Destinados escrita por Tsuki Dias


Capítulo 14
13 - Resoluções


Notas iniciais do capítulo

Não, não tem ninguém louco aqui. Acontece que fiz uma pequena mudança na ordem dos capítulos, então quando inseri o Prólogo, tive que refazer todos os outros para não ter que excluir a historia. Então sim, o último capitulo atualizado deveria vir primeiro. Tenso não? Aos que já são de casa, chequem lá em cima, aos que já pegaram o bonde andando, continuem aproveitando a história! ^^



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Mikhil se perguntava quando é que fora metido naquela enorme banheira, cheia de sais perfumados e essas coisas de mulher, sem que tivesse percebido. Mas desconfiava que não tivesse sido tão difícil assim. Desde que descobrira que Kira era a princesa, sua mente se desconectava de hora em hora. Então, quando voltou para a realidade, não devia se surpreender por estar numa situação constrangedora.

Olhou para o teto abobadado da sala de banho e suspirou, deixando que o fragrante de ervas e especiarias impregnassem seu olfato, relembrando do olhar que estampara o rosto de Kira. Por que tivera que falar? Por que revelara daquela maneira que sabia quem ela era? Podia ter sido mais sutil, mais carinhoso... Ou nem falado. Sim, definitivamente deveria ter guardado segredo. Se tivesse feito isso, ainda poderiam conviver como antes, brincar com ela abertamente e ser o motivo de suas reações...

Agora temia que um abismo os separasse, mesmo depois de ter dado tão duro para se aproximar.

– Senhor? – a voz “serpentosa”, carregada de ‘s’, do servo que lhe foi designado, soou do outro lado da porta. – A refeição está servida.

– Obrigado, descerei já. – respondeu mais por decoro que por vontade. Queria ficar mais um tempo de molho em seus pensamentos, resistindo à vontade de se afogar um pouco pelas burradas que fazia.

Só que tinha que admitir, podia até ser coisa de afeminado, mas aquele banho estava realmente bom demais para desperdiçá-lo.

Com um suspiro, saiu da água e caminhou um pouco pelo imenso banheiro, deixando o corpo secar um pouco. Parando em frente a pia e seu espelho, analisou-se sem muito ânimo. Estava horrível e cansado. Sua pele ainda estava um pouco rosada por conta das queimaduras e quente demais pelo banho, mas já não doía nem incomodava tanto quanto antes. Reparou também na falta de brilho de seu olho vermelho e na ausência daquela voz irritante em sua cabeça – que por experiência, devia senti-la soltar fogos pela ausência de seu monóculo –. Só imaginava o quanto aquela paz duraria e torcia imensamente para que fosse por bastante tempo.

Uma toalha apareceu ao alcance de suas mãos e não se preocupou em saber de onde saíra, simplesmente pegou-a e passou nos cabelos compridos enquanto rumava para o quarto anexo, anotando mentalmente que precisava apará-los antes que ficassem como os de...

– WOW! – exclamou assustado ao entrar no quarto, cobrindo-se instintivamente com a toalha.

Kira estava apoiada na janela, com o corpo voltado para a porta do banheiro – para ele no caso – e com os olhos baixos, parecendo seriamente aborrecida com algo. Quando levantou o olhar e o encarou, Mikhil teve a sensação de que a lareira estava fazendo um serviço reverso ao de aquecer o cômodo. Mas não era o frio, e sim a tristeza dela que o atingira.

Por mais que Kira quisesse acabar logo com aquilo, surpreender Mikhil logo após o banho, vendo sua pele exposta ainda molhada, inibia completamente sua linha de raciocínio. Sempre achou que aquele médico filho-da-mãe era perigosamente atraente, mas confirmar isso em primeira mão a desconcertou até no íntimo. Contudo, se não estivesse tão tristemente determinada, teria corado e se virado ante as imagens embaraçosas que a ocorreram.

Sob as costumeiras roupas pesadas, não podia ter ideia das reais dimensões de seu corpo, às vezes achando que o que via era apenas o resultado do acúmulo de tecido. Mas não, Mikhil era realmente magnífico. Sua musculatura não era só definida, mas também desenvolvida, como todo homem que teve uma vida regrada a treinos. Seus cabelos, normalmente meio-presos, caíam livres, levemente ondulados pela umidade sobre seus ombros. Ombros largos e fortes que afunilavam em direção à cintura, de onde prendiam as pernas poderosas e a indescritível prova de seu gênero. Céus! No que estava pensando?

– Alteza... Eu... Hã... Me desculpe. – ele balbuciou envergonhado, sem saber o que fazer.

Será que era porque fazia muito tempo que não o viam nu ou era ela que o deixava sem jeito? Ou era porque, de onde ela estava, podia ver claramente seu traseiro pela porta espelhada, e meio que queria que ela gostasse da visão? Ele estava mesmo tendo esse pensamento?

– Por quê? – Kira perguntou impassível, não demonstrando qualquer reação.

– Por me apresentar de maneira imprópria...

– Eu o surpreendi. As desculpas deviam partir de mim.

– Não, você é...

– Quem? A Princesa do Tempo? – ela bufou irritada, cruzando os braços sobre o peito e apertando a ponte do nariz, numa tentativa vã de acalmar-se. – Pare de ser hipócrita.

– Hipócrita? Por favor! Não fui eu quem mentiu...

– Sobre ser da realeza? Liste as vezes que, mesmo minimamente, revelamos nossas origens. Não ponha palavras em minha boca, Doutor. Você não tem moral para me criticar. Olhe-se no espelho antes.

Sem dizer mais nada, ela se dirigiu para a porta e fechou-a com força, deixando o estrondo ser sua palavra final. No silêncio que se seguiu, Mikhil ficou lá, parado no meio do quarto, com a toalha ao chão e seu corpo desprotegido. Sua mente estava longe, provavelmente perdida entre aqueles olhos dourados, deixando uma pequena parte para processar as informações necessárias para conduzir aquela situação.

Tudo o que sabia dela foi concebido de suposições que fizera ao observá-la. Assim como com seus primos, mas não chegou a perguntar se eles realmente vieram do plano mortal. Realmente, Kira nunca dissera de onde viera e ele tampouco perguntara a respeito.

Parabéns, Mikki. Menos um ponto para você. – pensou com um gemido, enterrando o rosto nas mãos.

–-**--

Pareceu-lhe que seus lamentos duraram uma eternidade antes de se vestir e sair do quarto para ser conduzido até a sala onde a refeição fora servida. Sala? Cara, aquele cômodo abrangia sua casa inteira irrestrita! Caberiam umas duzentas pessoas naquele espaço com folga até para dançar! Para quem estava acostumado com locais condensados e simples, estar em um cômodo imenso daquele o lembrava de sua humilde insignificância.

O lugar estava decorado em estilo oriental (como a maioria dos cômodos ali), havia uma maciça mesa baixa de madeira ao centro, rodeada por banquetas almofadadas em vermelho. Pinturas e tecidos adornavam as paredes, onde pequenos móveis sustentavam ornamentos preciosos.

Rany e Dgrov já estavam lá, limpos e descansados, ela mordiscando sua parte enquanto ouvia – muito calada para o pouco que a conhecia – seu irmão falar com Yüeh. O arrependimento em seu rosto era genuíno, assim como a compreensão da mestiça. Ela, apesar da perda, estava em paz com o destino do pai e com o guerreiro ao lado, mas Leo (Dgrov, ou seja lá como ia chamá-lo dali por diante) se martirizaria por isso pelo resto da vida.

E Kira não estava à vista.

– Mikki! – Rany o chamou. – Sente-se também.

– Sim, mas ela não vem também?

–A Kira? Não a vimos depois que foi te procurar. – ela informou, tomando parte da expressão culpada que não conseguiu reprimir. - Aconteceu alguma coisa entre vocês?

– Não necessariamente. – respondeu com um suspiro, voltando-se para a porta. – Irei procurá-la.

– Necessita de ajuda? – Yüeh se ofereceu.

– Obrigado, mas não, Senhora. – ele negou, curvando-se para a mestiça. – Com licença.

– Não acha que ele está diferente? – Lissa perguntou a Leo, que olhava sério para a porta pela qual o amigo saiu. – Ele está... Distante, desde que soube...

– Sim. – ele concordou. – Mas acho que outra pessoa é quem sentiu mais essa mudança.

–-**--

O fio prateado que seguia não passava de um brilho discreto no chão branco. Para olhos destreinados, aquela rota passaria totalmente despercebida. Claro que algum desavisado pisaria em cima e teria um baita corte no pé, mas isso só aconteceria se ele ainda fosse aquele cara tóxico de antes. Ou se não tivesse o delicado pulso de Kira na outra ponta. Era uma surpresa ela não ter desfeito o laço ainda.

Enquanto andava, repassava mentalmente o que diria para ela. Sua vontade era de pedir desculpas pela forma idiota como a tratara todo esse tempo, por sua tolice de se intimidar por seu status, e que não era só por ela ser a princesa, era a lembrança que tinha dela que o inibia e isso refletia no exterior. Se ela perguntasse sobre, falaria do dia que a salvara de ser atropelada. Mas... Não tinha ideia do que fazer caso ela não lembrasse, como a ceifeira disse que aconteceria.

Seu fio o levara para uma grande porta, onde reconheceu serem as termas. Entrou sem bater (imitando-a naquela hora) e parou, criando coragem para falar abertamente com ela, do jeito que imaginou.

A antessala de banho era um espaço razoável, com bancos de madeira e armarinhos vazados para colocar pertences e produtos. A iluminação alaranjada, proveniente de cristais de fogo, dava cores quentes e alegres ao ambiente de mármore branco. Ao fundo, outra porta entreaberta jorrava vapor perfumado e levava para as piscinas quentes.

De onde, provavelmente, Kira acabara de sair.

A peça de seda clara que usava não a cobria por inteiro. Mikhil podia ver o começo da curva de seus seios sob os braços, podia distinguir as linhas que desenhavam em suas costas sob seus cabelos e principalmente suas lindas pernas. Estava de costas para a porta, sentada num banco alto que deixava seu novo cabelo balançar livre a um dedo do chão molhado. Estava úmida, ainda com gotas correndo por sua pele luzidia, e penteava as madeixas que jaziam sobre seus ombros, desfazendo os nós causados pela água tão pacientemente que parecia que estava alheia a tudo ao redor.

O que não era verdade, claro.

– Desculpe. – ouviu-a falar quando separou outra mecha para pentear. – Eu não devia me zangar toda vez que isso acontece, mas... Magoa quando me tratam diferente quando descobrem minha linhagem. Desculpe por ser uma idiota completa e por fazer você pensar que a culpa é toda sua.

– Eu devia ter imaginado que não era de seu desejo que eu soubesse ainda. Não é sua culpa.

– É sim. E não só por hoje, mas por todas as outras vezes que te tratei mal... Mesmo você me fazendo esquecer... Perder isso me irritou. Aturar esse comportamento dos empregados é uma coisa, mas dos amigos... Queria poder esquecer quem sou.

– Não pode esquecer.

– Eu sei, mas posso tentar fingir que não nasci no berço de ouro como... É só que... Não quero que me trate diferente, Mikhil. – ela virou-se para encará-lo quando finalmente disse seu nome. – Me desculpe.

Por um momento ele não soube o que dizer. Estava perdido naquele olhar dourado enquanto suas palavras terminavam de massacrá-lo. Então era esse o caso! Kira não queria que ele soubesse, não só para se proteger, mas também para não ser posta num pedestal novamente. Fechou os olhos por alguns segundos e suspirou longamente, levando uma mão aos cabelos para desarrumá-los. Aquilo foi inesperado. Todo o roteiro que montara de antemão baseava-se numa abordagem cautelosa para uma Kira agressiva e zangada. Ser tratado tão tristemente doce e ainda receber um pedido de desculpas por todas as vezes que fora destratado e ainda ser chamado de amigo (por mais dolorido que tenha sido) o desconcertou e o aniquilou em pedacinhos.

Quantas armas escondidas aquela garota ainda possuía?

– Olha... – ele começou, ousando se aproximar dela.

– Senhora? – uma batida na porta anunciou a chegada de alguém. – Trouxe o que pediu.

– Entre, por favor. – ela autorizou, dando as costas para Mikhil.

A serva entrou sorrateira, como parecia ser de costume para todos os reptilianos, e se postou humildemente atrás de Kira, que lhe entregara a escova e baixara a cabeça. Mikhil percebeu um pequeno embrulho de couro nas mãos escamosas, que foi aberto e desenrolado num balcão próximo. Tesouras de vários tamanhos e navalhas estavam alinhadas impecavelmente em seus compartimentos, limpas e brilhantes como se nunca tivessem tido uso em sua vida.

– Vai cortar o cabelo? – perguntou surpreso.

– Aparar as pontas. Eu gostei do que Jhïngurg fez a ele, mas assim não é prático. – ela explicou, mostrando à criada o comprimento que queria, pouco acima do meio das costas. – Não quero outro acidente como o do acampamento.

Mikhil não teve palavras para contestar. Observou os fios tricolores e concordou com o ponto dela, estavam pesados e longos demais para quem estava numa aventura perigosa, precisavam de um corte e mal esperava para ver aquela beleza realçada. Mas, vendo a serva juntar a extensa cabeleira em suas mãos escamosas e levar a navalha aos cabelos dela, calculando rapidamente onde seria o corte, algo em sua mente o atiçou. Não como a voz irritante que o incitava a fazer coisas terríveis, e sim como sua própria voz de orgulho que pedia uma compensação por parte dela e uma atitude que o marcasse para sempre em sua memória, além do reconhecimento que necessitava confirmar se existia.

– Espere. – ele falou sério, atraindo a atenção das duas.

A criada parou imóvel, com o fio de corte preparado e quase funcional. Olhando para ela, tomou-lhe o instrumento com determinação e pediu silenciosamente que se afastasse da moça. Kira o encarou confusa com sua atitude, quando pousou a navalha de volta no estojo e continuou quieta enquanto o via observar os instrumentos e os escolhia com precisão. Não ia deixar aquilo passar.

– Senhor? – a serva perguntou em sua voz carregada.

– Pode se retirar? Por favor. – pediu, evitando olhar para os olhos de sua salvadora. – Preciso falar com ela, a sós.

A criada não respondeu de imediato. Olhando preocupada para a jovem, o homem e o estojo mortal perto dos dois, ela pareceu relutante em deixá-los sozinhos com a possibilidade de que aqueles instrumentos fossem usados para algo mais que não o de aparar o cabelo dela. E só depois de receber a confirmação da jovem dama, ela se obrigou a sair, fechando-os completamente sozinhos. O que ambos tinham a impressão de que seria por muito tempo.

Kira desviou os olhos da porta que se fechara e os fincara no médico ao seu lado, que parecia tão nervoso quanto um adolescente em processo de confissão. Ele pousara navalha no estojo e se inclinara sobre o balcão, apoiado nos braços fortes e com a cabeça pendida em direção ao peito, respirando profundamente, como se tentasse levar calma para seu interior. O que soava ridículo já que ele provavelmente era mais velho e experiente que... Bem... Aquela pessoa.

Olhar para ele daquele jeito, metido em túnica escura e calça verde, fê-la lembrar-se da visão que tivera de seu corpo momentos atrás. E o vislumbre não se limitou a somente a estupenda visão de sua frente, durante a conversa, Kira ficou perturbadoramente consciente do reflexo revelador da retaguarda daquele corpo. Então observá-lo de costas, meio inclinado, com a total lembrança de seu corpo ao natural... Pode imaginar que tipo de pensamentos povoou sua mente.

– Mikhil? – ela chamou inquieta.

– Você me pediu desculpas, certo? – ele perguntou baixo, certificando-se de que entendera certo. – Eu te desculpo.

– Mas? – ela perguntou inquieta, já ciente do que ele diria.

– Quero que me deixe cuidar de você. – ele falou sério, encarando de perto os olhos dourados. – O que inclui o seu cabelo.

– Está falando sério?

– Absolutamente. – Kira o encarou, sentindo sua pele arrepiar ao constatar a sinceridade dos olhos dele. Totalmente livres da sombra que os encobria. – Confie em mim.

E sem ela a alertando de que ele era perigoso, Kira ficava perigosamente tentada a acreditar nele.

– Você confiaria em meu lugar, se conhecendo do jeito que conhece?

– Não. Nem cogitaria em te pedir isso se estivéssemos em outras circunstâncias. – ele levantou a mão e tocou a pele abaixo do olho vermelho, que estava brilhante como rubi. – Mas acredito que possa agora, já que há mais nos unindo que nos separando.

– Por que diz isso?

– Acho que o destino está do nosso lado.

– Como?

– Confiará em mim? – ele perguntou. – Deixará que eu fale?

– Diga. – ela encorajou, pedindo a navalha da mão dele e recebendo uma negativa. – Mikhil...

– Vire-se, deixe-me fazer isso. – ele pediu novamente, tocando o ombro desnudo com delicadeza. – Por favor. Você me deve isso.

Ela não respondeu. Encarou-o por um longo momento antes de suspirar e virar-se, baixando a cabeça em seguida. Não tinha ideia do que ele ia fazer, mas de alguma forma precisava ouvi-lo e dar-lhe o voto de confiança, afinal, como ele mesmo disse: devia a ele. Mikhil respirou fundo, trocando a navalha pela escova, e pegou os cabelos prateados com delicadeza, antes de começar a escová-los suavemente, preparando-os para a sessão que viria logo.

– Seu monóculo quebrou? – ela perguntou para quebrar o silêncio.

– Aqui não preciso dele, pelo que parece. – ele sorriu. – Mas não se preocupe, não a deixarei careca. Não sou tão cego quanto você acha.

– Por que o usa, então?

– Não poderia ser por estilo? – ele riu. – Minha miopia é singular, não atrapalha, mas ainda preciso de um apoio. Ganhei aquela peça de uma pessoa muito especial. Pode-se dizer que fui libertado nesse momento. Quer ouvir essa história?

– Conte.

– Bem... Sabe como consegui esse olho?

– Maldição.

– Sim, também, mas a cor veio antes. – ele suspirou. – Sempre tive olhos verdes, também teria cabelos claros se minha mãe não fosse tão profundamente morena. Entende o que quero dizer?

– Sim.

– O marido dela também entendeu. Quando ela foi embora, o pai dos meus irmãos passou a descontar sua raiva em nós, tendo por alvos favoritos minha irmã e eu. Não que ele fosse boa pessoa antes, mas sabe o que bebida e pavio curto fazem. – ele riu com amargura. – O derrame que tive depois de uma de suas sessões me deixou levemente míope e com um olho de cada cor.

– Sinto muito.

– Nah... Faz muito tempo. Assim como a primeira guerra na qual lutei. Aquela onde a Princesa Destino baniu Dama Ynn. Era bem mais novo que Rany é hoje. E por sobreviver a essa, fui escalado para um esquadrão especial, tomando o tão sonhado lugar que meu irmão almejava com todas as forças.

– Você é um Aranha... – ela sussurrou, encarando o fio prata atado em seu pulso.

– Não mais, desde que me recusei a atacar a Cerimônia da Casa das Luas. Mas como conhecimento nunca é perdido, usei esse conhecimento para sobreviver e me tornei algo mais obscuro. Trabalho nunca faltou nesse ramo. Até o dia em que ganhei o monóculo, eu era tóxico e qualquer um ao meu redor sairia manchado, fosse amigo, inimigo ou alvo. – ele parou um momento, tentando decifrar as emoções dela.

Ele parou de penteá-la no mesmo momento em que pausou a narrativa, observando seu silêncio enquanto mudava de utensílio. – Kira?

– Continue. – ela pediu depois de respirar fundo.

– O que contei te incomoda?

– Não tanto quanto deveria. – ela soltou com um suspiro, escondendo o rubor. – Continue.

– Já contei que morei no Tempo, antes de me tornar médico? – ele sorriu. – Tinha negócios lá, mas meu contratante demorara demais para me dar um nome, então mandei tudo para o espaço. Foi nesse dia que a conheci. Correra para a rua sem cuidado e quase fora atropelada. Não sei o que deu em um assassino como eu, na época, para salvar alguém desse modo... Mas o fiz. Me atirei para a rua e a resgatei antes que fosse tarde... E tive meus óculos quebrados no processo.

– Ela pagou por eles?

– Sim, mas fez bem mais que isso. Ela me libertou dando-me o melhor dia da minha vida. – ele sorriu para ela pelo espelho, consciente de que sua expressão continha nostalgia, admiração, devoção e algo mais. Se Kira levantasse o olhar, o que será que pensaria? – Mas minha alegria acabou quando o contratante me mandou o alvo, poucas horas depois de ela me deixar.

– Ah, droga. – ela praguejou com um sacudir da cabeça, fazendo o cabelo soltar da mão dele.

– Sim, droga. Também praguejei naquela hora. Mas deixe a cabeça parada, senão a deixarei careca.

– Vai mesmo cortar... – ela começou, mas o palavrão que soltou quando ele juntou firmemente seu cabelo logo abaixo da nuca e golpeou-o rapidamente com a navalha, desconectando os fios de sua cabeça, não era algo que supostamente uma princesa deveria dizer.

Mikhil assistiu Kira saltar do banco e se virar assustada, se afastando até bater as costas no grande espelho em frente. Ela estava chocada, surpresa, abismada e tantos outros adjetivos que a descrevessem naquela situação. Seus olhos dourados viajavam entre a visão do cabelo em sua mão e seu rosto, ainda descrente de que ele realmente fizera o que se propusera a fazer. Provavelmente pensara que apararia a cabeleira o suficiente para não ultrapassar o meio das costas, ou pouco abaixo dos ombros como os de Rany. Na verdade, nem ele se conhecendo do jeito que se conhecia, esperava cortar mesmo o lindo cabelo dela. Mas estava ali, com a arma do crime na mão, pronto para ser acusado e vitimá-la como era preciso.

E ele o faria se fosse para fortalecê-la.

– Você... – ela balbuciou ainda em choque, sem conseguir destravar o olhar do dele.

– Preste atenção em mim, Kira. – ele pediu ao se aproximar, não deixando de notar a quase inutilidade da camisola de seda que penava em cobri-la, postando-se na frente dela e cercando-a com um braço enquanto entregava-lhe o que antes lhe pertencera. – Você não é isso. Você não é fraca, não é uma garotinha indefesa e muito menos alguém que precise ser salva. Você é forte e corajosa. Você não espera para ser salva, você abre caminho e nos encontra na saída com sangue nas mãos e alívio no rosto. Você ensina seus primos a sobreviver e os mantêm vivos mesmo que lhe custe a vida. Você carrega um fardo pesado demais para qualquer um, mas o faz com orgulho e cabeça erguida. Essa é a Kira que conheci e admiro. E é essa que me comprometi a seguir e cuidar. Você não é mais a princesinha no alto da torre. Você não precisa disso para ser notada. Você não precisa mais ter medo de magoar os outros, pois eles dependem de você nesse instante. Você depende de você. Você é uma mulher e deve agir como tal. Mulheres fortes não choram pelo cabelo cortado, choram pela morte e vida perdida.

Ele pausou um momento, levando um dedo ao rosto dela para enxugar uma lágrima que rolara.

– Eu prometo não te tratar diferente, se me prometer não regredir. Aqui fora você é a Kira guerreira, aquela que jurei proteger e pela qual enfrentei as chamas de um dragão para ver a salvo. A Princesa do Tempo já tem muitos que a resguardam, mas pela Kira eu enfrentaria o próprio Tirano sem armas e ferido. – ele sorriu carinhosamente, entregando a ela o cabelo cortado. – Prometi cuidar de você, certo? Agora, vai deixar que eu termine o que comecei?

–-**--

A noite estava calma e enluarada, salpicada de estrelas que se viam dentre as folhas das árvores. Estavam fora dos domínios de Yüeh, mas ainda dentro da grande floresta que a abrigava. Quando saíram do castelo – antes do início dos ritos fúnebres para que a alma de Jhïngurg encontrasse o caminho para o céu dos Dragões – esperavam poder dormir sob um teto, já que a casa podia ser acessada dali. Entretanto, Mikhil (com um estranho olhar no rosto) pediu para que tivessem paciência, pois precisara mexer na planta. Então lá estavam eles, acampando novamente sob as estrelas. O acampamento era pequeno dessa vez, todos se mantinham juntos perto da fogueira, com Leo ocupado afiando suas adagas, Lissa sentada contra uma árvore com um livro nas mãos, cuja atenção se dissipava das letras e se fixava sobre os rostos de todos, e Mikhil – que se mostrava habilidoso com lápis e esquadro. A exceção estava por conta de Kira que se mantinha mais afastada para vigiar (já que descobriu sua incrível capacidade de não dormir), mais contemplativa que vigilante.

E por falar nela, sua mudança foi imensa.

Quando os dois reapareceram (com um olhar estranhamente sem-graça) a primeira coisa que se podia notar era a aparência de Kira. Não tiveram dúvidas de que os dois se acertaram (bem demais), mas a visão dela estava estupenda. Ela podia estar vestindo parte do uniforme de sempre – aquele macaquinho justo, o cinto e as botas –, mas ela parecia mais... Grandiosa que a sala onde se encontraram, não por causa do cabelo e sim pela força que demonstrava. Não era tão curto dessa vez, mas a nuca ainda continuava livre, havia mechas mais longas emoldurando o rosto delicado, deixando-a com traços angulados. A franja continuava inteira, só que fora cortada de modo que pudesse ser usada de qualquer jeito.

E talvez fosse por isso que as coisas entre os quatro estavam um tanto estranhas.

Com a revelação de suas origens, além do ganho do título de Guerreiro Dragão, a intimidade ganhada tão naturalmente pareceu substituída pela tensão. Não só pelo desconhecimento, mas pelo saber de que teriam que rever suas táticas de sobrevivência. O que significava: dar mais crédito a Kira. Mesmo que ela nunca tenha estado fora do palácio antes, seus conhecimentos sobre o mundo ultrapassavam a lógica. Tiveram sorte com o Dragão, mas um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar. Se enfrentassem outra fera poderosa que não compartilhasse dos ideais de Yüeh e Jhïngurg, estariam encrencados.

– O que está fazendo, Mikki? – Lissa perguntou finalmente, colocando seu livro de lado.

– Aprimorando. Já que estaremos juntos por um bom tempo. – ele enfatizou, arriscando rapidamente um olhar para a sentinela distraída. – Estou remodelando a casa. Não vou deixar Dgrov dormir na sala para sempre. Pode estragar meu sofá.

– Muito engraçado. – Leo resmungou. – Vai fazer um quarto para cada?

– Já fiz. Tons de terra para você, azul para a Rany... – Mikhil respondeu com mistério, levantando um olhar enigmático para Kira. – Imagino quais cores ficariam bem para Kira, ela já é singular o suficiente. O que vocês acham?

– Cinza e roxo cairiam bem... Mas tem o amarelo... Difícil. – Leo pensou, observando a prima com curiosidade. – Imagino que esteja acostumada com um quarto bege, uma cama dossel rosa e móveis delicados. Uma suíte no quarto, com vista privilegiada?

– Concordo sobre o banheiro, mas o resto... – Mikhil comentou ausente, sem desviar os olhos da figura estática do outro lado da roda, cujo olhar não abandonava o céu estrelado. – Kira?

– Qualquer coisa está boa. – ela respondeu simplesmente, ainda sem desviar o olhar. – Não preciso de luxos. Não se incomode com trivialidades.

– Se você diz... – ele comentou. – Poderemos entrar pela manhã. Se terminar antes, os acordarei. Descansem por agora. Você também, Kira.

– Se não se importarem, gostaria de falar sobre uma coisa, depois. – Lissa pontuou incerta, ajeitando-se dentro de um saco de dormir, fornecido pela bondade da antiga anfitriã.

– Não quer dizer agora, Lys? – Leo perguntou curioso.

– Depois. – ela negou decidida, virando-se para o lado oposto à claridade da fogueira, chamando o sono rapidamente.

– Ah, Lys... – Leo murmurou num suspiro. – Boa noite, pessoal.

Ajeitando-se em sua manta, Leo desarmou-se, colocou as adagas ao alcance e forçou um sono leve, mas que não o deixasse totalmente adormecido. Mikhil observou o jovem por alguns momentos, antes de voltar sua atenção para Kira. Ela olhava para o céu, aparentemente contando as estrelas. Se não fosse pelo suave movimento de subir e descer de seu peito, ele podia jurar que estava petrificada. E isso o preocupava... A distância dela o preocupava. Esperara um comportamento mais enérgico depois da conversa que tiveram, mas o que recebeu foi uma letárgica frieza.

– Você está bem, Kira? – perguntou cuidadoso ao sentar-se perto dela. – Está muito... Quieta.

– Sim. – ela respondeu com um suspiro. – Jhïngurg encontrou a paz. Está ali, brilhando junto dos outros Dragões das outras eras.

– Sinto muito, mas não consigo simpatizar com ele. – ele murmurou irritado.

– Tostar os outros não deve ser um bom jeito de arrumar amizades mesmo. – ela sorriu debochada. – Deve ter doído perder para ele.

– Não foi isso que me irritou. Já fui assado antes e não cheguei ao ponto de marinar. O que me enfureceu foi ele ter te levado. Ter nos separado e te colocado naquele encanto. – Kira desviou os olhos quando o olhar sério e penetrante dele surgiu. - Pensei que ia te perder de novo.

– Acho que essa é uma lição do dia: comunicação salva vidas. – ela suspirou. – Perdemos tempo demais aqui...

– Do que está fugindo?

– Você viu a barreira, não viu? – ela indagou, olhando-o cansada. – Ela serve para conter os avanços de Erischen. Mas... Se nos pegar, ficaremos presos. Tipo, ela não deve ter efeito em você, mas conosco o resultado será catastrófico. E a cada vez ela se move mais rápido que antes. Tenho medo de não conseguir.

– Vai conseguir. – ele afirmou convicto, sentando-se no mesmo nível que ela. – Se depender de mim, não vou deixar que nada te atrapalhe.

– Obrigada. – ela sorriu um momento e baixou o rosto para a prancheta nas mãos dele, fugindo da proximidade que ele iniciara. – Como está ficando?

– Bom. Estou montando seu quarto agora, vai ficar a sua cara.

– Complicado e estranho?

– Quase isso. Mas de estranha você não tem nada, acredite. – seu olhar era baixo e penetrante, sensualmente fixo nos lábios dela. – Quer ver?

– Já quer me levar pro quarto é? – ele riu, mas no fundo não era má ideia.

– Quem sabe? – ele sorriu, tirando o cabelo dos olhos cansados dela. - Você devia dormir um pouco.

– Durma você, doutor. Estou na minha vigília. – ela argumentou, voltando seu olhar para o céu.

Mikhil suspirou e se afastou dela, voltando para seu canto perto da fogueira. Os minutos passaram enquanto estavam ali, isolados e ao mesmo tempo conectados. Mikhil conhecia o peso daquelas rugas que sulcavam sua testa, a preocupação era algo universal que vinha em níveis diferentes para pessoas diferentes. E as preocupações dela iam além de sua humanidade.

– Mikhil? – ela o chamou. – Canta.

– C-cantar? Cantar o que? – ele gaguejou chocado.

– Só cante. – ela sorriu, encolhendo os ombros. – Você canta bem.

Por um momento ele não teve ideia do que fazer. Parecia que nada mais era apropriado que ficar ali olhando-a como um tolo que era. Quando ela suspirou um “tudo bem” e voltou seu olhar para as estrelas, Mikhil baixou seu olhar para o desenho e recomeçou o trabalho, aperfeiçoando as formas que fizera e incrementando outras. Totalmente consciente do sorriso bobo nos lábios e do retumbar rítmico que saía deles, reverberando uma suave cantiga.

E nunca se sentiu mais feliz por fazer tolices.

–-**--

– Uau! – Lissa exclamou quando a porta foi aberta.

Seu quarto era espaçoso e iluminado, com uma grande janela-balcão branca e portas internas francesas. Tons azuis tingiam as paredes, tal como ele havia prometido, e uma poltrona reclinada fazia par com o grande guarda-roupa, a cama dossel e o criado mudo. E prateleiras, várias delas. Talvez a ideia fosse que mais alguém tivesse sua própria biblioteca.

O quarto de Leo tinha sido igualmente impressionante. Tons de terra e vermelho, como o prometido, mas ao invés de uma cama espaçosa, um futon se estendia sobre uma placa de madeira, onde se guardada, liberaria quase todo o espaço do quarto. Os armários tinham portas corrediças, a janela dava vista para o outro caminho da casa e a porta ficava bem na reta da de Lissa. E se não bastasse todo aquele ar de “Descanso do Guerreiro”, as adagas dele ainda ganharam um suporte especial em madeira que as permitia descansar e cair nas mãos dele quando precisassem.

Não era preciso dizer que o cara ficou admirado.

– Gostou, Rany? – Mikhil perguntou com um sorriso, vendo os irmãos explorarem o cômodo.

– Leo, olha, olha! – ela exclamou maravilhada, puxando o rapaz para a cama dossel.

– Acho que isso foi um ‘adorei’. – Kira comentou aprovando. – E o seu?

– Pode ser aquele no fim do corredor, mas não vou abandonar meu divã lá embaixo. – ele sorriu debochado, levando-a para as escadas. – Gostou das modificações?

– Sim, principalmente as fortificações e as seguranças. Bom trabalho, Mikhil.

– Não me elogie até ver o seu. – ele parou em frente ao quarto que dividira com Lissa e abriu a porta com um toque de mistério.

Kira não achou palavras para expressar o que sentira. Era o mesmo quarto em que dormira durante todos aqueles dias. Ele não mudara uma dobra do cobertor do lugar! Estavam todos os móveis e portas do mesmo jeito encantador que as viu, exceto pelos detalhes. Paredes em tom lavanda e uma penteadeira perto da janela, que ganhara um sofá-baú. Céus! Ele a conhecia tão bem assim?

– De nada. – ele falou em seu ouvido, deixando um leve beijo no pequeno ombro desnudo. – Sabia que ia gostar.

– Você não existe. – ela murmurou controlando a voz. – Obrigada.

– Eu já lhe disse, Kira, eu vou cuidar de você. – ele sussurrou, passando os braços ao redor dela.

– Licença. – a voz de Lissa quebrou o calor do momento. – Kira, posso falar com você?

– Claro, diga. – ela se desvencilhou do médico e se aproximou da prima, recebendo um livro aberto. – Tem certeza disso?

– Sim, mas queria saber o que acha.

– Vejamos as possibilidades. Vamos para o escritório. – Lissa concordou e saiu do quarto. – Mikhil?

– Sim?

– Sobre aquela história... – o olhar dela era sério – Qual foi sua decisão?

– A única que poderia ter tomado. – ele respondeu com um sorriso. – Não me arrependo.

– Valeu a pena? Afinal você foi amaldiçoado pela Ceifeira...

– Sim, muito. Não fui amaldiçoado. – o sorriso dele demonstrava algo além do habitual, era como se ele olhasse para uma deusa. – Ela ficou tão linda, tão forte... Esses anos todos a fizeram bem.

– Que bom. – e ela saiu rapidamente, sem deixá-lo decifrar a expressão que tinha.

Um dia, Kira, te farei entender de que estava falando de você. – ele pensou antes de segui-las para o andar debaixo.


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Notas finais do capítulo

P.S: Como estou trabalhando, os capítulos demorarão um pouco mais para sair, mas por favor não me abandone ;-;



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