a para beijar-lhe a cabeça. — Ah… comi areia…

— Idiota! — Ela repreendeu, acompanhando-o em seu passo, tomando cuidado para não sair da plataforma. — Aonde vai acessar a casa?

— Não vou acessar. — Ele sorriu para sua confusão, levando-a pela praia até uma baía rochosa. — Já tenho um lugar.

— Quantas casas você tem?

— Tenho uma casa e um esconderijo. — Ele confessou e abriu os braços, revelando a surpresa. — Contemple meu maravilhoso refúgio!

Kira olhou aquele amontoado de lenha de praia e tentou conter o arrepio. O dito refúgio era uma cabana de madeira suspensa em palafitas anguladas, sustentando-a bem alto, longe das águas revoltas e marés altas. Era composta por térreo e um sótão exposto, aparentemente seria fechado apenas pelo que parecia ser placas de vidro. No passado. Tudo no passado. Aquele lugar parecia ter encarado o primeiro dilúvio e se fincara naquelas pedras após o baixar das águas! Nem mesmo as paredes estavam intactas, o teto então… Metade da casa se fora embaixo das pedras.

Na verdade, sendo muito franca, Kira achava que ele juntara qualquer destroço de navios que encontrou na praia e fizera aquela coisa.

— Por que você tem uma… Hã… Casa na praia? — Kira perguntou chocada, analisando a construção. — Pelo visto, há muito que você não vem aqui.

— Consegui-a por impulso de sorte. Um horror não? Cobri alguns buracos com partes que achei pela praia. Talvez sejam de navios naufragados, não sei bem. — Ele gargalhou sonoro, adivinhando os pensamentos dela. — Queria um esconderijo para relaxar de vez em quando… Nunca me importei em arrumá-la até, agora. Vai ficar linda quando terminarmos.

— Você pediu só dois dias.

— Posso redesenhá-la em uma hora, você sabe. — Ele mostrou sua prancheta de desenho. — Se me ajudar será mais rápido.

— Mas… Vai precisar das mãos… — Um tremor passou pela moça, enquanto olhava inquietamente em volta. — Vai… precisar me soltar…

Mikhil a olhou longamente e sorriu carinhoso, levando as mãos ao rosto dela e acariciando-o um momento antes de baixar a cabeça e pousar seus lábios sobre os dela. Tentou passar-lhe calma e carinho, segurança em meio a todo um medo incompreendido. Ela tinha que superar. De alguma forma. Ela não podia deixar que as más lembranças de suas Sombras a paralisassem.

— Eu nunca vou te soltar, Kira. E eu não precisaria deixar de usar as mãos para fazer outra coisa. Não quando tenho você em meus braços. Mas eu peço que olhe para baixo.

Kira obedeceu, com os olhos marejados, e congelou… Seus pés estavam afundados na areia, assim como os dele, e não havia percebido. Desde quando estivera andando na praia com ele? Desde quando estivera com os pés no chão?

— Você esteve andando comigo esse tempo todo. — Ele revelou, parecendo ler os pensamentos dela. — Não aconteceu nada, viu? Estava tudo em sua cabeça. Não há perigo aqui e se tivesse, eu já teria o destruído para você.

— Sou tão patética assim? — Ela suspirou, sentindo os joelhos tremerem.

— Sente-se. — pediu, baixando-a sobre a areia e abrigando-a em seu abraço. — Vamos projetar a casa. Vai se sentir melhor se pensar em outra coisa.

Mikhil deu a prancheta para a moça e, fazendo-a dar-lhe as costas e recostar-se em seu peito, abraçou-a protetor, começando o trabalho. Manteve a conversa ativa, fazendo a moça pensar em qualquer coisa que não fosse sobre o medo que sentia. Manteve-a focada no projeto, mostrando a ela a mágica que fazia com as casas que possuía. Cada risco no papel se tornava real na construção em frente, cada janela era restaurada, cada porta e cada coluna. E a estratégia deu certo. Kira estava imersa naquele projeto, opinando fervorosamente como queria que fizesse.

Em quase meia-hora a casa estava pronta. Kira mal podia acreditar no trabalho que ajudara a fazer. A casinha agora parecia reluzir ao sol da tarde, com o cheiro de maresia se fundindo com o de madeira e verniz. Como estava envolta quase toda em pedra, era unânime que a frente da casa precisasse de visibilidade e iluminação, então ao invés de deixarem apenas aberto, os dois concordaram em revesti-la com painéis de vidro. De fora não se podia ver nada, mas por dentro… Teriam uma vista fantástica!

— Bom trabalho, Viyânia. — Mikhil sussurrou ao ouvido dela, antes de beijar-lhe o pescoço.

— Vi…? — Kira ruborizou lindamente aos olhos do médico. Valeu a pena esperar tanto tempo para dizer-lhe isso.

— Uau! Que casa linda! — Lissa comentou quando chegou perto do casal. — Mudou aquela?

— Não, essa é minha também. Meu pequeno refúgio. — ele informou, ajudando Kira a levantar-se. — Estaremos seguros aqui.

— E quando a maré subir? — Leo perguntou.

— Há um sistema de vazão ali, assim que o nível subir a água vai cair do outro lado da parede. — Ele apontou para a areia e para o paredão de pedra. — E ainda há um pequeno lapso, caso a vasão fique sobrecarregada. É só ativar aquela pedra ali, ao lado da porta.

— Realmente impressionante! — Lissa aprovou, indo em direção a casa. — Podemos entrar?

— À vontade. — Mikhil sorriu, puxando Kira para seus braços.

— Mas o que…? — Kira corou quando ele a tomou no colo e a levou até a casa. — Mikhil!

Ele apenas se limitou a rir e ignorar os comentários maldosos. Subiu o caminho de degraus, que esculpira em pedra e areia, e chegou à varanda com animação, virando-a um momento para observar o sol poente no horizonte molhado, antes de levá-la para dentro.

A casa era pequena e alta, então não havia muito que fazer além de integrar a maioria dos cômodos. A sala e cozinha foram fundidas, tendo somente um pequeno balcão de madeira para separá-las. O banheiro, todo em madeira e pedra, ficara sob a escada, que se apoiava diretamente à grande viga principal. E na parte de cima, assim como na sala, pufes e grandes almofadas faziam vez de móveis e cortinas de paredes. Como era o sótão, o teto era mais baixo, obrigando os garotos a curvarem um pouco as costas e a cabeça para transitar por ali, mas não era uma área de habitação, era mais um espaço para ficar isolado do que ter convívio social. Podendo até usar como quarto.

E era claro que Mikhil dera um jeito de isolar acusticamente a área sem perceberem.

— Ficou tão bonito… — Kira sussurrou maravilhada.

— Graças a você. Bom trabalho, Viyânia. — ele sussurrou em seu ouvido, antes de beijá-la e baixá-la ao chão. — Desculpem não montar quartos separados. A estrutura não permitiu.

— Vai ser legal dormir todo mundo junto! — Phay se animou, jogando-se sobre uma das almofadas. — Vamos nos divertir! Não vamos?

— Isso! — Mikhil se jogou ao lado dela e tacou-lhe uma almofada no rosto. — O que vamos comer hoje? Ideias?

— Camarão! — A menina se animou. — E peixe! Com limão!

— O que mais?

— Coisas leves, pois esse calor não é brincadeira. — Lissa comentou. — Teremos que sair e comprar?

— Abasteci essa geladeira com o que tinha na outra, mas se quiserem algo diferente…

— Podemos pescar? — Phay perguntou animada.

— Amanhã. — Kira decretou, forçando-se a se mover até a pequena cozinha. — Por enquanto vamos descansar hoje e comer alguma coisa.

— Tem razão, por isso você vai se sentar e brincar com a Phay enquanto eu preparo o jantar. — Ele a parou, puxando-a pela cintura, e obrigou-a a se sentar ao lado da fadinha. — Vocês são meus convidados aqui, então vão descansar. Ordens médicas!

Phay não precisou ouvir duas vezes. Ao menor sinal de discussão por parte de Kira, ela pulou no colo da moça e se empenhou em fazê-la rir. O que não demorou muito. Logo uma intensa guerra de almofadas se deu início e as risadas começaram a ecoar mais leves e divertidas. Até mesmo Mikhil se juntara à brincadeira assim que pudera sair de perto do fogão com segurança.

Depois de comer, o grupo se ajeitou ali mesmo na sala e adormeceu em meio às almofadas, todos juntos. O cansaço havia vencido finalmente e somente uma boa noite de sono para espantá-lo.

Em tese.

–-**--

Kira sentou-se em frente à janela de vidro do piso de cima e cruzou as pernas em posição de Lotus, posicionando as mãos em caixa sobre o colo. Com o último resquício de medo que restou, voltou seus olhos para o horizonte e travou-os ali, evitando encarar seu reflexo no vidro. Graças ao cansaço, pudera dormir por algumas horas junto do pessoal, antes de os sonhos sangrentos a despertarem. As horas de sono a revigoraram e lhe devolveram a força perdida, sem falar na cura rápida, mas por melhor que tivesse ficado ao acordar nos braços de Mikhil e Phay, precisava lidar com aquelas imagens sozinha, como sempre fazia todas as noites em que conseguia dormir.

Oh céus! Quantas coisas essa pobre alma não passou? Que todas passaram?

— A culpa é minha…? — perguntou para si mesma.

— Provavelmente não. — O sussurro de Lissa quase a assustou. — O que está fazendo?

— Esvaziando a mente. — respondeu com um sorriso fraco, observando a prima imitá-la ao sentar-se ao seu lado. — Te acordei?

— Não totalmente. Estabeleci essa hora para meditar. — ela mentiu com um sorriso.

— Já encontrou com seus mestres astrais?

— Não. Ainda… Não sei como fazer…

— Entendo. Precisa encontrá-los o quanto antes… — Kira suspirou e abriu um bolso dimensional, retirando dali um pequeno livro espelhado. — Acho que já está na hora de te dar isso.

— Esse grimório é diferente dos outros que me deu.

— Isso porque não é um grimório, é um Livro de Alma. Lhe dirá exatamente tudo o que você precisar saber. Vê o espelho e as densas páginas em branco? Sua missão agora é lê-lo. Boa sorte.

— Você já leu?

— Sim.

— E o que ele lhe mostrou?

— Que não estava pronta para lê-lo… — Kira meditou um momento, passando os dedos pelos olhos. — Sim… Não estava pronta, agora vejo isso. Fui apressada e o abri antes de compreender o que se passava, antes de saber de todos os detalhes relevantes. Ou melhor, antes de ter permissão para sabê-los. Agora, tenho pesadelos com mortes horrendas que provavelmente são minha culpa. Nessas horas eu agradeço por poder não-dormir com frequência. Me enfraquece, mas… Enfim.

— Você acha que eu estou pronta? — Lissa perguntou insegura.

— Está pronta para fazer a decisão: ler ou não ler. Você pode esperar se quiser, ele até prefere assim. Mas a escolha é sua. Ele lhe mostrará o que precisar.

— E se eu ficar igual a você?

— Igual a mim? Impossível. Você é completa. — Kira sorriu para a prima, sendo iluminada pelos raios da aurora. — Você é plena de corpo e alma. Então acredite quando digo que ninguém pode ficar como eu. Não pode e não deve.

— O que quer dizer?

— O que digo é que o problema que enfrento, você não vai enfrentar. Acredite.

Lissa tinha uma réplica para aquela afirmação, mas preferiu ficar calada. Voltou o olhar para a paisagem e suspirou, alisando o livro com ausência, sentindo o poder sutil que ele emanava. Céus, quanto tempo fazia que aceitava as orientações de Kira sem questionar? Parecia que milênios tinham se passado desde aquela época. Às vezes parecia que os momentos que vivera na casa de Leo, com ele e seus pais, não tinham passado de um sonho distante, um desejo infantil de uma garota que nunca conhecera os pais. Aquela Lissa era mais fácil de lidar, descomplicada e amável… O que acontecera com aquela garota?

–-**--

Apesar de a tensão de Kira ter diminuído muito, Mikhil ainda percebia seu receio em passear com todos pela praia e vila. Mesmo que dissessem que estariam em alerta com seus disfarces, por causa da baixa temporada (onde poderiam ser reconhecidos mesmo com a camada mágica de Lissa), ou ainda com a garantia de serem cuidadosos e imperceptíveis, e o ataque fatal dos olhos pidões de Phay, Kira se recusara sair com todos.

Depois que a maga descobriu como manter uma ilusão sobre o grupo, os passeios nas cidades foram parcialmente permitidos, como naquele dia, onde saíram para comer fora. Leo estava com a cômica aparência de um estranho pirata, a quem ele se referiu como Capitão Sparrow, claro que o médico estava longe de entender a referência, mas aceitou o personagem. Lissa se disfarçara como aprendiz bruxa viajante, com uma blusa sem manga leve e um saião surrado, bolsa de pano e um chapéu grande que a abrigasse do calor excessivo. Em Phay só foi ocultado seus chifres e escurecido o cabelo, já que não precisava muito para escondê-la, era só virar algum animal e desaparecer. Mikhil simplesmente tirou metade das roupas que geralmente usava e pediu para mudar a cor dos olhos. E não é que ele ficava bem de olhos escuros também?

Escolher os disfarces para o casal foi um desafio. Leo e Lissa debateram muito sobre possíveis “cosplays” para os dois, antes de Kira dar seu veredito e dizer que não ia sair da casa. E não precisava falar que o médico e a menina ficaram chateados com a recusa. Entretanto, Mikhil teve que engolir o orgulho e relevar o comportamento da moça, afinal, grandes fobias não mitigavam simplesmente.

O médico voltou à realidade quando a menina o puxou pela mão, apesar do pequeno tremor que ela apresentava. Ela o olhou com firmeza e apontou para uma barraca de praia, onde se vendia bijuterias artesanais. Phay murmurou algo sobre “um presente para ela” e não pôde recusar o pedido. Acompanhou a menina e esperou-a escolher o que iria levar. Estava feliz por ela começar a confiar nele, agora não mais tremia ou suava tão constantemente perto dele ou de Leo. E encarava isso como um grande avanço, pois não esperava tais reações em tão pouco tempo.

— Você acha que ela vai gostar? — Phay perguntou ao mostrar uma pulseira de conchas e pérolas. — Será que vai? Será?

— Ela vai adorar qualquer coisa que der a ela. — Ele sorriu, analisando a peça na mão da menina. — Mas essa é linda. Tem o tom dos seus olhos, querida. Ela vai gostar.

— Então posso levar? — ela sorriu largamente quando recebeu a afirmativa e o dinheiro da compra. E ele foi maior depois de ter o presente embrulhado nas mãos. — Ela vai gostar bastante!

A menina saltitou ao seu lado enquanto andavam de volta para a companhia dos “irmãos”. Mikhil olhava para ela e sorria inconscientemente, imaginando-a de mãos dadas com Kira, depois que tudo acabasse… Num futuro distante… Onde não mais precisassem lutar ou se esconder…

— O que acham? Interessados? — A voz desconhecida de um homem interrompeu suas reflexões quando se viu perto de Leo e Lissa. — Será um passeio inesquecível, garanto!

— Parece uma boa ideia mesmo… Ah! Chegaram em boa hora! — Lissa chamou animada, adiantando-se até ele. — Estávamos pensando em todos fazer um passeio diferente antes de irmos e, por sorte, este barqueiro faz esse tipo de serviço. O que acha? Ele fará um preço camarada se formos em cinco.

Mikhil observou o homem e ficou sério. Algo nele não cheirava bem, e não por seu odor de pescador ou de roupa molhada de sal passada a mais de semanas, mas havia algo que não o inspiraria a submeter sua família — sim, chagara ao ponto — a uma viagem de barco, por mais curta que fosse. Definitivamente não gostava da ideia.

— Tem certeza? Dgrov? — chamou o outro, vendo-o pensar um momento.

— Eu me interessei pela ideia, mas… Não vimos outras rotas ainda. Pediria um tempo para pensar.

— Vocês se preocupam demais! Vamos embora amanhã e não teremos aproveitado nada! — Lissa reclamou, voltando-se para Phay. — Iria andar de barco comigo, Phay? Ver o mar e os recifes de corais?

— Sério? Eu posso? — Os olhos da menina brilharam com a possibilidade, mas ela se conteve e voltou-se para o médico. Por mais medo que tivesse dele, pelo menos o respeitava como tutor. E isso era mais do que ele esperava. — Eu posso?

— Vamos pensar um pouco. — ele sentenciou, tocando o cabelo dela. — Pensaremos um pouco e depois o contataremos, tudo bem? Estará por aqui até quando?

— Se está pensando em encontrar outros, desista. É baixa temporada e não há uma alma viva que sairia por essas águas. Sou o único louco o suficiente para ainda trabalhar nessa época.

— Por quê? — A intuição de Mikhil apitou irritante como uma coceira que não pode ser alcançada.

— Férias. Quase ninguém trabalha nessas bandas por esses três dias. — O outro abanou a mão, como se tentasse diminuir o fato. — Preguiçosos.

— Tudo bem… Como eu disse: pensaremos a respeito e o contataremos. — Mikhil baixou a cabeça um momento e sinalizou para que fossem embora. — Tenha um bom dia.

— Farei minha última viagem do dia em duas horas. Depois irei para outro porto. Se quiserem o passeio, me encontrem no cais. — Ele retribuiu o gesto e se afastou.

— Não confio nele… — Leo comentou, recebendo um olhar irritado da maga. — Lys…

— Vamos logo perguntar para Kira, se é o que estão pensando. — Ela bufou irritada. — Só acho que devem cortar o cordão umbilical antes que morram na beira da saia dela.

— Você não sentiu nada errado naquele homem? — Leo perguntou indignado. — Diga a verdade!

— A verdade é que quero andar de barco. E vou. E falar que ele é errado não faz de vocês os mais certos desse hospício. — E ela saiu andando rápido, tentando fugir do irmão e suas reclamações.

— Rany! — Leopold a chamou, indo atrás dela o mais rápido possível.

Mikhil observou os dois se afastarem pela orla, discutindo alto em meio às pessoas. Voltou seu olhar para o mar e perdeu-se um momento em pensamentos. Algo não estava certo com aquela situação. Por que três dias de inatividade? O que acontecia com o mar a ponto de deixar aquele povo retido em terra firme por tanto tempo? O que aquele homem estava escondendo?

— Mikki…? — Phay chamou cautelosa ao pegar sua mão.

— Vamos voltar. Você deve querer vê-la, não?

A menina só assentiu e seguiu-o de volta a casa na praia, ainda sem soltar a grande mão. Ela também não gostara do homem, mas queria ver o mar de perto. Entretanto, não ia passar por cima das ordens do Mikki ou da Kira. Mesmo que magoasse a Lissa, não iria com ela sem a permissão deles. Não mesmo.

–-**--

Kira emergiu da água e arrastou-se pela areia com sofreguidão, enquanto era assistida pelas formosas formas aquáticas que repousavam nas pedras. Tossia desesperadamente, tentando expelir todo o sal que entrara em seus pulmões, enquanto ofegava em busca de ar. O olhar delas não demonstrava mais que severidade e um pouco de serenidade, como qualquer bom professor que desejava ensinar algo difícil e importante.

As procurara porque precisava lidar com aquela dor, aquele sentimento de medo que a paralisava e precisava aprender a emergir de si mesma para poder voar. Lidar com todo o vórtice caótico que embaralhava sua cabeça e coração, paralisando-a em suas ações e decisões a tomar. Se livrar daquilo… Precisava achar a raiz do problema e exterminá-la.

O tempo estava acabando.

Chega por hoje, Princesa… — a melodiosa voz das sereias ecoou em seus ouvidos. — não torture a sim mesma.

— Farei… uma pausa… — ela tossiu uma última vez e se obrigou a levantar, vacilante. — Estava tão perto…

Não se force a tanto. Tens tempo ainda. — elas a repreenderam.

— Não tanto quanto pensam. — Kira resmungou enquanto rumava cambaleante para a casa. — Volto em alguns minutos.

Seus pensamentos foram cortados quando adentrou a porta. Uma agitação incômoda ocorria na casa e não tinha certeza se era por causa de seu sumiço temporário. Deixara um bilhete, então não devia ser de todo isso. Quando se fez notar com um pigarro ruidoso, a discussão se desfez imediatamente. Leo e Lissa estavam em pé no meio do cômodo, com os rostos vermelhos e a antipatia pulsando. Mikhil estava à parte do casal, cuidando da menina antes de se empenhar em mediar a situação. E Phay…

— O que houve? — perguntou preocupada, recebendo um abraço apertado da fadinha. — Por que estão tão tensos? Aconteceu alguma coisa?

— Primeiro, onde você esteve? Ficamos preocupados. — Mikhil se aproximou, puxando uma manta de algum lugar e pousando-a nos ombros dela. A camisa branca que vestia estava encharcada e revelava tudo o que devia esconder. O que significava a perda do raciocínio do médico. — Segundo: por que está encharcada? E cheia de areia? Pensei que sua fobia…

— Meditação imersa com as sereias. — ela explicou simplesmente, recebendo um olhar surpreso de todos. — Foi a maneira mais rápida que achei para encerrar esse assunto. Em parte deu certo.

— Que bom. — Ele a abraçou um momento e se afastou sério. — Temos algo a contar.

— A Lys está grávida? — Kira perguntou, arrancando mais que surpresa.

— Seu senso de humor é colossal. — A maga esbravejou, incomodada com o pensamento de que a prima podia saber demais, pois em algum lugar de sua mente ela sabia que Kira não se referia aos homens da casa. — Estamos discutindo sobre o último passeio que faremos aqui.

— E precisam de todo esse escândalo? Assustaram até as gaivotas. — Kira riu um momento, deixando a piada se dissipar em meio à nuvem de tensão. — Ok, o que houve?

— Lys quer andar de barco. E o único barqueiro disponível por essas bandas, não é confiável. — Mikhil respondeu sério.

— Foi unânime? — Kira perguntou, passando o olhar por todos. — Lys?

— Não acho que julgar alguém só pela aparência seja certo… — ela começou incerta. — E ele não parecia nenhum Dave Jones, pronto para nos jogar ao Kraken.

— Válido. — Kira decretou ao se aproximar da prima e passar a mão sobre os olhos dela. — E essa é sua opinião real, não há nenhuma influência mágica.

— É claro que não! Já aprendi a me proteger contra isso.

— Se quer ir, não vou impedi-la… Não vou impedir ninguém aqui. Só me desculpem não ir junto. — ela decretou simplesmente, rumando para a cozinha. — Não se preocupem comigo. Só comerei algo e voltarei para minha meditação…

— Simples assim? — Lissa bufou exasperada. — Realmente detesto isso.

— Esperava o que, Lys? Que os obrigasse a ficar trancados aqui por que eu tenho pavor de praia? Quando foi que impedi alguém de fazer o que achava certo, mesmo quando sabia que seria perigoso? Quer ir se divertir, vá. Só tome cuidado. Simples assim.

— Simples assim. — Lissa repetiu em concordância. — Se importa se eu levar a Phay junto?

— Se ela quiser ir junto e você prometer que não vai deixá-la se machucar, não vejo objeção. Mikhil?

— Eu não gosto disso.

— Eu sei, me desculpe. Mas estou lavando minhas mãos nesse caso.

Mikhil pensou um momento e suspirou cansado, evitando olhar para qualquer um que não fosse Kira ou a menina. De fato, o homem não parecia um psicopata, mas quando naquela aventura acertaram nos julgamentos? Podia contar num dedo de uma mão.

— Teria que ir junto, então. — Ele cedeu, arrancando um meio sorriso da menina.

— E eu também, para dar apoio pra Lys… — Leo decretou a contragosto. — Você ficaria bem sozinha, aqui, na praia?

— Até voltarem, terei terminado a meditação. Posso fazer um jantar especial se quiserem. — Kira informou com um suspiro. — Desculpem não ir junto. Mas eu realmente não posso.

— Tudo bem, entendemos. — Phay a abraçou e deu-lhe o presente que escolhera com Mikhil. — A gente espera que goste!

Kira aceitou o presente com os olhos marejados. Pegou o pequeno embrulho e abriu-o com cuidado, sentindo os olhos brilharem com a beleza e a simplicidade da pulseira que havia ali. Sentiu-se extremamente comovida com a emoção que aquela peça carregava. Levou-a ao coração um momento antes de exibir o pulso e pedir que ela a colocasse. A menina sorriu e fez o que foi sugerido, pegou a mão dela e deslizou a pulseira de conchas e pérolas amareladas pelo pulso da moça.

E a peça, por mais simples que fosse, parecia reluzir como a mais cara joia na pele da princesa.

— Obrigada, querida. — Kira se ajoelhou e abraçou Phay com força. — Vou usar sempre. Agora se arrume para passear com a Lys e os meninos. A verei mais tarde com camarões para o jantar!

— Sim! — Phay se animou e correu pela casa, levando Lissa pela mão.

Kira suspirou e sorriu tristemente para os garotos, que a olhavam com certa dúvida. Voltou-se para a cozinha e se empenhou em preparar algo para comer, tentando ignorar a presença maciça de Mikhil que ocupava praticamente todo o espaço em torno dela, mesmo que ele só estivesse encostado à parede perto do balcão de madeira. Ele somente a olhava, mas parecia despi-la daquele jeito que só ele conseguia.

— Eu não te proibi de me tocar, se é isso que está o impedindo de chegar mais perto. — ela comentou enquanto comia. — Ou está zangado por eu não vetar o passeio?

— Você é incapaz de fazer isso, mesmo que fosse para sua segurança. Só estou… Preocupado.

— Tem se tornado uma marca sua ultimamente. — Ela sorriu de olhar baixo. — Vocês… Vocês não podem depender de mim para sempre. Mesmo…

— Mesmo com tudo que você faz para deixar a vida deles mais fácil? — ele perguntou sério. — Ou para nos deixar felizes e satisfeitos? Motivados? É… triste, vê-la fazer tanto e não poder ajudar.

— Não é nem metade do que deveria estar fazendo agora. — Ela suspirou, colocando metade de seu sanduíche de lado, e se aproximou dele, tomando seu rosto nas mãos. — E não é tão importante quanto o que você faz por nós todos os dias.

— Sua baixa autoestima me irrita, de verdade. — Ele baixou o rosto e a beijou levemente. — Preciso pedir para as sereias curarem isso em você.

— Acredite quando digo que não vai me querer orgulhosa. — Ela pontuou, voltando ao seu lanche. — Irão ver os recifes? De que parte?

— Nordeste. Eu acho. Espero que não leve mais que duas horas.

— Sabe nadar?

— O bastante.

— Então ficará tudo bem. — Ela sorriu. — Meu azar fatalista ficará comigo em terra firme.

— Terei mesmo que ter uma conversa com essas sereias. — ele comentou com um bufar, recebendo um pequeno projétil de pano no peito. — Vai mesmo me desafiar?

— Saque suas armas. — Ela riu soberba, cercando-o ameaçadora. — Tem vinte minutos para me derrubar, Doutor.

— Vamos para fora, Princesa. — A porta se abriu de repente e ele a agarrou pela cintura, jogando-a sobre o ombro. — Eu farei em cinco.

–-**--

Kira emergiu novamente da água, com mais facilidade e delicadeza que antes. Esta última sessão aliviara sua mente e a desobstruíra de maneira quase completa. Claro que as brincadeiras que fizera antes com Mikhil a ajudaram a relaxar, mas não podia deixar de dar crédito às sereias. Boa parte dos seus medos e deveres estava clara em sua mente e, apesar de preocupada com o tempo, estava mais calma e objetiva. As instruções que recebera em algum momento imemoriável se mostraram nítidas e, o que só podia deduzir, estavam concretas. E seu alívio por saber que tudo que fizera até ali não foi em vão…

Foi bem melhor agora, princesa. — Elas a elogiaram, nadando ao seu redor como luzes na água. — Devia se abrir mais para o carinho daquele homem.

— Sabem que não posso me doar totalmente. — Kira nadou até uma pedra e sentou-se nela. — E queria que ele também não fizesse antes de tudo acabar…

Não pode impedi-lo de viver os próprios sentimentos. Ele faz certo de amá-la enquanto pode. Você é quem não tem essa visão ainda.

— Isso tocou na alma. — Kira suspirou, levantando o olhar para os sereianos que se divertiam ao longe. — Sempre achei que vocês eram proibidos de vir a este plano.

Evitamos os momentos de maior transição das águas, como as temporadas de pesca, mas não é difícil nos achar. É só procurar baías mais desertas e limpas. Nos expomos nesses três dias por que os marinheiros não ousam sair pelo oceano.

— Por quê?

Por causa da ilha. — A sereia recebeu com confusão o desentendimento da moça. — Todos os anos uma ilha aparece a nordeste dos recifes, trazendo redemoinhos e correntes destrutivas. Quem se arrisca ali, nunca mais volta.

— Você disse recifes a nordeste? — Kira pulou sobre seus pés em choque, assustando as companheiras da que falava. — O que há na ilha?

–-**--

Mikki!

Mikhil olhou para trás e parou sua entrada no barco por um momento. Algo em sua mente o chamara desesperadamente e pelo cristal em seu peito, ouvira a voz de Kira. Esperara alguns segundos para receber a mensagem, mas deixou de lado, atribuindo isso para sua imaginação. Com um suspiro, sem a linda visão de Kira correndo para encontrá-los, ele entrou de vez no barco e deu o aval para partirem.

A pequena escuna deslizou pelas águas escuras do cais e se dirigiu ao alto mar, sendo observada pelos aldeões horrorizados pela audácia do grupo. Tinha alguma coisa errada.

Mikki! — ele ouviu novamente em sua cabeça e voltou-se para a terra, onde só havia o cais e os desconhecidos. Sua preocupação aumentou a cada segundo enquanto assistia a terra se distanciar. A escuna não tinha muitos lugares reservados para se esconder e contatar Kira (para tirar tais alucinações da cabeça), então, enquanto não podia se sair do olhar de todos e ouvir a voz dela, não se sentiria tranquilo.

Para falar a verdade, nunca estava tranquilo se tratando daquela mulher.

–-**--

Kira chegou descalça e descabelada ao cais — sem ao menos ter tido tempo de colocar sua roupa de guerra — tarde demais para parar aquele passeio. O desespero por ver seus companheiros embarcados no cruzeiro da morte a sacudiu de ponta a ponta. Olhou em volta com angústia, continuando a apertar seu cristal e chamando por Mikhil, enquanto tentava encontrar uma saída para aquela situação. O barco já ia longe, quase no fim da baía, passando o penhasco do carvalho…

Eis que seria seu último tiro e teria que voar para dá-lo.

Correu o máximo que suas pernas podiam, entrando e saindo dos parcos portais que ainda podia fazer, e se engajou na caçada desesperada ao barco. Gritou o mais alto que pôde e continuou correndo em paralelo ao rápido passo em nós do barco. Mikhil estava na popa, olhando preocupado em volta, de certo imaginando que seus gritos eram alucinações.

Maldito Woys!

— Mikki! — chamou novamente, ganhando um pouco de atenção. — Mikki!

A cabeça do médico girou ávida e fixou-se nela. Um certo alívio a abrandou por dentro, mas a fez correr mais rápido que antes. Passou por pedras ásperas e plantas espinhosas, saltou por tocas de animais e insetos, não se importando com a integridade de sua pele. Viu, pelo canto dos olhos, Mikhil acompanhar sua corrida, preocupado e impotente, sem saber como a traria para dentro.

— Mande-o diminuir! — Mikhil gritou para Lissa, que se apressou a ir falar com o barqueiro.

— O que ela está fazendo? — Leo perguntou alarmado, observando o esforço da prima. — Por que ela quer chegar lá em cima?

— Ela está tentando nos alcançar! — Mikhil concebeu com temor. — Que droga! Ela vai pular! Não pule, Kira, não pule, não pule…

O médico viu Kira sumir de vista no momento em que o barco passou pelo penhasco. Correu pelo deque, tentando encontrar algum ângulo bom o bastante para ver onde ela estava. E aquele brilho no alto do penhasco o empalideceu. Voltou seu olhar díspar para o céu e se surpreendeu ao vê-la lá, pairando no ar antes de começar a cair rápido.

— Rany! — chamou rápido, preparando-se para ser arremessado pela magia da maga.

O que não demorou muito para acontecer. Em momentos já estava voando pelo ar, como um míssil fatal em direção ao alvo. Encontrou-a no ar com violência, mas sentiu-se aliviado por ela abraçá-lo com força e aninhar-se em seus braços. Ouviu a voz de Leo quando sentiu a água salgada fria os envolver, nadou com ela até a superfície e se agarrou à corrente que Leo lançara. Não percebeu quando os puxaram para dentro, só se preocupava com a garota em seus braços, exausta e agitada.

— Os pés dela… — ouviu Lissa comentar horrorizada.

— Vol… volte… Kraken… — ela balbuciou antes de desmaiar.

— Kira, responda. — Mikhil pediu preocupado, notando o começo de convulsão. — Preciso de um apoio! Rápido!

— Tem uma sala abaixo. — O capitão informou quando se aproximou. — Venha.

— Rany, prepare algumas coisas, por favor. — pediu alarmado, levando a moça para baixo, depois de realizar os primeiros-socorros.

Kira começara a convulsionar em seus braços, antes mesmo de terminar de descer as escadas para o piso inferior. Pousou-a na cama dura e começou a cuidar dela, prestando atenção aos menores sinais de infecção ou envenenamento. Seus pés estavam horríveis, sangravam mais que deviam e estavam sujos demais para uma boa avaliação. Céus! Ela devia ter corrido todo o caminho sem se preocupar onde pisava. Que tipo de urgência ela tinha para se sacrificar tanto?

— Fica comigo, Kira. — ele pedia enquanto a tratava. — Vamos…

Em dado momento, para felicidade do grupo, Kira voltou a si tomando fôlego. Ela levantou-se tão rápido e o abraçou desesperada. Mikhil não se reprimiu e a abraçou de volta, consolando-a em seu desespero e dor. Ela arquejava sôfrega, tremendo pelo choque térmico. Naquele jeito, mesmo que tentasse articular, ela não conseguia dizer a tal coisa importante que precisava.

— Tudo bem. Tudo bem. Já passou, respire. — Ele a embalou, passando as mãos para esquentá-la. — Phay, por favor, ache alguma manta.

— Não… tem que voltar… ilha fantasma… — ela balbuciou sôfrega, agarrando-o pela roupa. — Temos que voltar agora…

— Façam essa banheira voltar ao cais! — Mikhil ordenou sério, vendo os irmãos subirem as escadas para falar com o capitão. — Vamos voltar, Kira, já vamos voltar.

— Assim que soube pelas sereias, corri o mais rápido que pude… — Kira tossiu cansada, sendo embrulhada pela manta puída que a menina achara. — Corri…

— Já vamos voltar… Descanse.

— Você não sabe, Mikhil. Essa ilha fantasma traz a morte! Redemoinhos, o Kraken… Ninguém nunca mais foi visto! É por isso que os aldeões não pescam por três dias. É a ilha da morte que tanto ouvimos falar.

— Mikki… — Phay chamou assustada, se aproximando dos dois. — O que faremos?

Antes que o médico pudesse responder, um solavanco atingiu o barco, mandando todos contra as laterais. Mikhil tomou as duas nos braços e as protegeu quando quase se chocaram contra as paredes. Com ajuda de suas linhas, conseguiu firmar-se e ajudá-las a se abrigar, enquanto o violento balançar continuava.

— Fiquem aqui, já volto para buscar vocês. — ele pediu e se lançou para as escadas.

— Vai ficar tudo bem, Phay. — Kira a abraçou, protegendo-a dos solavancos.

— Não vai não! — A menina chorou assustada, agarrando-se a ela com desespero.

A parede oposta a que estavam chocou-se com alguma coisa e abriu uma fissura por onde a água passara. A cada minuto de exposição à pressão do mar, a abertura se alargava e inundava o compartimento onde estavam. Kira ordenou que Phay se transformasse em algo com garras e a fez subir sozinha, com a desculpa que tentaria amenizar o estrago. A menina obedeceu, prometendo trazer Mikhil de volta para tirá-la dali.

Phay se transformou num lince de garras curvas e correu pela água e pela madeira, subindo para o convés em busca dos companheiros. Kira firmou-se em seus pés doloridos e forçou-se a observar a paisagem que a fissura transbordada revelava. E não eram somente em pedras que seus medos se transformaram, a visão de um redemoinho que abrigava o fim de um tentáculo quase roubou sua sanidade.

Ainda bem que a dor lhe deu coragem.

Subiu as escadas o mais rápido que podia, sendo jogada de um lado a outro pela violência do mar, e se viu no convés quase inundado. Além de terem sido pegos por uma corrente violenta que os jogara contra uma cadeia de rochas, foram apanhados pelo vórtice do redemoinho, que disputava em força com o outro que girava no sentido oposto. E claro, como não podia deixar de ser, estava chovendo. Como adorava sua sorte fatalista!

Correu desajeitada até a proa e fixou-se na amura para observar melhor o alvo que teria que caçar. Estava submerso, mas seus olhos treinados viam claramente a coloração alaranjada que se destacava na água escura. Os numerosos tentáculos se estendiam pela água e se chocavam com o barco, quebrando-o pouco a pouco de baixo para cima. Não podia deixar que naufragassem. Invocou o resquício de poder que ainda havia nela e procurou Zeela em sua forma extensa. Sentiu-a se decompor em sua dimensão e se reagrupar em uma nova forma, numa haste com três pontas, que sua guerreira usaria para acabar com aquele monstro.

E quando sua companheira começara a se materializar em sua mão, a dor em sua cabeça fez tudo escurecer.

–-**--

Mikhil ainda não tivera a chance de descer para ver Kira. Precisara se juntar a Leo e Lissa para ajudarem o patife do barqueiro a estabilizar o barco, para poderem sair daquela situação com vida. Antes que pudesse fazer o possível para estabilizar aquela banheira, atacara aquele homem com fúria, quando notou que ele sabia exatamente o que estava acontecendo. Por causa da entrada de Phay, não pudera castigá-lo o suficiente, então simplesmente o soltou após arrancar-lhe sangue e se pôs a manejar as velas com suas linhas, enquanto Lissa drenava a água que entrava e Leo executava as outras ordens do barqueiro.

Queria logo descer para ver Kira, mas por enquanto estava atado. Aqueles pés… Não imaginava a dor que devia sentir ao usá-los… Tinha que vê-la logo…

Um tridente prateado lhe chamou a atenção quando rolou da proa e parou a seus pés. Aquele tipo de coisa nunca seria posse de um cara como aquele, a menos que roubasse. Prendeu suas linhas ao mastro e pegou a pesada arma com ansiedade, reconhecendo parcialmente a energia que emanava. Era Zeela. A arma de Kira.

O pespontar de um braço pálido o assustou e ele se lançou a proa, dando de cara com Kira desfalecida, meio presa entre os balaústres da amura, com um rastro de sangue manchando a cabeleira prateada que parecia mais escura a cada vez.

Lançou-se a ela e a acolheu nos braços, tentando acordá-la o mais rápido possível.

— Mikki! — A voz de Phay ecoou pela tempestade. Estava presa nos braços de Lissa, apontando desesperada para o ar.

E então, quando voltou sua atenção para o perigo que vinha da água. O barco afundou.


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