7 Heranças escrita por Pedro_Almada


Capítulo 4
De Volta A Roma




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/58234/chapter/4

De Volta A Roma

 

Em algum lugar em Roma, no meio da tarde, um dia após o fim da Guerra

 

            Gabriel acordou sentindo como se sua mente vagasse em um espaço vazio, sem corpo, nem sensações, ou qualquer expectativa de se levantar. Ficar ali, preso àquele mundo sem sentido era tudo o que precisava, tudo o que queria. Se pudesse, viveria dentro dessa bolha escura e insensível pela eternidade.

            Então o choque térmico o despertou abruptamente. Gabriel ofegou, sentindo duas mãos firmes puxando-o para cima, para fora de algum recipiente cheio de um líquido bastante familiar.

            Seu corpo girou alguns segundos, até sentir suas costas baterem levemente no chão. Estava fora daquele mundo particular e tão desejado. Por um breve momento pensou em amaldiçoar as mãos que o tirara de lá, mas percebeu que fazia parte do procedimento. Não poderia ficar muito tempo lá, ou sua mente seria consumida.

            - Você sempre se deixa levar pelo Curadouro, Gabriel – uma voz idosa e rouca ronronou como um cão cansado.

            Gabriel apoiou usando a palma das mãos como base para erguer o corpo. Ficou de joelhos por alguns segundos, olhando a volta, fitando cada centímetro do ambiente.

            Era uma sala redonda. Na verdade uma espécie de banheiro, com azulejos brancos e desenhos de silhuetas que lembravam dragões. A imensa janela oval permitia a entrada do sol vespertino, já poente. No centro, de onde Gabriel acabara de sair, havia uma banheira feita de mármore, tão brilhante que era possível ver o seu próprio rosto refletido. Em seu interior um líquido morno e avermelhado escorria pelas bordas. Ele percebeu que todo o seu corpo, coberto apenas por uma túnica branca, estava ensopado, as pontas de seus dedos enrugadas e toda a sua pele flácida e esticada. Ficara muito tempo na banheira, pensou consigo mesmo.

            - É tranqüilizante – murmurou Gabriel, encarando o velho.

            - É a morte – o velho respondeu carrancudo – nunca consegui ficar mais do que duas horas debaixo dessa droga. Não sei o que vocês crianças vêem de tão interessante nisso?

            O homem já de idade correspondia ao que sua voz passava. Não estava acabado, mas as rugas eram claras em seu rosto surrado pelo tempo. Suas mãos, repletas de manchas escuras, tremiam vez ou outra. Seus olhos eram de um preto intenso e suas sobrancelhas eram grossas e grisalhas, assim como os cabelos volumosos. Ele trajava uma túnica branca com capuz e um cachecol vermelho que escorria até o chão. Desenhos de dragões estavam por toda parte em sua roupa veste nada convencional.

            - Estou aqui há quanto tempo? – perguntou Gabriel.

            - Não mais do que vinte horas – ele disse – Kawnitcha te pegou de jeito, não foi?

            O simples pronunciar daquele nome fez Gabriel regressar à noite anterior. Armand, Ferdinand. Mortos em combate. Os talismãs completamente destruídos.

            - Os talismãs... – começou Gabriel, aos murmúrios.

            - Destruídos, eu sei – o velho interrompeu.

            - Nicolai… - Gabriel o chamou pelo nome.

            - Palatino Wolfgang III – o velho corrigiu – não se esqueça que, debaixo desse teto, acima desse solo, não somos amigos. Você é meu soldado.

            - Certo... – Gabriel torceu a barra de sua túnica, deixando o resto do líquido escorrer – Bem, Sr. Grandíssimo Palatino Wolfgang III – o velho lançou um olhar desaprovador, mas divertido – Estão dando início à Conferência.

            - Não será uma Conferência – avisou o velho Nicolai – será uma Assembléia.

            Gabriel arqueou as sobrancelhas, surpreso.

            - Meio radical, não acha?

            - Perdemos dois dos nossos Guardiões foram mortos...

            - Armand não era um Guardião – corrigiu Gabriel um tanto quanto presunçoso.

            Sua interrupção despertou em Nicolai um olhar de profunda censura, ou talvez escárnio. Era difícil descrever.

            - Armand foi mais corajoso do que qualquer um de vocês. A prova disso estava dentro do coração dele... Um bravo soldado... Mas, como eu dizia – Nicolai pigarreou, e Gabriel não ousou interromper outra vez – perdemos dois dos nossos e, de quebra, vocês abriram a temporada de caça aos herdeiros. É bom estarmos preparados. Então não me venha com essa de “Assembléia Extraordinária é radical demais”.

            - Eu não disse extraordinár...

            - Cala a boca, moleque.

            Gabriel não pôde evitar o riso, mas com profundo respeito.

            - Já sou meio velho para ficar me chamando de moleque ou criança, não acha, Nicol... Digo, Grandessíssimo Wolfgang III.

            - Velho demais? Você tem, o que? Trinta e dois anos. Acha isso “velho”. Vou te dizer o que é velho, meu JOVEM. Assistir a construção de Roma, a ruína da mesma, lutar contra bárbaros do século IV, isso sim é ser velho. Você é só um feto crescido.

            Gabriel deu de ombros, ainda sorrindo. Conhecia bem aquele velho carrancudo. Era gentil na maioria das vezes, mas tinha o hábito de aplicar lições de moral em momentos inconvenientes.

            - Você vai assim à Assembléia? – perguntou Nicolai, presunçoso.

            - Não quero tirar a atenção das garotas da corte – ele brincou.

            Nicolai balançou a cabeça negativamente, dando as costas ao rapaz de desaparecendo de vista, fechando a grande porta de madeira envernizada ao passar.

            - Suas roupas estão no seu quarto! – gritou Nicolai do outro lado – comporte-se dessa vez, Gabriel. Lembre-se, você também é um Wolfgang, respeite esse nome, honre-o, e ele honrará você também.

            - Obrigado Nicolai. – Gabriel caçoou – Vou tentar me lembrar disso.

 

            O grande palácio ficava em um ponto privilegiado em Roma, acima de uma das colinas. A Colina de Palatino. A setenta metros do chão, o grande castelo, antes em ruínas, antiga habitação de imperadores romanos, fora restaurado por importantes famílias do país, preservando fielmente a arquitetura “primitiva”.

            Ocupava quase todo o topo da colina. Em uma das encostas ficava o fórum romano. Na outra extremidade, o milenar circo Máximo, agora transformado em um museu ao ar livre.

            Dentro do castelo, uma movimentação longe dos olhares curiosos movimentava os corredores e quartos. Centenas de pessoas vestidas com túnicas de diferentes tons de vermelho caminhavam ansiosas e, de certa forma, apreensivas. Com oito imensos andares, o palácio mais parecia uma masmorra floreada, mas ninguém poderia negar o quão imponente e belo era a construção.

            Em um dos milhares de quartos, Gabriel se encontrava nos aposentos do quarto andar, no fim do corredor da ala norte, onde podia-se ver as ruas movimentadas da cidade. Gabriel encontrou suas roupas dobradas com muita dedicação sobre sua cama. Sentiu o cheiro de lavanda, apreciou a textura do tecido e, imensamente agradecido por ainda estar vivo, vestiu-se com tanta paixão, como se um simples ato de enfiar as pernas em uma calça limpa fosse motivo de comemoração. Sim, era bom estar vivo.

            Estava pronto para sair. Acabara de abrir a porta do seu quarto. Uma longa cabeleira ruiva saltou sobre ele, derrubando-o no chão.

            Gabriel sentiu o impacto de um corpo se chocando com o seu agressivamente, propositalmente. Sentiu dedos segurarem seu ombro e, com uma força absurda, dois lábios se prenderam aos seus, em um beijo quente, um “bem-vindo”, com grande estilo.

            Gabriel, surpreendido, segurou os ombros da jovem ruiva, afastando-a alguns centímetros. Ela ainda permanecia debruçada sobre ele, exibindo um belo sorriso rosado, olhos cor de carmim e sobrancelhas finas e desenhadas, num tom ruivo mais escuro.

            - Gwendolyn Frost – aclamou Gabriel depois de reconhecer a mulher, como quem anuncia um nome de debutante.

            Ela revirou os olhos, sentando-se ao lado do rapaz. Ele se apoiou pelos cotovelos, encarando a jovem com um sorriso maroto.

            - Não me chame de Gwendolyn – ela pediu, impaciente – Gwen, apenas Gwen.

            - Ora, seu nome é lindo – ele riu – tão lindo quanto o meu traseir...

            - Termine sua frase, e eu te prometo que Nicolai Wolfgang será pai de um homem morto – ela pressionou o nariz do rapaz com a ponta do dedo.

            - Confesse. Estava preocupada. – ele riu.

            Gabriel conseguia ser tão infantil quando estava fora de perigo, que sua fama de desordeiro se espalhara quando tinha apenas doze anos.

            - Não seja tão egocêntrico. Vamos, a assembléia está para começar.

            Ela se levantou, puxando o rapaz pelo pulso. Ele parou abruptamente, puxando-a para perto de seu corpo. Ele a fitou com um olhar cauteloso, beirando à preocupação.

            - Gwen... Prometa-me que não vai se tornar uma Guardiã – de repente, sua expressão séria tinha se restaurado. Era o homem maduro e preocupado da noite anterior.

            - Gabriel, já conversamos sobre isso várias vezes.

            - Gwen! Você pode escolher! – ele falou, levemente aflito – escolha algo mais seguro. Não um guardião.

            - Eu me preparei a vida inteira para isso, Gab. Não me faça abandonar isso.

            Ele a encarou por alguns minutos, sentindo as palavras dela acertarem seu rosto como uma bofetada. Ele não podia, nunca, fazê-la mudar de idéia.

            - Hoje eles vão nomear outros Guardiões – ela disse – eu quero isso.

            - Então certifique-se que ficaremos juntos em nossa guarnição – ele pediu, quase como uma ordem – alguém precisa te proteger.

            Ela deu uma risada sarcástica.

            - Sua função não é me proteger, Wolfgang IV. – ela enfatizou o “quarto”, deixando claro a posição de extrema importância de Gabriel – os herdeiros são nossa prioridade.

            - É bom que saiba o que eu está fazendo.

            Ela assentiu. Encarou o rapaz por um breve momento.

            - Está tudo bem? – ela perguntou, enfim.

            Ele ficou pensativo.

            - Acho que não... E você?

            - Me sinto muito bem. Sinto muito.

 

            Gabriel e Gwen seguiram um cumprido corredor, largo e rodeado de antigas armaduras usadas como esculturas ornamentais. A luz de vários lustres iluminavam eficientemente cada passo. Não demorou até chegarem ao enorme salão.

            Parecia uma mescla abóbada, salão orquestral e anfiteatro, cheia de assentos estofados com camurça vermelha, cabines superiores e lugares privilegiados. O teto, oval com uma corrente dourada formando um dragão no ar, se estendia em todo o salão, iluminando com tochas gigantescas. No centro do salão, um palco fora feito com um púlpito de mármore e cortinas com estampas de dragões. O animal mitológico estava em toda a parte.

            - Vai começar – avisou Gwen.

            - Espero que nunca te aceitem – desejou Gabriel.

            - Eu decido por mim. Sou uma Eupátrida, lembra-se?

            Dizendo isso, ela deu as costas para o rapaz e sumiu em meio a multidão que começava a aparecer. Gabriel se contentou com a derrota e procurou um lugar para se assentar.

            Após um longo período de organização, um homem já velho caminhou até o púlpito. Nicolai. Sua narração sobre os acontecimentos foi longa. Ele mencionou os fatos históricos, os acontecimentos dos últimos anos, enfatizou o motivo de estarem ali, a necessidade em nomear Guardiões.

            Gabriel ouviu atentamente, mas seu pensamento não se desprendia da jovem garota que, voluntariamente, colocaria sua vida em risco.

   

                         

              

 

    

           

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

- O próximo capítulo terá explicações para todas as dúvidas. Aguardem xD

Só para o fato de não saberem. Não se pronuncia Gabriel, e sim Gêibriel (só por precaução xD)



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "7 Heranças" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.