Destinados escrita por Tsuki Dias


Capítulo 15
14 - O Livro das Sombras


Notas iniciais do capítulo

E finalmente terminei! Perdoe-me o atraso, mas a vida me sequestrou e não pediu regate. Desculpe. Aproveite o capítulo!



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Leo tinha plena consciência de que todos na sala olhavam para ele e que o estrondo que ecoara momentos atrás partira de suas mãos. Com longas exalações em busca de calma, ele abriu os olhos e observou seus punhos sobre o tampo de madeira da mesa em que estava. Seus dedos estavam brancos pela força que os apertava contra as juntas e reclamavam pelo aperto, o lado de sua mão latejava pelo impacto que causara e seus tendões saltavam sob sua pele bronzeada.

As palavras de Lissa ecoavam em sua mente e eram ampliadas pelo silêncio ensurdecedor da sala... Não, não era na sala. Podia ver as bocas se mexendo para formar sons de sílabas e delas, palavras para formar frases inteligíveis em uma conversação.

O motivo de sua comoção não fora só a decisão de sua irmãzinha, quando pediu para alterarem a rota da jornada para adentrarem o antigo reino das bruxas e seguirem ao Labirinto dos Corvos, onde ela encontraria o Templo Ancestral para alavancar seu aprendizado. Até aí tudo bem, podia apoiá-la em sua decisão e acompanhá-la. Mas, pouco antes de dar seu consentimento e anunciar seu orgulho pela audaciosa decisão dela, o aviso de Kira o congelou no lugar, enchendo a sala e roubando seu ar:

O lugar não aceita aqueles que não têm veia mágica.

Essa afirmativa o fez estremecer. Lissa havia escutado a explicação (provavelmente lera a respeito) com calma e convicção, enquanto ele se sentia afundar no chão. E quando Kira anunciou a todos que ela estaria totalmente sozinha quando passasse pelo portal e Lissa concordou com os termos, o desespero dele se manifestou em forma de um soco na mesa em que se apoiava. A ideia de que sua irmãzinha tivesse que encarar sozinha as possíveis provações perigosas que o tal lugar teria, o apavorava.

– Leo? – Lissa o chamou, apreensiva. – Diga algo, por favor.

– Está louca? – foi o que saiu de sua boca, quando reuniu ar suficiente para fazer sua voz sair. – Ir a esse lugar, sem ter como te ajudarmos se algo acontecer... Você enlouqueceu, Lissa?

O silêncio se seguiu por alguns momentos antes de ele perceber o nome que havia dito na frente de quem. Com o canto dos olhos, viu Kira se esgueirar para fora da biblioteca e levar o médico junto. Sem comentários, sem palavras... Os dois lhe dariam espaço para tentar lidar com a situação com Lissa e somente com ela. Seus assuntos particulares não precisavam ser expostos para companheiros que mal conhecia, por mais que confiasse neles e ela sendo sua prima. Aquilo era assunto de família e queria que continuasse assim.

– Você entende o que está sugerindo? – ele perguntou baixo, olhando para ela com pesar.

– Kira se arrisca toda hora, Mikhil vai e volta das cidades tomadas e você matou um dragão sozinho! Por que na minha vez de provar meu valor tem essa comoção? É porque eu não sei lutar? Ou que minha magia ainda está crua? Pare de ser...

– Como que você quer que eu dê meu consentimento a algo que vai te deixar totalmente sem proteção alguma? Não esqueça que contei com a força de Mikhil quando enfrentei o dragão, contei com sua mágica! Até Kira quando sai sozinha à noite pode contar conosco para ajudar! O meu ponto não é você se arriscar, e sim se arriscar sozinha! Não vamos conseguir chegar até você se for.

– Mas esse é o meu tipo de provação. Eu preciso ir e entender minha mágica... Sozinha. Não espero que me entenda, principalmente agora.

– Como com as crises de depressão? Os longos choros abafados? O bullying na escola? Seu mergulho de cabeça nos livros para tentar entender o que estamos passando aqui e te tornando mais e mais apática? Pelo amor de Deus, Lys, eu te conheço! E você me conhece o suficiente para saber o que eu penso disso!

– Não, Leo, não é uma tentativa de suicídio dessa vez. – ela respondeu baixo, verbalizando o temor que assolava a mente dele. – E você não me conhece mais.

Um calafrio percorreu a espinha do jovem, obrigando-o a endireitar as costas e esfregar o rosto algumas vezes antes de voltar o olhar para a irmã. Mal a reconhecia, na verdade. Estava mais alta, mais madura e mais viva que a menininha com quem convivera. A cabeleira laranja deu lugar a ondas cor de fogo, as sardas se transformaram em pele sedosa e os olhos cinzentos... Céus! Quando na vida teria oportunidade de ver olhos tão magicamente bonitos senão os dela?

– Leo... Você sabe que tecnicamente não preciso de sua permissão, não sabe? – ela falou decidida, observando-o com seriedade e resolução madura.

– Não vou dar meu consentimento a isso.

– E eu sinto em ouvir isso. – ela suspirou ao se levantar para sair. – Tenho que acertar detalhes com a Kira...

– Boa sorte com isso. – e foi ele quem saiu ao invés, irrompendo da porta de entrada e se dirigindo para o mais longe possível da casa e de qualquer coisa pessoal quebrável, se embrenhando densamente na mata, onde pudesse descarregar sua fúria, mas ainda sem se descuidar ou se perder.

Ele só parou quando o sol bateu de leve em seu rosto e viu-se em uma área vazia, preenchida apenas com as árvores em bom espaçamento e baixo tapete de galhos. Seria um bom lugar para extravasar sua raiva e frustração. Tomando sua respiração inicial, colocou-se na posição Base e se preparou para lutar contra o ar, dando-lhe a forma de suas preocupações. Soco, chute, soco, chute...

Assim você não vai derrubar ninguém, Leo. – ouviu em sua mente quando parou para descansar.

Nem mesmo seus pensamentos. – a outra voz completou.

Virou-se surpreso e as encontrou lá, fincadas no chão aos seus pés, pulsantes e sedentas. Estavam fora de suas capas, suas lâminas brilhando ao sol enquanto aguardavam sua mão sobre seus cabos. Mas não eram somente as lâminas que brilhavam, Yu e Min também se faziam notar, tão belas quanto suas formas físicas.

Assim como a vida era feita de extremos, elas eram exatamente o avesso da outra. Ambas se mostravam altas de cabelos longos, mas Yu era uma mulher de cabelos cacheados e roupas mais recatadas. Seu rosto era delicado e austero, exalando paciência e dedicação. Já Min era oposta. Cabelos lisos, rosto duro e angulado mostrando força e poder, assim como seu corpo enxuto e forte. Mas a maior mágica das duas era a dualidade: Yu era a maligna aura escura sanguinária enquanto Min, a benigna alma branca protetora.

Nem imaginava que tipo de vida elas tiveram antes de se fundirem às armas.

– Se eu as tivesse nas mãos antes, teria destruído o lugar. – comentou com um suspiro, sentando-se no chão em frente a elas. – Não sei o que fazer.

Deixe que morra.­ ­– Yu comentou sorridente. – Como ela disse: você não lhe tem direitos.

– É minha irmã, Yu. Não quero que se machuque... – ele gemeu desgostoso, baixando a cabeça nas mãos. – Min, diga...

Ela tem razão, dessa vez. – o olhar da morena o desestabilizou. – Não dá para salvar quem não quer ser salvo. E... Ela não é sua irmã de verdade, Leo, mas mesmo que fosse, deve deixá-la fazer o que deve. Assim como você fez.

– Vocês entendem, pelo menos, um pouquinho da minha aflição? – ele perguntou indignado.

Sim. Não. – as duas responderam em coro e ele suspirou.

– Vocês não estão ajudando. – a voz de Kira ecoou pelo lugar, colocando os três institivamente em guarda.

– Pelos deuses! Se elas estivessem em minhas mãos, poderia ter te matado! – ele exclamou, pegando suas parceiras e aninhando-as contra o peito.

– Não se continuasse distraído desse jeito. – ela sacou sua enorme espada de seja-lá-onde-ela-guarda-aquele-troço e esperou-o atacar. – Vamos conversar, Leo.

É por isso que gosto dela. – Yu comentou excitada enquanto era acolhida firmemente na mão dele. – Vamos Leo. Elas estão esperando.

– Não vai me fazer mudar de ideia. – ele anunciou ao atacá-la. – Não vou apoiar essa decisão!

– Não acha que está sendo incompreensível, Leo? – ela falou impassível, defendendo-se das investidas do primo. – É a vez dela.

– Não vou vê-la se machucar! – ele gritou. – Não vou vê-la se trancar em um espaço escuro e mutilar sua pele, não vou vê-la se jogar em situações perigosas, não vou... Não vou enterrá-la.

– Nem eu. – ela o interceptou e o subjugou, colocando-o de joelhos e apontando-lhe a espada. – E nem ela. Por isso decidimos que a acompanharemos até o Templo, por mais perigos que atraiamos, não sairemos do lado dela.

– Mas... Ela não pode...

– Pare, Leo, pare e pense um pouco: como quer que ela se cure se não a deixa fazer o necessário? Como quer que ela cresça se não a deixa fazer suas próprias decisões? – ela se abaixou e pegou-lhe as mãos, olhando-o no fundo de seus olhos. – Vamos vê-la superar essa provação e testemunharemos seu sucesso... Assim como ela fez conosco.

– Nossas circunstâncias foram diferentes. Não tentamos procurar o perigo, e você tinha sido sequestrada, não se esqueça.

– Seu medo é que ela não sobreviva, ou viva o bastante para não ser mais a garota que conhece? – quando isso o calou, Kira continuou seriamente. – Acredite, eu entendo o que você está passando e o que ela está. Lissa não vai (nem pode) depender de você para sempre, mas ela conta com seu apoio mais do que tudo. Mesmo que seja difícil, tente dar isso a ela, mostre que estará lá. Você não sabe o quanto é difícil acreditar em si mesma quando aqueles a quem ama não lhe dão fé.

Com esse último, ela se levantou e rumou de volta para casa, deixando-o sozinho com suas companheiras.

–-**--

Lissa acordou quando uma porta se fechou no andar debaixo e passos ecoaram pelas escadas, quase encobertos pelo barulho da chuva que resolvera cair ao começo da noite. Levantou-se cautelosa e parou em frente à porta, prestando atenção às passadas cansadas e molhadas que se dirigiam para a porta do banheiro. Por um momento, ela achou que era Mikhil voltando de uma dura emergência, cuja cura para o cansaço seria um banho quente numa banheira. Mas o pequeno tempo que ele passou em frente à sua porta revelou-lhe a identidade do passante.

E isso a fez suspirar aliviada.

O som da água escorrendo ecoou silenciosamente pela casa e durou mais do que estava acostumada. Enquanto estava ali, parada em frente à porta, vestida de uma camisola simples e pés descalços, apoiando a testa na madeira para se impedir de sair e encontrar com seu irmão...

Não... Leo não era seu irmão, não mais desde... Bem, não tinha certeza. Não tinha certeza de quando as coisas começaram a mudar, mas só sabia que algo mudou em algum lugar durante os anos. Ele não era mais só seu grande herói, seu ídolo, Leo passara a despertar nela algo que não podia explicar... E isso a assustava.

A água parou e ela ainda podia ouvi-lo se movendo, secando-se com a toalha, saindo para o corredor e se dirigindo ao quarto. Quando a porta se fechou, Lissa deu-se alguns minutos de coragem e saiu de seu quarto e andou até o dele. Entre ambos não havia mais que cinco passos de distância, mas no momento parecia que quilômetros os separavam. Eras, dimensões... Galáxias.

Quando a porta dele finalmente ficou ao seu alcance, pousou a mão na maçaneta, girou-a e entrou sem bater, como fazia na outra casa, quando eram felizes. Leo estava sobre a cama, com os braços sobre os olhos e corpo bronzeado molhado sob a coberta que cobria apenas a parte debaixo de seu corpo... Seu abdômen nunca tinha sido esculpido, como o famoso tanquinho de Mikhil, mas sempre fora atrativo, assim como seus ombros e braços. Era a primeira vez que o via sem roupa, normalmente ele vestia calças de moletom para dormir. Mas talvez esse comportamento fosse culpa sua, já que sempre invadia seu quarto para ocupar sua cama. Com ele.

– Diga, Lys. – ele falou de repente, virando o rosto para olhá-la. – O que você quer?

– Está vestido? – ela perguntou baixando os olhos.

– Cueca vale? – ele gracejou antes de suspirar. Ele estendeu o braço e chamou-a, abrindo uma brecha para ela se aninhar com ele sob as cobertas. – Vem cá.

Lissa ponderou um pouco e se adiantou, aceitando o convite dele e se aninhando em seus braços, enquanto ele a embalava. Com o rosto em seu peito, ela podia ouvir a batida forte de seu coração e suas inspirações profundas. Calmo, compassado, perfeitamente igual, sem alterações de qualquer tipo. Completamente diferente dela, que ruborizava longe de seu olhar e sentia seu coração bater forte, quase a sufocando.

– Não faça isso, Lys. – ele pediu. – Não se coloque em perigo.

– Como a Kira, o Mikki e você fazem? – ela retrucou, levantando o rosto para olhá-lo. – Leo...

– Não quero que se machuque.

– Eu também não quero que você se machuque. – ela pontuou preocupada. – Kira disse que as armadilhas iriam disparar se alguém sem magia adentrasse o terreno. Eu pensei que... Se eu fosse sozinha, não teria problema já que teria seu apoio. Estava enganada?

– Você sempre vai ter meu apoio, Lys. Sempre.

– Então por que não quer que eu vá?

– Porque você vai estar sozinha. Eu não quero te deixar sozinha. – ele se sentou, fixando o olhar na parede em frente. – Quero te proteger, Lys, mas sinto que estou... Te perdendo.

Lissa não disse nada por longos segundos. Encarando o rosto sério e triste de Leo ela suspirou, passando os braços pelo pescoço dele e o abraçou fortemente, repousando o rosto no arco de seu ombro. Ele sempre foi tão heroico, tão protetor... Era isso que mais amava nele.

– Não vai me perder, Leo. – ela sussurrou. – Eu te amo.

– Também te amo, Pica-pau. – ele sorriu, afastando-se para tomar o rosto dela entre as mãos. – Te amo muito e você sabe disso.

– Eu sei. – ela sussurrou quando ele beijou-lhe o alto da cabeça, como ele sempre fazia desde que era pequena. Como se fosse um lembrete do tipo de visão que lhe tinha. – Vou deixar você dormir.

Antes de ele dizer algo, Lissa se levantou e rumou para a porta, parando um momento com a mão na maçaneta. – A Kira tem sorte...

– Por quê?

– Porque ela tem um cavaleiro de armadura para guardá-la. O meu me vê como irmã. – ela pensou por último, antes de sair pela porta.

–-**--

Leo foi o último a sair do portal que Kira criara. A profusão verde que o tomou podia tê-lo fascinado de início, mas a tensão que despendia por aquele lugar o cobria como um casulo impenetrável. Olhando em frente, viu Kira e Lissa conversando às margens do labirinto, enquanto Mikhil rondava por perto, como se fosse um asteroide viajando em torno de um sol prateado com reflexos roxos.

Por fora parecia um labirinto vivo normal, como vira em outros tantos lugares, mas quem sabia o que aquelas paredes de folhas anguladas escondiam?

– Dá medo quando elas estão assim, não? – Mikhil comentou sério, parando ao seu lado. – Como você está com tudo isso?

– Pirando. – respondeu com um suspiro, levantando o olhar para o céu, onde grandes ilhotas arborizadas flutuavam como nuvens. – Queria ter sua paciência para aceitar as peripécias da Kira.

– Assim que me conhecer melhor vai perceber que não lido nada bem com isso. – ele riu, pousando a mão sobre o ombro do rapaz. – Tenha fé de que ela vai conseguir e reze para que não se machuque. É o que eu faço.

– E dá certo?

– Ela sempre volta viva, não? – ele sorriu uma vez e se afastou, indo de encontro às meninas.

Leo suspirou profundamente e se juntou ao grupo, mantendo seu olhar fixo no portal em frente, onde um caminho verde se abria para aqueles que se aventurariam.

– Pronta? – ouviu Leo lhe perguntar quando parou ao seu lado. Sua voz não passava confiança, muito menos aprovação. Mas ela sabia que ele estaria com ela, independente do que pensasse. – Pode desistir se quiser.

– Hoje não, Leo. – ela respirou fundo e tomou vinte segundos de coragem ante de erguer a cabeça e mirar a entrada. – Estou pronta.

– Preste atenção, Lys: – Kira alertou. – o labirinto irá te testar, do mesmo jeito que vai nos barrar. Tente não ter medo e não esqueça que estaremos com você. Faça o que tem que fazer. Você consegue.

Com um aceno, ela concordou com as recomendações da prima e voltou-se para a entrada do labirinto. Dando as mãos para Leo e Kira (que se viu segurando a de Mikhil), contaram até três e passaram pelo portal, adentrando o labirinto vivo em busca da força de Lissa.

– Lissa! – ela ouviu de alguém quando tropeçou em algo e andou mais para frente, perdendo o contato com os outros.

Firmou-se a tempo e virou-se preocupada, esperando ver seus companheiros em guarda, esperando para atacar a ameaça que viria por eles. Esperou ver Kira desembalando sua imensa espada, esperou ver Leo com as adagas nas mãos e Mikki tecendo fios de prata cortante das mãos. Mas não viu nada... Nada mais que estar sozinha. Atrás de si um caminho conduzia para uma curva, para os lados era o mesmo cenário confuso e em frente uma parede. Não havia mais a visão do portal por onde atravessara muito menos a presença dos outros.

Estava verdadeiramente sozinha.

– LEO! – gritou para o nada, esperando ouvir os ecos de suas vozes. – Kira! Mikki!

Nada. Somente o som do vento.

– Ah, não... – ela lamentou, começando a se apavorar. – Leo...

As lágrimas ameaçavam cair de seus olhos, nublando-os por alguns momentos. Dando-se alguns segundos para entrar em desespero, respirou fundo e se acalmou, virando-se para frente e se colocando a andar.

As paredes vegetais variavam entre o intenso verde amarelado às cores delicadas e vibrantes das flores que apontavam dos galhos, e passavam por seus olhos atentos, revelando curvas e esquinas desorientadoras. Seus instintos a guiavam, ditando o caminho e lhe dizendo para seguir sempre para a esquerda e até o momento, nenhum perigo saltara das sombras para matá-la.

Ainda.

Os corvos grasnavam ao lado de pássaros canoros, confortáveis em seus ninhos, voando ou empoleirados em algum galho próximo. Às vezes pequenos animais se assustavam com sua passagem e se embrenhavam sob os arbustos.

Era um lugar tão bonito! E só queria que Leo estivesse ali para acompanhá-la.

Os pelos de Lissa se eriçaram e ela pôde ouvir, não longe o bastante para se sentir segura, o som de passos amassando os cascalhos. E não, não eram os seus. Pareciam cascos trotando pelo caminho, com se um cervo solitário pastasse do outro lado da parede ou viesse em sua direção. Se bem que algo lhe dizia que não era um animal que iria encontrá-la.

Colocou-se em guarda, preparou um feitiço e esperou, ouvindo a criatura se aproximar cada vez mais rápido. Tudo que precisava era se acalmar e esperar... Esperar...

– Lys. – ela ouviu quando uma mão pesada pousou em seu ombro. Ela gritou e lançou um feitiço, jogando o rapaz longe, contra as plantas.

– Caramba, Lissa! – ele praguejou, segurando o estômago dolorido enquanto se levantava. – Sou eu! Caramba! Isso quase me matou!

– Leo? – ela ofegou confusa, olhando-o de cima a baixo. – É você mesmo?

– Claro que sou eu! – ele gemeou massageando o tronco. – Droga... Essa doeu!

– Onde, raios, você esteve? E os outros?

– Ficaram. O sangue do dragão me deu um passe restrito. – ele ofegou uma vez, antes de relaxar, superando a dor do golpe. – Você está bem? Ouvi seus gritos...

– Sabe onde estão? Eles podem estar com problemas. – perguntou cautelosa, observando-o. – Suas adagas...?

– Tive que deixá-las com Kira. – ele suspirou, passando a mão sobre o coldre vazio. – O que fazemos agora, Lys?

– Tem alguma possibilidade de você não ser o Leo? – ela perguntou temerosa.

– Do mesmo jeito que você pode não ser a Lys. Só vou saber quando as coisas apertarem.

Lissa deliberou por um momento e relaxou um pouco, permitindo que ele se aproximasse, mesmo com a sensação de que ele não era seu irmão. O toque dele não era o mesmo, era pesado e malicioso, o de Leo era protetor e indiferente, como se ela não fosse mais que algo assexuado. Para Leopold, ela não passava de sua irmãzinha, uma menina que nunca cresceria a seus olhos, que seria sempre uma criança, mesmo que tivesse com setenta anos de idade.

– Lys? – ele a chamou, pousando a mão sobre seu ombro. – Vamos voltar. Os outros estão preocupados.

– Não! – ela respondeu decidida. – Preciso continuar. Se quiser me acompanhar, venha. Mas não tente me fazer desistir.

Leopold não respondeu. Afastou-se dela e assentiu com a cabeça. Ela concordou também e se pôs de volta ao seu caminho, cuidando dela mesma e dele, já que ele estava tecnicamente indefeso.

Ainda não tinha certeza do porque de ter permitido aquele ser acompanhá-la. Seus instintos lhe diziam para dispensá-lo antes que fizesse algo ruim. Mas somente a imagem dele, de Leo, a acalmava, ela sentia que podia superar qualquer coisa.

Inclusive ele.

– Por aqui, Lys. – ele parou num caminho afrente. – Acho que é por aqui.

– Não é por aí. – ela informou, andando na direção contrária.

– Lys, pelo amor! Pare de teimosia e me siga logo! Vai acabar se matando desse jeito!

– Pare você de tentar me sabotar!

– Sabotar? Não vê que estou tentando te ajudar? Que estou tentando te levar a salvo para junto dos outros? – ele inquiriu exaltado, elevando a voz mais do que deveria. – Eu sou seu irmão!

– Não, você não é. – ela gritou e o silêncio reinou. – Eu não sei o que você é, nem o que significa para mim... E não ligo que me acompanhe, mas pare de tentar confundir meu coração ainda mais. Por favor, seja lá quem você for.

O Falso-Leo não respondeu, olhou-a com um misto de surpresa e incredulidade e calou-se, afastando-se dela e baixando o olhar. Olhando-o atentamente, ela podia ver certos traços nele que nunca vira em seu irmão, como o cabelo mais espesso e a pouca pelugem aparente em suas roupas opacas. Naquele primeiro momento pensou que seu irmão estava ali com ela, mas depois que o observou melhor, não tinha nada do Leo naquele ser... Era uma falsificação fraca que quase a enganara. Quase.

– Desde quando você sabe?

– Desde o primeiro momento.

– Então por que deixou que eu a acompanhasse?

– A imagem que assumiu me dá força, mas preciso superá-lo. Não quero mais fazê-lo sofrer. – ela revelou encolhendo os ombros, lembrando-se do modo carinhoso como ele costumava olhá-la.

De repente o ar se tornou mais pesado e antes que os dois se preparassem, um grande Templo em pedra e barro se mostrou diante deles, iluminado por piras e tochas, com colunas e paredes adoradas por flores e pinturas simbólicas. Uma grande escadaria os levava para a grande porta, onde duas tochas portadas por esculturas de Anúbis e Hórus indicavam a entrada e os dizeres em rúnico acima do portal.

– Você achou... – ele balbuciou chocado. – Como?

Lissa não respondeu, afastou-se dele e se pôs a subir a grande escadaria com determinação. Sua intuição lhe dizia para entrar e ser forte, que era a hora de ter suas respostas. Desde que se lembrava, tinha aquela voz interior lhe dizendo o que fazer, instruindo-a, guinando-a, mesmo quando dava preferência para seu lado pragmático, sua intuição gritava forte e se não a seguisse, coisas ruins aconteceriam.

Como quando perdeu Melissa.

– Espere! Pare, Lissa! – o Falso-Leo a parou, puxando-a pelo braço e enterrando-a em um abraço. – Não vá. Por favor.

– Isso é realmente algo que o Leo diria. – ela sorriu e se afastou. – Eu preciso ir.

– Mas se for, pode não voltar mais! – ele exclamou alarmado.

– Isso pode ser uma coisa boa... – ela sorriu tristemente, seguindo para seu destino. – A Lissa que vê agora não pode mais sobreviver nesse mundo. Ela tem que sumir.

– Vai sacrificar a si mesma para ter poder? – ele a barrou no final da escadaria, impedindo-a de entrar pela porta. – Está tão sedenta assim?

– Está enganado, não quero poder, nem magia, nem nada disso! – ela abriu os braços, mostrando a situação como um todo. – Não queria estar aqui para começar. Queria estar em casa, ouvindo Ceci brigar com Lupe por causa da toalha sobre a cama e ouvir Leo rir dos dois. Queria ir para a escola no último dia de aula e me despedir dos que ainda falavam comigo, antes de ir embora para o MIT. Queria... Queria não ser frustrada, queria não ser depressiva, queria não desejar meu irmão de criação e colocar tanto sofrimento nos ombros dele. É isso o que eu queria e abriria mão da minha maldita magia com prazer para isso.

– Então por que está tentando aumentar seu poder?

– Não é poder que eu busco. Não é só isso que esse lugar oferece.

– E o que você quer aqui?

– Quero... – ela parou e suspirou. – Quero conselhos... Quero saber como posso ajudar mais nessa jornada e como poderemos ter nossas famílias de volta. Quero saber quem é a Lysvrill... Dane-se a magia ancestral! Já tenho problemas demais para controlar a que já possuo.

– Você é estranha, menina. – ele sorriu consternado e abriu-lhe passagem. – Espero que encontre o que procura.

– Obrigada. – ela sorriu levando uma mão ao rosto dele e sentindo o despontar de uma barba espessa. – Poderei ver sua verdadeira face?

– Não, desculpe. – ele negou afastando-se. – Vá logo, então. Seus amigos a esperam.

Lissa assentiu e voltou-se para a entrada escura, sob os olhares das imagens que a cercavam, Lissa adentrou o Templo, munida de coragem e determinação, deixando seus medos e dúvidas do lado de fora, em companhia do falso-Leo.

Estava escuro, escuro demais para ver alguma coisa. Lissa andava com cuidado, com os braços estendidos para não bater em nenhuma parede e os pés se arrastando para não tropeçar ou cair em algum fosso com cobras. Podia ter feito um feitiço de luz? Sim e o fez, mas a pressão que o lugar exercia era tão forte que nada do que tentara surtiu efeito. E isso a apavorou.

Lissa sempre prezou a clareza das coisas e estar totalmente no escuro sem perspectiva de iluminar seu caminho a desmantelou. Pensamentos sombrios rondaram sua mente, lembrando-a das incógnitas de seu passado e do desespero depressivo de seu presente. Todas as questões que tentara esquecer sobre seus pais verdadeiros, sobre o que sentia por Leo e por Melissa... Sobre ela...

Lágrimas ameaçaram cair de seus olhos ao pensar na antiga amiga. A conhecera no primeiro ano de escola e se tornaram mais que inseparáveis. Até adotara parte do nome dela! Melissa era o tipo molequinho, desbocada, despojada e sem nenhuma feminilidade, seus olhos era pequenos e profundamente escuros, assim como seus cabelos com corte masculino. Muitos diziam que as duas se completavam tanto que pareciam um casal e naquele momento descobriu-se desenterrando pensamentos positivos sobre tal coisa. Mesmo que saíssem na noite para se divertir e paquerar – rapazes na maioria das vezes – pegava-se a desejando em segredo e usando Leo como desculpa.

Por sua causa Melissa se machucara tão gravemente que seus pais tiveram que mandá-la para longe, para um hospital especializado naquele tipo de fratura e foi por sua causa que Leo fora expulso do Dojo em que treinava e enfrentara uma inquisição. Por uma mentira, fizera sua melhor amiga brigar com seu irmão... E ele a machucara por acidente.

– Ah, Mel... Eu sinto tanto... Desculpe ter mentido e causado tantos problemas...

As mãos de Lissa pararam em um bloqueio e uma porta luminosa se interpôs em seu caminho. Afastou-se um pouco quando ela abriu-se sozinha e revelou um quarto: o seu quarto. Estava igual ao que sempre fora: espaçoso, paredes em tons de creme e móveis brancos. Prateleiras brancas sustentavam livros, dois criados-mudos guardavam coisinhas e apoiavam as luminárias que usava quando não queria ler com a luz geral. Uma imensa pilha de bichos de pelúcia se erguia do canto perto da escrivaninha, em frente à parede azul onde sua cama dupla de madeira (a outra se guardava no gavetão embaixo) estava encostada.

No closet, vozes atraíram sua atenção: era ela e Melissa, no dia em que procuravam uma roupa apropriada para a festa da noite... Dia em que tudo deu errado.

Sinto muito, Mel... – sua imagem falou para a outra. – Mas eu gosto dele...

Mas ele não te ama! – ela rugiu.

Ama sim... Ele disse...

Não quero ouvir! – Melissa gritou e saiu em disparada pela porta do quarto.

Lissa não queria lembrar-se do que ocorreu depois, do confronto que a amiga teve com Leo e seu acidente. Se não fosse a maldita mentira que tinha contado, ainda a teria ao seu lado.

– Eu sei Mel, eu sou covarde... – comentou para si mesma e virou-se para a porta, abrindo-a em seguida. – Ah, não...

O banheiro que se seguiu era escuro, pouco iluminado pela luz que surgia da porta entreaberta. Na banheira, encharcada até os ossos, estava ela mesma, vazia, desesperada e depressiva. A culpa a corroera tanto que pensava seriamente em terminar logo. Melissa estava no hospital e seu irmão passara a noite na cadeia por tê-la machucado. Além das três fraturas no fêmur e rótula, ela recebera alguns pontos na cabeça. A briga que ela iniciara com Leo por sua causa se agravara quando Melissa tentou agredi-lo, sem opção, ele se defendeu e acabou dando um golpe errado nela, que perdeu o equilíbrio e caiu do segundo andar. Os dois não se davam bem, por isso a polícia o deteve como suspeito durante as investigações.

Era o pior cenário que alguém podia estar.

– Não faça isso, Lissa... – sussurrou para sua imagem, que acabara de levar uma gilete ao braço.

O corte que fez a surpreendeu, pois passara longe das veias principais. Em sua memória aquele momento datava o dia em que tentou suicídio, mas o que vira era algo totalmente diferente. A menina naquela banheira não estava emparelhada com sua mente pragmática, ela estava engajada em seu lado espiritual e desenhando intuitivamente pequenos círculos com sigilos nos braços. As palavras que murmurava fazia-os sumir e davam-lhe a oportunidade de refazê-los. Era um feitiço e ao invés de queimar ervas ou papel, estava marcando na pele. E foi aí que Leo irrompeu a porta, tentando impedi-la de fazer algo que nem pensou em cogitar.

– Quem sou eu? – perguntou abismada, vendo a imagem de Leo socorrendo-a desaparecer.

Lys... Lys... Venha aqui venha! – ela ouviu de uma voz suave, acolhedora e conhecida.

Virou-se ávida e deu-se num jardim maravilhoso, mais bonito até que aquele do palácio em que Kira morava. Na fonte que jorrava águas límpidas, uma criança brincava com a água e a fazia espirrar no bebê ao lado, arrancando gargalhadas gostosas. Não sabia identificar bem quem eram as crianças, pois os cabelos e olhos eram esbranquiçados, mas algo lhe dizia que uma era Kira...

E a outra era ela.

Brincando com água, danadinhas? – a mulher, dona daquela voz gostosa de ouvir, se aproximou da fonte, trajando um belo vestido longo, com seus cabelos claros esvoaçantes e largo sorriso estampado. Não podia vê-la, uma sombra encobria-lhe o rosto fino, mas algo lhe dizia que era linda. Tão linda quanto um raio de sol.

Ceryse! – outra mulher apareceu, trajando uma blusa negra decotada e calças largas fluídas que se moldavam ao seu corpo com o vento. Ela se aproximou rápido e pegou a bebê nos braços, beijando-a carinhosamente e observando-a com toda atenção. Cabelos longos e escuros... Olhos de ametista bruta... Aura visionária de saber e perigo...

Anami.

Terminou tudo? – Ceryse perguntou preocupada, pegando a menina no colo. – Ana... Não estou certa disso...

Precisamos continuar, minha amiga. Elas dependem disso.

São crianças, Anami! E a coroação será amanhã...

Nosso destino já está selado... Não posso mais mudá-lo.

Eu sei, mas não queria me separar da minha família. – Ceryse soluçou, abraçando a filha com pesar. – Isso é tão cruel...

Muito... – Anami suspirou, baixando o olhar para a bebê que brincava com uma mecha de seu cabelo. – os anos que perderei não serão nada comparados ao que você vai perder... Sinto tanto, Xhab!

Não mais do que eu... – ela suspirou e a imagem desvaneceu.

– Anami sabia que Xhab iria morrer... Ela sabia de tudo... – Lissa comentou chocada, percebendo a imagem mudar novamente. – Esse é...

Anami caminhava em direção à porta da mansão com dificuldade, sangue escorria de seu flanco e ela mancava. Seu vestido cerimonial estava rasgado e pendurado em trapos em alguns pontos. Poeira e fuligem pintavam sua pele junto com sangue, pedaços viscosos e pedrinhas vermelhas caíam de seus cabelos... Mas em seus braços, o embrulho estava intacto.

Se você estiver me ouvindo, Lysvrill, saiba que não estará sozinha. – ela dizia enquanto andava, com os pés descalços sendo torturados pelos cascalhos ásperos da entrada. – Saiba que a amamos muito e que Xhab também a amava. Colocá-la-ei em segurança até o dia em que virá nos salvar, junto de Leo e Kira. Não os odeie pequena... Odeie a mim por tudo que farei vocês passarem, mas não desconte em Kira, ela já sofrerá demais por minha causa. Você é uma parte importante, Lys, portanto seja poderosa, pois você é quem testará os limites dos outros, além do seu. É você quem pode mudar a rota que tracei e espero que não se alie ao assassino de Ceryse... Mesmo que ele esteja em seu destino. Seja forte, querida, olharemos por você.

Anami parou de falar quando Ceci e Lupe apareceram à porta. Parecia que a conversa demorara horas por causa de todos os detalhes e instruções que Anami tivera que lhes dar ao entregar a criança aos seus cuidados. Todo o maldito plano... Céus! Tantas coisas... Como ela pôde planejar todas aquelas coisas?

Anami, fique e descanse, você não pode lutar assim. – Ceci suplicou.

Não vou lutar hoje, minha amiga... Não hoje... – Anami suspirou e tossiu, cuspindo sangue no processo. – Leo, se aproxime, por favor.

O garoto apareceu à porta, parando com receio em frente ao pai, que os olhava com preocupação. Leo estava do mesmo jeito que se lembrava: o mesmo menino magrelo e alto que a importunara quando criança, mas que nunca deixara de protegê-la.

Prometa que vai cuidar dela, querido. Prometa que vai amá-la como sua própria irmã.

Prometo, Tia Anami. – e ele selou aquela promessa, apertando a mão dela.

– Então... Então é isso... – ela balbuciou abismada.

A imagem se dissipou, revelando a ela um altar de pedra, onde um livro grande e antigo de capa de couro e adornado de pedras e fios de metal estava suspenso no ar, iluminado pela luz que provinha de uma janela circular bem acima na parede assim como candelabros ao redor. O cheiro de incenso inundava o cômodo e Lissa percebeu o quão apertado era. Na verdade eram quase cinquenta passos do meio da sala até as paredes, a porta por onde entrara estava mais que visível.

– O Livro... – ela murmurou se aproximando do pedestal. – Ele existe mesmo...

A vontade de tocar o objeto a dominou, mas lembrou-se do real motivo de sua ida lá: respostas. Se tocasse o livro e pegasse seu poder... Não queria imaginar as consequências. Aproximou-se com respeito e flutuou a mão sobre a capa, fechando os olhos em seguida e invocando os sábios guardiões. Seriam eles quem a auxiliariam naquele momento e lhe dariam respostas.

– Invoco agora o poder que há em mim, que o círculo se trace a minha volta e purifique esse local, que os elementos, os deuses e os adentrem esse espaço e sejam bem vindos. Àqueles que guardam o livro, convido-os a se juntar a mim e peço-lhes que ouçam minhas preces e dúvidas. Que assim seja e assim será.

Lissa repetiu o encantamento até sentir que estava completo. O circulo mágico estava traçado e ela podia sentir a presença poderosa daqueles que invocara, abriu os olhos e sorriu curvando-se em respeito às três figuras em mantos que a observavam atrás do altar do livro. Eram os mestres anciões da magia e protetores do conhecimento sagrado. Se desmentisse o que dissera para o falso-Leo, as consequências seriam mortais.

Mas, felizmente ela não era mentirosa.

– Saúdo-os e agradeço pela presença...

O que você procura, menina, tem um preço a se pagar. – um deles falou sem deixá-la continuar. – O que oferecerá em troca?

– A única coisa de valor que tenho e... E que seríamos bem melhores se não existisse. – ela falou pesarosa, tendo a imagem do irmão na mente. – Será esse o meu sacrifício.

–-**--

Kira nunca sentiu tanta falta de Taiga quanto naquele momento. Ao ver a orda de lobos ferozes de dentes afiados e selvageria mortal, a fez desejar ter o poder de se transmutar como sua protetora, assim poderia rugir alto e afugentá-los para que não precisasse matá-los. Mas infelizmente não podia fazer nada além de gastar o pouco de energia que tinha para sustentar o campo de força em torno dos companheiros.

Leo estava mal, inconsciente no chão com grandes sulcos nos braços e pernas que minavam sangue por causa das mordidas que recebera ao enfrentar os animais para poder ter acesso ao labirinto. A tentativa teria dado certo se os ramos espinhosos não tivessem barrado sua entrada e terminado de rasgar sua pele. Mas não estava preocupada com o primo, Mikki estava fazendo um bom trabalho em curá-lo, o que estava incomodando-a era o estrago na perna do médico, que ignorava imprudentemente.

– Está tudo bem aí? – ela perguntou sob o fôlego, sentindo o suor escorrer.

– Estaríamos melhores se nos deixasse matá-los! – Mikhil praguejou. – Aguente mais um pouco enquanto me curo!

– Cuide logo disso! Eu suporto aqui... – ela ofegou cansada, dobrando um joelho ao chão para firmar-se. – Guardiões como esses são dotados de magia, não podemos matá-los. Vem logo, Lys...

A barreira que fizera começava a ruir e os lobos guardiões que os rondavam investiram contra a parede protetora, acelerando o processo. Kira se empenhava para manter o controle, mas além de sentir suas forças se esvaindo, podia ver um focinho afiado penetrando na proteção perto de seu rosto.

– Kira! – ouviu Mikhil gritar quando o lobo irrompeu a barreira e conseguiu derrubá-la.

– Não se mova! – ela gritou lutando com o animal, enquanto deixava seu poder fluir e envolver os companheiros. A cúpula os manteria seguros lá dentro e pelo estado em que estavam, não poderiam ir longe. Nem ela, no caso.

Quando – de um modo milagrosamente impossível não pergunte como – Mikhil irrompeu a barreira dela, mesmo estando machucado, e se chocou contra o lobo que tentava degolá-la, engajando-se numa luta feroz e frustrada. Kira quase podia ouvir a sombra dele gritando em frustração por não ser permitido matar.

– Mikhil! – ela gritou quando mais deles se juntaram sobre o médico e um dele abocanhou-a no ombro e arrastou-a para longe do primo, que começava a despertar. – Não acorde, Leo. Não acorde, Leo. Não acorde...

– Lys...? – ele sussurrou, virando o rosto para a entrada do labirinto.

Uma rajada de vento varreu o local, derrubando alguns lobos e chamando a atenção de todos. A entrada, antes coberta por vinhas e espinhos, se abriu num clarão e revelou uma figura esguia que carregava alguma coisa. Os lobos pararam o ataque e uivaram em saudação, afastando-se e entrando na floresta quando receberam a ordem da figura.

– Deu certo? – Kira perguntou e o vulto luminoso assentiu. – Graças aos Deuses. Cuide do Leo, vou ver o Mikhil.

Quando a luz finalmente se dissipou, revelando quem era, Kira se levantou rápido e se dirigiu ao médico, que se ajoelhara de costas para ela e segurava o braço quase arrancado no lugar.

– Como está aí? – ele negou. - Deixe-me ver, Mikhil!

– Não precisa. – ele grunhiu quando apertou a sutura de suas linhas em torno do braço. – Como você está?

– Cura natural em andamento aliado a uma boa proteção. – ela mostrou o ombro, onde pequenas linhas rosadas começavam a desaparecer. - Não faça aquilo novamente.

– Ainda bem que você não manda em mim. – ele riu, escorando-se nela. – E Lissa?

– Deu certo... Olha. – ela apontou para a prima ajoelhada ao lado do rapaz, flutuando as mãos brilhantes sobre os ferimentos. – Falta pouco agora...

– Sim, logo eles não vão mais precisar de nós. – Mikki constatou com aprovação, sentindo a tristeza de Kira. – Isso não é bom?

– Precisamos sair daqui. – Kira constatou séria.

– Um segundo. – Lissa olhou para frente com olhos brilhantes e um portal se abriu, revelando a bela sala de Mikhil. – Podemos ir.

Kira entrou com Mikhil e, depois de depositá-lo numa poltrona, voltou e ajudou Lissa a carregar Leo, que precisaria de algo contra o veneno dos espinhos. Lissa se manteve calada, apenas acompanhando a situação. Mesmo Kira estando fraca, ela conseguiu cuidar dos rapazes, enquanto Lissa se ocupava com antídotos e unguentos.

– Eu que devia estar trabalhando. – Mikhil riu nervosamente quando a ruiva cobriu a sutura com a pasta. – Coyrst! Isso dói mesmo!

– Não reclame tanto. Até médicos se machucam. – ela respondeu vazia.

– O que foi? – perguntou preocupado e ela negou. – Fale comigo, Lissa.

– Descobri coisas lá, coisas sérias.

– Que tipo? – Kira apareceu, segurando o pote que usara para pegar a pasta que passara em Leo. – Lys, o que você descobriu?

– Descobri que Anami é uma cretina... E que não sou obrigada a seguir o caminho dela. Ou te ouvir, Prima.


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Notas finais do capítulo

Coyrst, na língua do Mikki, seria mais ou menos como aquele palavrãozinho que agente solta quando bate o dedinho do pé na quina do pé da mesa e dói para caramba.



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