7 Heranças escrita por Pedro_Almada


Capítulo 3
A Traição




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A Traição

 

Em algum lugar, hora e dia em 1918, após o fim da Primeira Guerra

 

            Onde os olhos não podiam alcançar, uma sombra se movimentou logo atrás da porta, deixando para trás a luz da lamparina externa. A dobradiça gemeu e o som quase surdo da porta se fechando quebrou o silêncio, mas logo se restaurou. Armand havia deixado o pub, e tudo o que restava era uma mulher sozinha, mas indiferente ao silêncio ou solidão, caminhando pacificamente.

            Sua mão delicada deslizou sobre as cadeiras empoeiradas do lugar vazio, seus anéis e pulseiras retinindo como um murmúrio, como se vozes sem origem balbuciassem a sua volta. Fez uma pausa e, depois de um momento pensativo, caminhou até o balcão, onde canecas e taças sujas ocupavam a extensa tábua de madeira. Lady Kawnitcha d'Angoulême tocou com o dedo indicador em uma lamparina quebrada no fim do balcão. Seu ato despertou uma curiosa reação no objeto. Um filete de luz dourada emanou do centro do recipiente, cresceu e atingiu o tamanho de uma tocha, queimando, enquanto seu fogo avermelhado crepitava suavemente, inundando o ambiente com sua luz limpa.

            As chamas iluminaram toda a extensão de seu corpo. Sua silhueta, tão desejável e perfeitamente desenhada, era coberta por um vestido vermelho, adornado com rendas brancas. Suas mãos nuas acariciaram o pescoço com uma corrente de ouro, onde seis medalhões com desenhos de diferentes animais pendiam como pingentes, refletindo à luz da lamparina.

            Acima, seu rosto estava completamente coberto. Uma máscara de ouro cobria seu queixo, olhos, orelhas. Nenhum centímetro de pele da sua face poderia ser vista. Seu cabelo era envolvido por longos fios de lãs dourados dispostos em um coque impecável. Sua beleza misteriosa a deixava ainda mais medonha. Seu rosto brilhante e frio parecia mortiço, assassino. Mal se podia imaginar o que havia por trás da face de metal nobre.

            Suas mãos se demoraram nos seis pingentes presos ao seu pescoço, como se fossem muito importantes.

            _ Só falta mais um... – ela murmurou para si mesma – apenas um... E eu possuirei todas as heranças.

 

            Armand estava fora do beco, seus pés atingiram a rua deserta de Londres, já se sentindo cansado com a breve visita à sua senhora. Ele sabia como o medo poderia ser estafante.

            Sim, ele tinha medo. Mas não temia apenas à mulher misteriosa. Temia o que estava prestes a fazer. Acreditou que estivesse à beira da loucura, mas não havia volta. Tinha tomado uma decisão e, embora soubesse que poderia levá-lo a morte, era o certo a se fazer. Não poderia deixar o último Talismã com Kawnitcha. Estava prestes a passar por cima de sua submissão, e colocar aquela mulher em seu lugar. “Lábios da morte”, sim, era o seu talento. Kawnitcha seria o alvo de seu beijo.

            Ele puxou a coberta vermelha que usava como saiote para cobrir suas calças de trapos e lançou-a no ar. O pano se estendeu no ar como uma cortina, dançando no embalo silencioso do vento. O tecido pairou no ar, leve como uma pluma. O vento atiçou a coberta, que rodopiou no ar e abriu como uma pipa.

            Antes de tocar no chão, o volume vermelho se contorceu, girou várias vezes e parou abruptamente, formando duas silhuetas humanas. Logo, não havia mais nenhum manto, apenas dois homens vestidos com casacos escarlates, calças marrons e sapatos pretos lustrosos. Seus rostos estavam cobertos por máscaras douradas. Um deles tinha o cabelo negro curto fielmente penteado para trás, o outro tinha uma longa cabeleira dourada que escorria pelos ombros como uma cascata de ouro líquido. 

            _ Ela está... – Armand começou.

            _ Nós sabemos onde Kawnitcha está. – o homem da longa cabeleira falou rispidamente – nós também estávamos lá com você, plebeu.

            Armand estreitou os olhos, ofendido com a severidade contida naquela voz.

            _ Vocês Palatinos se acham mesmo muito importantes – ele cuspiu no chão.

            _ Se não fôssemos, você não teria recorrido a nós, certo, Armand? – o outro homem caçoou.

            _ É bom estarem prontos – avisou Armand – quando ela perceber do que se trata, não nos dará tempo. Fugir está fora de questão. Ela pode nos matar em questão de segundos.

            O homem da cabeleira dourada deu uma risada sarcástica.

            _ Kawnitcha é uma lenda, mas não é indestrutível.

            _ Há quem discorde – Armand arqueou a sobrancelha, com um leve sorriso – enfim. Precisamos pegar os outros Talismãs. Se você se considera capaz de matá-la, Ferdinand... Vá em frente.  

            Os três homens se mantiveram em silêncio por alguns segundos, provavelmente se perguntando o quão loucos eram em armar uma tocaia para um inimigo quase inabalável.

            _ Eu aprecio sua coragem – falou o homem de cabelos negros – ou talvez seja loucura.

            _ Trair aquela mulher é loucura. Não existe coragem nisso – replicou Armand, dando de ombros, encarando o homem de cabelos negros – preocupe-se com sua tarefa, Gabriel.

            Ele assentiu. Era impossível ler a expressão por trás da sólida máscara de ouro.

            _ Ela não é mais uma Palatina – falou o louro – e logo não será mais nada além de um cadáver sujo.

            Armand deu as costas para o grupo. Sentiu um formigamento no peito, uma espécie de incentivo. Era o que queria fazer, era o que precisava ser feito. Nenhuma outra pessoa seria louca o suficiente a ponto de trair um membro Palatino, principalmente alguém como Kawnitcha. Mas Armand era o único apto. Coragem ou loucura, ele não sabia dizer. Mas se era o certo? Sim. Era o certo.

 

            Naquela mesma noite, o esquema contra Kawnitcha foi quase bem-sucedido. Armand retornara ao pub, pronto para efetivar o plano. Como observado, ela estava sozinha naquele dia, não haveria apoio durante o combate. Eles entraram no pub sorrateiramente, Armand alegando ter encontrado indícios do último Talismã. Cega pela ambição, Kawnitcha disparou contra o rapaz, aflita, querendo saber mais, onde estaria sua última esperança, o sétimo talismã.

            _ Onde está, Armand? Oh, Armand! – ela alisou o rosto do homem – me diga onde está!

O que se seguiu foi tão rápido que os olhos mal conseguiriam acompanhar. Gabriel e Ferdinand, os Palatinos que surgiram através do manto vermelho, dispararam contra a mulher, atravessando a porta e almejando botar as mãos no colar. Armand lançou um olhar frio contra sua senhora, disparou contra ela, seus punhos cerrados, pronto para golpear a mulher.

Kawnitcha uivou de fúria, sentindo a traição. Ergueu os braços e, acompanhando seus movimentos, as cadeiras do cômodo foram arremessadas contra seus adversários. Gabriel e Armand desviaram, mas Ferdinand se deixou ser golpeado, propositalmente.  

O impacto o arremessou contra a mulher. Ele abriu a mão e, assim que se aproximou, fechou os dedos na corrente que adornava o pescoço de d’Angoulême.

_ Peguei! –gritou Ferdinand – Eu peguei...

Sua comemoração se foi tão rápida quanto sua própria vida. Ele caiu no chão, inerte, morto, inexplicavelmente. A corrente com os seis talismãs rolou para o canto do cômodo, sendo devorado pela escuridão. Gabriel disparou na direção do objeto.

Kawnitcha ergueu uma de suas mãos contra o Palatino, mas Armand foi mais rápido.

Com um salto certeiro, os lábios de Armand tocaram as costas da mão delicada da mulher. Ela guinchou de dor, sentindo uma queimação insuportável.

_ TRAIDOR! – ela gritou, furiosa – ARMAND! SEU MISERÁVEL!

_ Ela ainda domina as Sete heranças! – gritou Gabriel – cuidado!

Armand pressionou seus lábios contra a mão da lady, ouvindo as palavras do Palatino. Sim, Kawnitcha era forte e jamais morreria com aquele beijo da morte, mas era forte o suficiente para atrasá-la e, com sorte, Gabriel poderia fugir com os talismãs. A pele macia de sua mão começou a escurecer, provocando espasmos de dor no pulso de d’Angoulême. As veias de suas mãos começaram a ficar dilatadas e arroxeadas, tomando um tom pálido acinzentado, como um cadáver. Ele sentiu os dedos da mulher ficarem flácidos e trincados. Sentiu um dos dedos se romper a cair no chão.

            Mas Armand cometera um erro. A mulher ainda tinha uma de suas mãos livres. Kawnitcha segurou Armand pela nuca.

_ Não seja tolo, Armand! – ela guinchou – trair a própria ceifeira? Eu controlo a morte!

 Armand estremeceu, sentindo os dedos dela tocarem como brasa em sua nuca. Ele podia sentir, claramente, um vulto negro tomando conta de sua visão. Estava sendo levado para a morte. Podia sentir sua vida desaparecendo a cada respiração. Mas precisava continuar.

Gabriel saltou contra a mulher, segurando-a pela máscara. Ela precisou se desvencilhar, deixando Armand cair no chão, trêmulo, quase vazio de vida. Ela tocou no peito de Gabriel com a mão podre. Uma rajada de cinzas disparou contra o Palatino, arremessando-o contra a parede. O braço de Kawnitcha pendeu como um boneco de trapos. Ela fitou Armand, furiosa.

_ Seu... Miserável! – ela chiou – A morte o espera com os braços abertos!

O pensamento de Armand gritou dentro da sua mente perturbada. Precisava ser feito. Não por ele, nem por ninguém. Mas por ser o certo. morrer, mesmo que da pior forma, seria pouco perto do que Kawnitcha seria capaz de fazer com os sete talismãs.

Sua coragem explodiu dentro do seu peito, queimando-o como um fogo vivo e insistente. Correu contra a mulher, segurou-a pela máscara. Mas não foi o suficiente. As mãos da lady se fecharam, envolvidas por uma chama vermelha, tão quente e destrutiva, capaz de derreter o metal mais resistente. Seu punho fechado foi em direção ao peito de Armand.

Então tudo acabou. Armand sentiu que sua missão tinha sido cumprida, afinal. As mãos de Kawnitcha atravessaram seu peito, rasgando sua pele, lacerando sua vida e qualquer expectativa de sair daquele lugar com vida.

_ Você... Perdeu... – Armand murmurou – Eu...Sempre fui... O último talismã.

Kawnitcha puxou, rapidamente, sua mão, deixando um buraco no peito de seu servo traidor. Ela sentiu algo na palma de sua mão, algo que estivera dentro de Armand. Ao afastar os dedos, viu um objeto deformado, feito de ouro, derretido pelo fogo intenso. Gotas do metal escorreram pela sua mão nua, provocando cortes fundos. O objeto tão procurado sempre estivera no interior do coração de Armand, seguro, longe de Kawnitcha, longe de suas perversidades.

_ Armand! – ela murmurou, deixando o corpo do homem cair – Você... Esse talismã? Impossível!

Seus olhos pousaram no canto do cômodo, onde Gabriel estava caído, com um sorriso coberto de sangue. Em uma de suas mãos, uma corrente com seis pingentes, agora derretidos, deformados.

_ Como... – ela não sabia o que dizer.

_ Você era a única capaz de destruir um talismã – avisou Gabriel – e, uma vez destruindo um... Você destrói a todos.

Kawnitcha sentiu a fúria milenar devorar seu corpo, explodir todos os sentimentos desprezíveis contidos por trás da máscara de ouro.

_ Dois mil anos! – ela chiou – reunindo talismãs!

_ Você não tem mais todo esse tempo! – Gabriel sorriu, sentindo seu corpo fraco ceder aos poucos. Talvez fosse morrer ali mesmo – Você sabe da maldição... Quando se destrói um talismã nobre. Vê? Você destruiu a virtude da coragem.

Gabriel acenou em direção à mão da mulher, onde o talismã estava quase que por completamente desintegrado.

_ Coragem... – ela murmurou – Armand poderia ser herdeiro de qualquer talismã... Mas, Coragem? Esse homem tão medroso!

_ Adeus, Kawnitcha – Gabriel acenou – Boa sorte vagando pelo Corredor dos Esquecidos.

Kawnitcha sentiu uma fissura se formar em sua máscara. Sua pele, antes saudável, começou a se tingir de um branco mortiço, acinzentado. Seus cabelos se soltaram, exibindo uma longa cabeleira grisalha e quebradiça, como uma velha. Ela caiu de joelhos.

A cabeça de uma serpente se projetou para fora de sua máscara, passando pelo orifício dos olhos. O animal começou a deslizar e envolver seu corpo vagarosamente.

_ Não... – ela murmurou – eu não queria destruir... Não a Coragem!

_ Mas você destruiu – falou Gabriel – agora será esquecida.

Aranhas negras e miúdas começaram a escapar pelo orifício da boca, cobrindo o seu corpo com teias feitas do seu próprio sangue, tirado das artérias de d’Angoulême.  

Gabriel ficou caído no chão, encarando a mulher ser envolvida pela serpente negra e as centenas de pequenas aranhas.

_ “Seus olhos envenenavam e seus lábios proferiam perversidades” – murmurou Gabriel – “O que lhe resta é o Corredor dos Esquecidos”.

_ NÃO! – gritou Kawnitcha, de repente tão vulnerável e apavorada – EU NÃO POSSO!

A serpente cuspiu fogo contra as teias banhadas em sangue e, como combustível, o fogo se alastrou pelo corpo da mulher mascarada.

Gabriel levou a mão ao rosto, removendo sua máscara, exibindo seus olhos acinzentados, cor de tempestade, cansados, e um sorriso fraco. Acabou adormecendo enquanto Kawnitcha era consumida pelo fogo.

               

 

 


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Notas finais do capítulo

Talvez esse capítulo possa parecer meio confuso, mas essa é a intenção. As explicaçoes sobre os acontecimentos vem com o tempo. reviews xD



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