Destinados escrita por Tsuki Dias


Capítulo 20
19 - Anel Passado


Notas iniciais do capítulo

Perdão Perdão! Era para ter postado no meu aniversário (12/10) mas o agendamento não deu certo! Sorry!
Fiquem com o desfecho do capitulo anterior!
(obrigada novamente à Cora pela betagem ♥ )



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Kira e Taiga se esgueiraram pela porta do jardim e adentraram o castelo no maior silêncio que podiam. O treinamento que se engajaram no último mês tomou-lhes todo o tempo, tanto que não tiveram como contatar aquela que substituíra Kira no palácio. E estavam preocupadas. Ninguém podia imaginar o tamanho do que sentiam com aquele hiato que se formara. Aquela que estava lá era um problema, um mal necessário. Sua personalidade não era das melhores e às vezes parecia que ela odiava Kira, motivo mais que suficiente para Taiga implorar o fim daquela cópia.

Entretanto, Kira sentia que não devia dispensá-la. Ainda.

Passaram pelos guardas (cúmplices de suas escapadas), adentraram sorrateiramente o castelo e se assustaram com a movimentação dos servos e criados. Aparentemente seu avô acolhera alguma visita importante e isso significava que não podiam se demorar nos corredores, ele não gostava que fossem vistas. Às vezes achava que nem ele mesmo gostava de vê-la… Olhá-la todo dia deveria ser doloroso para ele… Quantas lembranças ela não despertava com sua aparência?

— Vem logo Kira. Sabe que não pode ficar à vista. — Taiga repreendeu, puxando-a pelo cotovelo para o quarto, retirando a máscara que se obrigava usar naquele lugar. — Rosa? Está aqui?

— Oh, são vocês. — A outra comentou desgostosa, levantando-se da penteadeira, onde escovava a longa cabeleira prateada. — Poderiam ter demorado mais.

— Sempre tão agradável… — Taiga bufou, se afastando da outra. — Fique longe! Não quero me fundir a você.

— Pensei que gatos gostassem de se roçar em seus donos. — ela riu ao cruzar os braços, mudando seu alvo para Kira. — espero que tenha se divertido bastante, pois vai ter muito para fazer aqui.

— Agradeço o trabalho. — Kira sorriu, estendendo a mão. — Só me mostre o que viu, não quero te tirar os bons momentos.

Rosa sorriu daquele jeito cínico (justo aquele que irritava Taiga), e tocou a mão de Kira, mostrando para ela tudo que acontecera no último mês. As coisas corriqueiras do dia-a-dia foram logo descartadas, só se ateve o bastante para se certificar de que ela não se comportara mal em público. Mas algo lhe chamou atenção… Uma noite numa taberna, bebida abundante, dança… Um homem. Sim. Rosa escapara à noite e foi se divertir, lá ela bebeu e dançou, conheceu várias pessoas e se encantou com um homem. Não era bonito, pelo contrário, tinha cicatrizes marcando seu rosto. Conversaram por um bom tempo — ele alimentando a ambição da moça com suas promessas de riqueza e poder, enquanto ela agraciava o ego dele com elogios e interesses — ele a levou embora, até perto do castelo…

Ela perdeu sua castidade ali mesmo naquele beco. E não se arrependia disso.

E a dor que ela sentiu naquele momento, passou para Kira amplificada.

— Kira! — Taiga a amparou quando vacilou dolorida. — O que você viu?

— Estou bem. Estou bem. — Kira ofegou, segurando o ventre. Nunca mais reclamaria das cólicas. — Foi só uma sensação que não esperava.

— Sempre pegando a dor das outras. — Rosa suspirou.

— Parece que achou alguém à altura, hein? — Kira riu, ocultando suas más impressões.

— Não é? O cara é idiota, narcisista e acha que pode conquistar o mundo. — Rosa riu desdenhosa e suspirou logo depois, deixando transpassar algum sentimento. — Ele é um lorde, já fez negócios com o vovô e está hospedado aqui. Não… Não cruze com ele, ok? Não quero que ele se apaixone por você.

— Ele sabe?

— Que sou uma cópia, ou sou uma princesa? — Ela riu amarga. — Fui apresentada formalmente, por isso não pude falar com ele anda… Fique longe dele.

— Com prazer. — Kira consentiu ao migrar para o banheiro, almejando um pouco de frescor para seu corpo. Como sempre, Rosa deixara a água esfriar... — Sabe que já tenho alguém de quem gostar.

— Ótimo. Ah! Vovô queria nos ver antes de dormir. — Rosa anunciou. — Posso ir se quiser.

— Vou vê-lo, não se preocupe. — Kira sorriu, rumando para a porta. — Estou com saudade dele.

— Prepararei o banho, então. Já que essa não se importa se você ficar doente… — Taiga rosnou quando Rosa gracejou.

Kira riu ao sair, deixando as duas com seus atritos, e rumou pelos corredores cantarolando baixinho, enquanto cumprimentava aqueles que por ela passavam. Os servos a reverenciavam, desejando-lhe boa noite, enquanto os de cargos mais altos baixavam a cabeça e se afastavam silenciosos. Kira não tinha contato com esses, então apenas se limitava a retribuir o gesto e continuar seu caminho, sem notar a mágica agindo sobre suas memórias.

Sim, se qualquer um que não conhecia a visse apenas uma vez, esqueceria logo de sua aparência. E quando soube disso, perdera um pouco a esperança de reencontrar seu benfeitor…

— Boa noite, Alteza. — Ouviu ao lado e vislumbrou-o momentaneamente, sem se atentar direito à fisionomia do lorde.

— Boa noite, senhor. — ela cumprimentou cordial e distantemente.

— Está bonita.

— Ah… Obrigada… — Ela se afastou, ainda sem atentar-se a ele. — Desculpe, mas o imperador está me esperando…

— Fiz algo errado, Alteza? Você me evitou o dia todo. — ele se aproximou devagar, tentando acuá-la.

— Desculpe, mas preciso ir. Boa noite.

Kira fez uma rápida reverência e se afastou rapidamente, tentando não ser rude ao fugir daquele homem. O estranho devia ser o tal lorde que tivera a primeira vez de Rosa, e como prometera, se afastaria dele. Não entraria nos negócios de Rosa, não a queria como inimiga. Dependia dela para conseguir realizar seus planos e esperava que pudesse contar com ela por bastante tempo. Pelo que vira em suas memórias, um compromisso com ele era almejado, então não seria sábio atrapalhar isso.

— Olhe para mim, Alteza! — Ele rugiu, pegando-a pelo braço e obrigando-a a olhá-lo.

O primeiro pensamento de Kira foi mandá-lo para o inferno, mas no momento em que seus olhos cruzaram os dele, um arrepio percorreu sua pele e a paralisou no lugar, sentindo seus olhos lacrimejarem e seu corpo amolecer. Sua cabeça estava se elevando e levando consigo o controle. As imagens da noite que Rosa tivera brotaram nitidamente em sua mente e o calor a incapacitou. Mas a imagem que a inundava não era a de Rosa com esse cara… Era ela, Kira, com aquele que se esquecera do nome.

Olhos diferentes… Qual era a cor dos olhos dele?

Um braço a amparou e a levou pelo corredor, passando-a por uma porta e deitando-a sobre uma cama. Estava tão tonta que não sentia muita coisa em sua pele, seus olhos estavam embaçados e sua respiração rasa. Estava sem forças para reagir. E sabia o que viria depois, não pela sombra que se ergueu sobre ela ou pelas mãos que começaram a tocá-la, mas pelo instinto e as lembranças de Rosa.

— Ta… Taiga… — sussurrou fracamente, sentindo seu corpo ser manipulado. — Taiga…

— É Heijo, Alteza. Lembre-se do nome do seu noivo. — ele sussurrou, envolvendo o pescoço dela com a mão esquerda, apertando delicadamente. — Aceite isso como nosso selo de compromisso.

Ta… Taiga… — Kira chamou mais alto, sentindo o toque em suas pernas. — Não… não…

Um grito mudo escapou de seus lábios, que foram tomados pelo homem. Ele não se mexeu depois disso, só se retirou e murmurou algumas palavras ininteligíveis, enquanto se afastava chocado. A porta foi arrombada com violência e a sombra daquele homem foi arrancada de seu campo de visão. A voz de Taiga foi ouvida e seu toque foi sentido. Uma confusão se instalou no local enquanto era acolhida pela tigresa.

E Kira chorou.

–-**--

O choque e a indignação ainda não tinham se dissipado, mesmo depois de terem aceitado ir com Lorde Woys para sua morada, que não era nada mais que um humilde palacete com quase quarenta cômodos. Estavam todos reunidos na sala de chá naquele momento, olhando abobalhados para uma Kira sentada em uma cadeira com braços de mogno, encolhida e muito contrariada, enquanto seu “noivo” se preparava para encontrá-los logo mais, após se limpar e vestir algo mais apropriado.

A revelação do compromisso de Kira pegara todos de surpresa, inclusive os primos, que tinham chegado a tempo de ouvi-la, quando correram para ajudar na contenda. E ninguém pôde recusar o convite de pernoitarem ali, mesmo Kira insistindo para irem embora logo.

E não precisava dizer que era Mikhil o menos satisfeito com a situação.

— Não vai dizer nada? — Lissa perguntou incomodada. — Essa história de noivo é verdade?

Ela gemeu desgostosa, enterrando o rosto nas mãos e bagunçando os cabelos.

— Kira. — Leo chamou preocupado, percebendo a tensão no rosto do médico, que se mantinha quieto. — Kira, responda.

Kira suspirou derrotada e levantou o olhar, encontrando com o verde e vermelho do médico. Ele não parecia melhor do que ela se sentia no momento, e estava se odiando por fazê-lo se sentir daquele jeito.

— Heijo Woys é um dos lordes que controlam as Zonas, melhor dizendo: os reinos. Pelo que ouvi, ele e meu avô negociavam bastante, mas as relações terminavam ali. Eu nunca o encontrei antes, naturalmente, já que ficava trancada a sete chaves na maior parte do tempo, ou treinando com Taiga. Mas certa vez ele pediu minha mão… E o vovô aceitou. O que, consequentemente, acabei aceitando.

— Quê? Como assim? — Leo indagou perturbado. — Como o Imperador, sabendo do perigo que você corria, aceitou esse casamento político em plena guerra? E o cara nem te conhecia!

— Não foi bem assim e o vovô achou que seria mais fácil me proteger se estivesse casada e longe das tramoias da Anami… — ela explicou deprimida, notando a aura fria que o médico adquirira. — Mas achava que o compromisso tinha sido rompido aquela mesma época! Não imaginava que o vovô manteria o noivado depois do que ele fez!

— O que ele fez? — Mikhil perguntou sério, controlando-se ao máximo.

— Me confundiu com outra pessoa. — Kira não o olhou nos olhos, mas suas palavras passaram entendimento médico, fazendo-o lembrar-se das que ela proferira mais cedo. — Por isso digo que nem todos os príncipes vestem uma armadura reluzente, alguns são podres.

— Isso magoa, Alteza. — Heijo entrou na sala, vestido e perfumado como qualquer um em sua posição estaria. — Nunca entendi sua antipatia por mim.

— Meu ódio, você quis dizer. — Ela cuspiu, munindo-se de repúdio. — Você me tomou uma coisa preciosa.

— Tomei? Pelo que me lembro, você concordou em ambas as vezes. — Ele esticou o braço para tocar o rosto dela, mas foi impedido por Mikhil, que o olhou colérico. — Que belo cão-de-guarda você arrumou.

— Antes ele que você.

— Eu vejo… Deve gostar muito dele para brincarem de casinha… — ele concordou desgostoso, medindo o médico de cima a baixo, depois de analisar a menina. — Mas cuidado, Alteza, esse tipo, cedo ou tarde, morde o dono.

Phay rosnou, recebendo apenas um arquear de sobrancelha do lorde.

— E ainda assim seria minha primeira escolha. — ela respondeu, deleitando-se com o tom carmim que o rosto do outro adquiriu. — O que me lembra: por que ainda estou com essa coisa, mesmo depois de ter acabado com essa palhaçada?

— Não, querida, a questão é: porque você ainda está com isso se você pode tirar a qualquer momento, como fazia com os grilhões do seu avô? — ele jogou a pergunta enquanto se sentava. — Afinal, se me odeia tanto, há muito deveria ter se livrado desse laço, não? Já que é a toda-poderosa.

— Pode ter certeza de que já teria me livrado disso… Se soubesse. — ela murmurou entre dentes.

— Sim, claro. — Ele sorriu, voltando-se para os outros. — Perdoem nossa pequena comunhão. Geralmente não podemos nos ver sem trocar palavras de carinho. Prometo que a deixarei mais civilizada.

— Não tocará nela. — Mikhil rosnou enfurecido, controlando-se para não avançar no homem.

— Ele não vai, Mikhil, se acalme. — Kira pediu, tocando o braço do médico. — Vamos embora, pessoal, gastamos muito tempo aqui.

— Vai mesmo privar seus companheiros de uma noite de conforto? Ou da magnífica visão da vitória?

— Que vitória?

— Aquela que terei sobre o Tirano. — ele revelou orgulhoso. — Gostaria muito que não perdesse isso. Gostaria até que ficasse ao meu lado quando o enfrentasse.

— Espere… — Leo interrompeu intrigado. — Está dizendo que o exército que está formando não é para defesa? É para ataque?

— Naturalmente.

— Está louco? — Kira explodiu. — Tem noção da barbárie que vai cometer? Está condenando boas pessoas à morte!

— Não é crime lutar por um ideal.

— Está indo contra as leis da natureza! É suicídio! Se fosse para formar um exército e lutar, a própria Anami teria feito isso! Se fosse para vencer Erischen no campo de batalha…

— Tem certeza? Tem certeza que esse “plano” todo não é uma desculpa para fugir? Eu sei que é a sua artimanha favorita para escapar das responsabilidades. — Ele se levantou e observou-a com olhos severos. — Eu vou vencer. E nosso compromisso vai ser cumprido.

— Não, não vai. Porque, uma: você não vai vencer. Você vai ser massacrado, vai olhar para o campo de batalha e vai engasgar com o próprio sangue enquanto cortam sua garganta. E outra: mesmo que vencesse, não vou ficar com você. Nunca.

— Isso é o que veremos. Quando minhas tropas marcharem sobre o sangue negro daquele monstro, você engolirá suas palavras, Princesa. — E ele se retirou da saleta, acompanhado de um valete. — Aproveitem a estadia.

O silêncio pairou sobre a sala por alguns momentos enquanto os quatro adultos digeriam as cenas que presenciaram. Não tinham dúvidas sobre as intenções do cara quanto à Kira, mas duvidaram dela quanto aos motivos que a levaram a seguir o passo-a-passo do plano. E se arrependeram de ter concordado de pisarem ali.

— O que faremos agora? — Leo perguntou atordoado.

— Não tem jeito… Vamos ficar por essa noite. Na alvorada iremos embora, antes mesmo do sol sair totalmente. Mikhil, aproveite a folga para terminar o quarto da Phay.

— Não vou deixar vocês aqui com ele!

— Precisa. — Ela se aproximou e o puxou para perto, de modo que suas palavras fossem inteligíveis apenas para ele. — Ele vai tentar algo contra você, para tirá-lo do caminho. Vá e estude os portões, ache brechas e depois volte para pegar a Phay. Temo por vocês.

— Acha mesmo que consigo passar?

— Você já entrou no meu quarto. O que mais quer que eu diga? — Ela sorriu para ele.

— Ficarão bem?

— Ficaremos bem. Eles não são os alvos e sou como uma moeda de troca. Na pior das hipóteses, se ele conseguisse me manter aqui, ele me usaria para escapar de Erischen. Mas como não estarei aqui… — Ela riu ao empurrá-lo. — Vá antes que te decapitem.

— Sim, querida. Vejo vocês depois. — Ele a puxou para um beijo, antes de virar aquela sombra assustadora e sair pela janela.

— Qual o plano, Kira? — Lissa perguntou, ainda com Phay nos braços.

— Aproveitar a estadia, por enquanto. — Ela articulou resignada, cruzando os braços e suspirando, enquanto olhava em volta. — Tenho certeza de que Heijo não vai tocar em vocês. Mas fiquem longe mesmo assim, ele pode ser irritantemente persuasivo.

— Ok.

— Querem dar uma volta? Soube que há termas aqui. — Ela suspirou, chamando a menina com a mão. — Phay, quer ver o tipo de vida que eu levava?

— Ele te chamou de Princesa. É verdade? Você é uma princesa? — Phay perguntou admirada.

— Ela é A Princesa. — Leo sorriu, puxando a irmã para um abraço. — E essa aqui também.

— Menos, Leo. — Lissa corou. Para falar a verdade, nunca tinha pensado naquele fato.

— Mantenham isso em segredo. Para ele agora, vocês são meus companheiros de viagem. Nada mais. Quanto menos se envolverem nisso, melhor. Sairão bem daqui.

Eles concordaram e se dirigiram para fora, numa pequena expedição pela propriedade. O lugar estava abarrotado de soldados e a cada passo havia algum oficial entrando e saindo de uma porta ou outra, portando papéis ou ordens. Realmente estavam no meio de uma guerra.

— Isso é loucura. — Lissa comentou ao vislumbrar um pelotão pelo vitral do corredor.

— Vai ser uma carnificina. — Kira retrucou indignada. — Não há como eles vencerem.

— Tem certeza?

— Sim… Já vi meu avô tentar, com um exército muito maior que esse e como o apoio de vários outros reinos… Foram massacrados… Perderam toda a parte sul naquela vez.

— O Tirano os mataria mesmo? — Lissa perguntou curiosa. — Ele seria tão mau assim?

— Sim, ele é. A menos que alguém o faça mudar de ideia. — Kira parou e se virou, encarando a prima no fundo dos olhos. — Claro que ele não ouviria ninguém.

— Claro… — Ela desviou o olhar e se calou.

— Milady. — Um dos oficiais a chamou, fazendo uma reverência em seguida. — Lorde Woys requisita sua presença.

— O que esse idiota quer dessa vez? — ela bufou. — Continuem. Já os alcanço.

Kira deu um beijo na menina e se retirou em companhia do oficial. Aquela história ainda iria longe.

–-**--

A linha em seu pulso vibrou por volta da meia noite, avisando-a que o médico estava esperando-a nos portões da propriedade. Kira espreguiçou-se e levantou-se de seu lugar na janela, dirigindo-se até a cama e tomando a menina adormecida nos braços. Saiu do quarto e andou pelo corredor escuro, parando em frente às portas de seus primos e batendo nelas, para indicar que já estava na hora.

O grupo se moveu furtivamente pelos corredores e seguiu pelo imenso jardim bem cuidado. Não seriam loucos de fugir pelo portão principal, não quando sabiam que estavam marcados. Por algum motivo, não havia vigilância por todo o caminho, o que foi quase um milagre. Mas pensando bem, pela cruzada que Kira fizera antes, não era de se surpreender que certos pontos estariam negligenciados. Quem se oporia à Princesa? Quem seria louco de não ajudá-la em seus projetos?

— Por aqui. — Ouviram mais para o lado.

Mikhil estava parado numa porta, um pouco pequena para seu corpanzil. Ele vestia seu uniforme negro de batalha, parecendo um ninja assassino pronto para cortar pescoços. Seguiram-no pela passagem e deram de cara com o portão auxiliar de saída. Brilhava por conta da barreira que circundava a propriedade. Mikhil se aproximou e jogou suas linhas sobre a barreira, desenhando a porta por onde deveriam passar. Leo tomou a menina nos braços e se apressou a sair, com Lissa em seu encalço.

— Vão indo. — Kira pediu, ainda sem passar pelo portal que Mikhil abrira. — Ainda tenho que acabar com essa palhaçada.

— Não, Kira. Vamos agora. — Lissa pediu. — Não banque…

— Não estou bancando nada dessa vez. Eu preciso tirar essa coleira do meu pescoço agora, senão… — Kira parou pelo olhar que habitava o rosto do médico. — Não serei totalmente livre…

— Levem a Phay, já encontro vocês. — Mikhil pediu sério. — Por favor.

— Não demore. — Lissa bufou. — E só para constar, Kira. Você não é livre. Nunca foi e se continuar com essa mentalidade, nunca vai ser.

Leo e Lissa se afastaram sob o olhar do casal e se apressaram a sumir pela curva das primeiras casas que viram. Mikhil se aproximou de Kira e levou as mãos ao pescoço dela, sempre achara que a textura diferenciada que sentia era causada por algum feitiço protetor imposto pelo avô, nunca imaginara que era um selo de compromisso. E como queria poder quebrá-lo agora…

— Não vai fazer diferença. Já tentamos outras vezes e voltou. — ela suspirou, pegando as mãos fortes e levando-as aos lábios. — Vou lá agora acabar com isso, prepare tudo para corrermos, pois Erischen está vindo rápido.

— Não vou te deixar sozinha.

— Não vai. — Ela sorriu, levando a mão dele sobre o peito, onde o cristal repousava sobre o coração. — Me dê algumas horas. Os encontrarei na casa.

— Duas horas e virei te esperar aqui.

— Te chamo.

— Tudo bem. — Ele suspirou, levantando o olhar para a construção. — Queria poder matá-lo.

— Bem-vindo ao clube. — Ela riu e puxou-o pela camisa, num pedido mudo para que ele enterrasse os lábios nos dela do jeito certo.

Se aquela cena tivesse sido presenciada por algum subordinado, ninguém mais saberia o que aconteceu ali, pelos menos até o momento em que os convidados fossem procurados (que aconteceria por volta da hora do ataque). Mas não foi um subordinado que os viu. Não foi um subordinado que assistiu ao beijo ardente entre a princesa e o homem vestido de preto. Que não desviou o olhar em vergonha, quando ele a pegou nos braços e prensou-a contra a parede, sentindo suas pernas enlaçarem sua cintura enquanto a fazia sentir seu corpanzil contra o dela. Não foi um subordinado que escutou os arquejos, as respirações entrecortadas, os gemidos involuntários… O desejo sincero…

Infelizmente, nenhum servo estava no jardim naquela noite. Se tivesse sido um, aquela cena teria saído impune. Mas ele não era de deixar as coisas como estavam. Nunca.

–-**--

Kira sentiu a cabeça latejar quando abriu os olhos e não era pelo fato de estar estirada no chão do quarto ou com o rosto voltado diretamente para a janela insuportavelmente iluminada. Gemeu ao se mexer e rolou sobre seu eixo, aproveitando o movimento para constatar o estado de seu crânio. Sangue na parte de trás. Por que não estava surpresa?

O último evento da noite anterior foi o ato de confrontar seu “noivo”. Depois de Kira deixar Mikhil partir e atravessar o jardim para chegar aos aposentos de lorde Woys, ela engajou-se na tentativa de tirar, por conta própria, o maldito selo do compromisso. Quando chegou lá, o clima no quarto não era dos melhores e a carranca do homem já revelava tudo o que ele estava pensando. E quando ele lhe dissera: “Você não me deixa escolha”, já sabia que dor estava por vir.

E veio. Agora estava acordando de volta ao quarto que lhe fora preparado.

— Droga… — ela gemeu, constatando que seu tempo estava acabando.

Com dificuldade, levantou-se do chão de carpete e se apoiou no pequeno sofá ao pé do vitral. As tropas já se mobilizavam, saindo pelo portão em direção à morte fora da cidade. Ao longe, a redoma de Erischen se aproximava passo a passo, informando a todos o pouco tempo que lhes restava, incluindo Kira. Especialmente Kira, na verdade.

Abriu a janela e colocou o braço para fora, a sensação de ardência também não a surpreendeu. Provavelmente aconteceria o mesmo se tentasse atravessar a porta. Suspirou desgostosa, apanhando o cristal de seu peito e ativando-o com a energia que lhe restava.

Mikhil ia ficar furioso.

Kira! — Como ouvir a voz dele a animava… — Céus! Onde você está? O que houve? A segurança da barreira foi reforçada, estou há horas rondando o palacete atrás de uma brecha.

Enquanto ele falava, Kira se obrigou a abrir os olhos e observar a imagem de seu médico. Ele não havia trocado de roupa, estava com a mesma camisa negra sob todo aquele aparato ninja que ele tinha. Como sabia que era a mesma? Sem querer estragara a gola com suas unhas quando se beijaram na madrugada.

Kira, o que houve? Você está bem? — Nem mesmo a marca que deixara sumira ainda. Estava se tornando um pouco possessiva em relação a ele. — Kira… Estou indo te buscar.

— Ele me golpeou na cabeça e me prendeu no quarto. Acabei de acordar e estou tonta… — contou enevoada, observando o rosto dele se endurecer a cada sílaba. — Não sei o que vai acontecer, Mikki. Seja lá o que ele fez, me deixou fraca…

Estou indo te buscar.

— No estado em que estou, ele pode fazer o que quiser! Se ele tentar uma lavagem cerebral? Se eu não conseguir sair a tempo? Não quero desaparecer!

Cale a boca! — ele pediu sério, pausando um momento para recuperar a calma e a objetividade. — Me dê algum tempo, Kira. Se acalme e seja essa guerreira linda que eu estimo tanto. Segure as pontas e não se renda… Por favor. Me espere.

Kira respirou fundo e buscou a calma das profundezas da alma. Ele tinha razão, precisava ser forte. Forte o suficiente para aguentar qualquer coisa que viesse daquele louco. E precisava ajudar Mikhil a entrar, só não sabia como fazer qualquer coisa.

— Vou tentar aqui do meu lado. Seja rápido, não quero me sujar com sangue imundo.

Essa é minha garota. — Ele sorriu orgulhoso, movendo-se para algum lugar. — Onde ele te machucou?

— Na cabeça. Um golpe forte depois de quase me sufocar. — ela revelou, analisando-se. — Fora isso, não vejo nada de errado. Não acho que ele tentaria novamente em público.

Só para constar, não posso matá-lo?

— Não em público. Teremos que deixar essa honra ao Erischen. Se desse para assistir de camarote… — Ela suspirou, levando as mãos ao pescoço e se preparando para quebrar o selo. — Isso vai doer.

Não se machuque.

Kira ignorou o pedido do médico e se concentrou na energia, na vontade e no selo. Concentrou-se naquela que aceitara o pedido. Concentrou-se em seus sentimentos que a mantinham presa a ele. Concentrou-se no seu ódio e na lembrança daquele dia, quando chegara em casa e recebera a memória. Não dera importância a ela de início, afinal, o corpo era dela, contanto que não a prejudicasse, não veria problema se sua dopplenganger tivesse um amante. Ela mesma não via a hora de ter aquele de quem gostava. Mas naquela noite deu tudo errado. Além de descobrir que tinha ficado noiva, o cretino a abduzira, depois de ter sido ignorado sem intenção. Apesar de Taiga tê-la salvado, a tigresa não chegou a tempo de poupá-la daquele trauma.

Lembrava-se dos meses de choque e depressão que se sucederam e teriam sido mais se não tivesse se lembrado de sua missão, de seu propósito. Provavelmente, se não tivesse essa missão para realizar e a memória de seu benfeitor para consolá-la…

Felizmente, com todo aquele sentimento de repúdio e indiferença, o selo se rompeu. E não foi como das outras vezes, naquela vez estava certo. Agora sim estava livre.

— Consegui… — ela arquejou com um sorriso. — Posso sair…

Kira…

— Então você conseguiu. — a voz de Woys ecoou pelo quarto, assustando a moça por um momento antes de coloca-la em total alerta em segundos. — Cretina.

— Olha quem fala. Estuprador desgraçado!

— Então você conseguiu. — A voz de Woys ecoou pelo quarto, assustando a moça por um momento antes de colocá-la em total alerta em segundos. — Cretina.

— Olha quem fala. Estuprador desgraçado!

— No começo, eu gostei de você, de verdade, e parecia que era recíproco. E quando você me deu… E quando aceitou ser minha noiva… Céus! Me senti capaz de conquistar o mundo! Mas então vieram o gelo, a indiferença… Você brincou comigo, Kira? Achou que caras como eu não têm sentimentos? Pense novamente, princesa!

— Isso não te dava o direito de me violar!

— Violar? Não. Não se viola algo já visitado. — Num rápido movimento, ele investiu contra ela e arrancou-lhe o cordão com o cristal do pescoço, acabando com a imagem de um Mikhil muito, muito possesso. — Sempre fui muito tolerante com você. Sempre amigável, relevando as alfinetadas. Mas isso, me fazer de tolo, é a gota d’agua.

— Tolerante? Você só quer o trono! Sua falsidade sempre me enojou, cretino! — Ela se lançou sobre ele, tentando pegar o cordão brilhante. — Devolva!

— Ele lhe deu isso? Foi feito de partes dele? Quando as tirou? Foi no momento em que deu para ele? — Ele a golpeou no rosto, fazendo-a capotar sobre a janela. — Você o considera melhor só porque é bonito? Prefere aquele assassino a mim?

— Mesmo se ele fosse desfigurado, ainda seria melhor que você! Prefiro mil vezes me entregar à tortura mais hedionda do Tirano que ficar com você! — ela rugiu, preparando-se para a luta.

— Vadia! — Ele gritou ao jogar o cordão ao chão e pisoteá-lo com sua bota, antes que ela pudesse se jogar para pegá-lo.

A dor lacerante que a abateu pareceu maior que qualquer outra que já experimentara. Era como um infarto, que subia de cada canto de seu corpo. Tentou aguentar o máximo que pôde, sentindo a pressão sobre o peito como se ele estivesse pisoteando-a propriamente. Mas não era metafórico. Aquele cristal vermelho que fazia par com o de Mikhil estivera preso em seu coração. De verdade.

Heijo viu a garota cair aos seus pés com um gemido de dor, antes de desmaiar. Olhou-a sem pena e afastou-se, notando a pequena poça vermelha que minava do cristal quebrado. Então ela dera seu coração ao outro mesmo. Nunca sentira tanta raiva como naquele momento… E justo antes da grande cartada…

— Você mereceu isso… — Heijo cuspiu as palavras, preparando-se para sair do quarto com seu oficial. — Deixe dois guardas nessa porta. Ninguém entra ou sai até que eu volte.

— Mas senhor, a princesa…

— Dela cuido eu, depois. Agora faça o que mandei e se prepare para a luta. Caso contrário, o apagarei também. — E ele saiu, deixando o oficial estático no quarto, alternando o olhar entre a princesa caída e a porta.

As palavras que ela proferira na noite anterior o assombraram naquele momento… “Ele vai levá-los à morte”, “Parem-no antes que seja tarde”, “Ele só quer poder e não liga para nada nem ninguém. Heijo me mataria se isso o levasse ao trono”, “Não é o destino de vocês vencer o Tirano. Por favor, salvem-se!”. E ela estava certa, em cada palavra.

Com pesar, cruzou o quarto — tomando cuidado para não pisar no cristal quebrado — e levou-a para a janela e deitou-a lá. Não sabia quando ela acordaria, mas não deixaria que o companheiro dela a encontrasse no chão. Ele já teria problemas demais só para entrar ali. Ainda mais com a cidade sendo massacrada pelo inimigo.

–-**--

As tropas já tinham se mobilizado para o campo de batalha, e somente ficou na cidade a milícia local. Mikhil observou a passagem do contingente com pesar e raiva. Claro que sua fúria estava voltada para o cretino que prendeu sua Kira. Se pudesse matar todos que fizeram mal a ela, se sentiria muito melhor. Entretanto, boa parte deles estava fora de seu alcance. A começar por esse imbecil. Iria sentar e apreciar ver a morte dele pelas mãos do Tirano. Contando com o avô dela e o dragão, já eram três que retinham seu desgosto. Erischen estava em uma lista à parte. Quem não odiava o cara?

A barreira em torno do palacete parecia quase intransponível. Densa, energizada e pronta para repelir qualquer um que tentasse atravessá-la. Mas ele não era qualquer um, felizmente.

Esperou que o comitê do cretino se afastasse o suficiente e atravessou tranquilamente a parede de energia, não sentindo mais que uma pequena resistência do vento. Essa era sua melhor habilidade como Aranha: chegar ao seu alvo, mesmo que ele estivesse encoberto pela mais poderosa proteção. Foi assim com Kira e foi a isso que ela se referiu. O castelo do Imperador já era inacessível por si só e, apesar de exposto, o quarto da princesa era impenetrável. Ou quase, já que o adentrara sem dificuldade.

Atravessou a propriedade a passos largos, apressados e perigosos, desacordando quem o atrasasse e ignorando os que abriam caminho. Que eram praticamente todos. Chegou à porta que seu fio indicava e parou de fronte para os soldados que a guardavam. Apenas um olhar foi suficiente para que se afastassem e abrissem a porta, baixando a cabeça em reverência e se retirando rapidamente, levando os criados que assistiam.

A visão por trás do portal o arrepiou, não de um jeito bom. Não perdeu mais tempo em contemplação, atirou-se para dentro e tomou-a nos braços, examinando-a e registrando o ferimento em seu rosto. Rosnou enfurecido e esquadrinhou o quarto. Kira não cairia por algo assim, nunca, ela era forte demais. Seus olhos pousaram sobre a poça vermelha embaixo do cristal rachado e sentiu-se frio, como nem mesmo seus anos nas montanhas fizeram.

Cuidadosamente, esticou o braço e tomou o cristal nos dedos. Estava rachado tão gravemente que parecia desfarelar, como se tivesse sido pisoteado. E pelo estado em que estava, foi mesmo.

— Se não soubesse que Erischen vai fatiá-lo, iria agora matá-lo. — ele murmurou raivoso, aninhando-a em seus braços e injetando-lhe energia. — Vamos lá, Viyânia, vou te levar daqui.

Quando os alarmes começaram a soar, Mikhil bufou exasperado e a pegou no colo, sem interromper a troca de energia ou parar de andar. Se tinha uma coisa que não ia perder era a derrota de Heijo Woys perante Erischen. E se, por cargas d’agua ele se livrasse do Tirano, sua teia o pegaria. De um jeito ou de outro ele iria morrer.

Isso era certeza.

–-**--

Por mais irritante que aquela cena poderia ser, estava admirado com a coragem daqueles tolos. Erischen observou o pequeno exército que o encarava em retorno e sorriu divertido, imaginando se Lysvrill não poderia ter sido mais precisa. E aquele que vinha a frente então? Parecia mesmo repugnante e incoerente, tal como ela descrevera. Que coragem! Somente um louco pensaria em afrontá-lo daquele jeito.

Graças ao contato de Lysvrill, viera preparado e misericordioso, bem como ávido para por as mãos em Kira. A moça o tinha pegado de surpresa ao aparecer em sua tenda na primeira vez, quando tinha acabado de se banhar, agora mal podia esperar para se falarem, esperando o contato a cada hora do dia. E ficara tão feliz em vê-la que prometeu poupar os soldados e qualquer um que não resistisse. Mas precisaria aplacar a expectativa de seus aliados de alguma maneira, não? E sua alegria quando teve permissão para esmagar o comandante? E como adorara a ideia! Se apaixonara por Lysvrill ainda mais depois disso.

Olhou para trás um momento e pensou, tendo a caixa vedada por vista. Ali estava a maior arma que poderia ter e era ela quem sustentava a barreira que os rodeava. A cada cidade conquistada, ela ficava mais forte e era por isso que a trazia ao campo, sem falar que era uma assassina nata. Se a soltasse agora sobre aquele contingente, ninguém sobreviveria, nem mesmo o seu próprio.

O comandante do outro exército começou um discurso de motivação falando de vitória e de massacrar o inimigo com bravura, mas as feições dos soldados eram de indiferença e desolação. Sabiam que iam perder se seguissem aquele tolo, e não havia nada a fazer sobre o fato.

— Vamos abrandar as coisas. — comentou para seu general e se adiantou ficando próximo o bastante para ser ouvido. — Senhores! Ouçam um momento, pois não irei repetir. Hoje acordei misericordioso e farei uma proposta que não fiz a nenhuma outra cidade! Se rendam agora, sem lutar, que pouparei a todos, ninguém será ferido!

— Ele mente! Ele aniquilará qualquer um aqui! — o comandante berrou. — Lutem por suas…

Uma lâmina afiada foi vista por apenas um segundo antes de ser enterrada no flanco do cavaleiro. Erischen assistiu-o cair ao chão enquanto seu braço-direito desmontava de seu cavalo e se adiantava, de peito aberto e mãos erguidas.

— Temos sua palavra de que nenhum de vocês machucará alguém? — ele perguntou.

— Sim, eu juro. — Erischen sorriu ao apontar para o paspalho no chão. — E se me entregarem esse traste, passaremos por aqui sem perdas.

— Feito.

–-**--

Mikhil assistiu ao lorde ser pego por seus próprios homens e ser carregado à carroça que levava a fonte da barreira. Uma satisfação imensa o preencheu quando viu o homem ser lançado lá dentro e o perfume da morte enredá-lo em desespero, antes de os movimentos da caixa indicarem as atrocidades que o submeteram. Fosse o que fosse que tinha ali, era perigoso e mortífero, pois seu cheiro de morte percorria por quilômetros. Estavam no alto de uma montanha, acomodados numa saliência bem no limite da área. A barreira que encobria Erischen e seu contingente estava a exatos cinco centímetros de seus narizes, e apesar da imensa distância, a vista era belíssima.

Kira ainda estava desacordada em seus braços, mas estava fora de perigo. Simplesmente dormia, felizmente, mas até mesmo isso o preocupava. Pálida, lábios brancos ressecados, olhos fundos… parecia não só morta, mas em decomposição, ou os estágios finais de um coma persistente… Não sabia se tinha chegado tarde demais, mas esperava que pudesse pelo menos fazê-la abrir os olhos, mesmo para que dormisse depois. Precisava ter certeza que sua alma ainda comandava seu espírito, que por fim dava via àquele corpo.

— Olha, Kira. Não sei o que você fez, mas tocou todos aqueles homens. Estão salvos, se rebelaram contra aquele cara e se salvaram. Olha lá, Viyânia, está sendo punido agora. Ouça o rasgar da carne dele, o romper das ligas e veias… Os gritos de terror… — ele descreveu carinhosamente no ouvido adormecido. — Está perdendo o show.

Ela não respondeu.

— Ah, Kira… Acorde, por favor.

— Ela está olhando para cá. — Sua voz saiu fraca. — Está nos observando.

— Quem?

— Na caixa. Tem uma janela com grade, dá para ver o que acontece. Dá para nos ver… Ela me quer…

— Então não vamos deixar que a tenha. — Ele a beijou e a elevou, preparando-se para saírem dali. — É a última vez que deixo que enfrente esse tipo de coisa sozinha.

— Não vou mais… — E ela dormiu novamente.

— Precisamos de umas férias… — ele concluiu, antes de sair dali.

–-**--

Antes, ouvir as comemorações de seus subordinados o irritavam. Antes não entendia a satisfação de comemorar algo certo que fora bem sucedido. Mas naquele dia foi diferente, estava extasiado.

Erischen adentrou sua tenda com um sorriso no rosto. Já era noite e seu humor estava nas alturas. Foi um bom dia, realmente muito bom. Ganhara uma visita de Lysvrill, recebera a rendição pacífica daquele povo e ainda conseguira um bom brinquedo para sua arma-secreta. E agora estava com a promessa de encontrar sua adorada novamente naquela noite. Precisava se preparar. Estava tão animado! Nem mesmo a perda do paradeiro de Kira o abalou. Teria outras chances de achá-la.

Guardou suas armas, retirou o elmo e a armadura, desafivelou os cintos e tirou as botas. Estava cansado e ao mesmo tempo animado, por isso não perdeu tempo com o pequeno desejo de correr descalço pelos prados e bosques, como fazia com sua irmã, quando eram crianças… Antes que o peso das responsabilidades e o destino os pegassem. Ela como a próxima Oráculo, ele como o Tirano.

— Erischen? — A voz aveludada de Lysvrill badalou em seus ouvidos, mesmo que estivesse ecoando do espelho que usara por ponte.

— Vieste mais cedo. — Ele sorriu virando-se para ela, esfregando as mãos molhadas em uma toalha. Seria muito melhor se ela o tivesse pegado no banho, não lavando as mãos. — Fico feliz.

— Se preparava para tomar banho? — ela perguntou e um lindo rubor subiu-lhe às faces.

— Sim, mas posso adiar. Falar com você é mais importante. — o elfo sorriu, desejando poder tocar a moça. — Se me permite… por que veio tão cedo? Aconteceu algo?

— Vamos viajar logo, quis vê-lo enquanto ainda estou na casa. — Ela sorriu. — Obrigada por me escutar e poupar aqueles soldados. Obrigada.

— Por você, qualquer coisa. — Ele sorriu, sentando-se. — Sobre o que quer falar hoje?

— Veremos onde vamos chegar. — ela riu, sentando-se no ar.

Afinal, ela não estava ali de verdade.

Ainda.


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Notas finais do capítulo

Viyânia: minha amada/minha querida no dialeto do Mikki



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