7 Heranças escrita por Pedro_Almada


Capítulo 2
Cobaia




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Cobaia

 

Em algum lugar, hora e dia em 2010

 

Acordei sentindo meus olhos pesados. De repente era como se tudo fosse um completo branco. Não havia nada em minha mente ao meu respeito. Vasculhei a fundo, sabia tudo sobre o mundo, biologia, física, química, programas de tevê, atores famosos, comidas caseiras e comidas estrangeiras. Dor, medo, raiva. AIDS, câncer, inclusive sobre o significado da palavra amnésia. Tudo isso era extremamente natural. Mas faltava uma lacuna imensa: minha vida. Era como se minha vida pessoal nunca existisse, apagada de minhas memórias, restando apenas todo o conhecimento de um mundo imparcial. Eu podia saber sobre o mundo, mas eu não me sentia humano, eu não conseguia me lembrar de uma vida como um.

            O que significava isso? Eu me sentia outra pessoa. Minha garganta queimava, como se tivesse engolido uma porção de brasa picante. Minha voz falhava, embora eu me esforçasse fervorosamente a gritar, pedir ajuda. Uma reposta.

            Meus dedos se fecharam em alguma coisa, algo metálico e frio, uma corrente frouxa envolvendo meus pulsos. Minhas costas estavam nuas, sentindo o frio de uma maca de metal, sem nenhum travesseiro ou cobertor. Eu sentia frio, quase gélido, mas não me incomodava. Chegava a ser, de certa forma, natural. Eu sabia que meu corpo, normalmente, deveria estar a uns trinta e sete graus. Mas parecia menos. Bem menos.

            Finalmente, depois de um pouco mais de esforço, consegui arremessar minha cabeça à frente, e meu corpo respondeu ao movimento. Levantei-me, sentindo os ossos estalarem curiosamente dentro da minha carne gelada. Tentei falar. Não consegui, ainda havia fogo em minha garganta, capaz de me asfixiar. Senti uma leve fumaça sair entre meus lábios. Sim, havia algo em brasa.

            Então a dor veio, me fazendo, instintivamente, levar a mão ao céu da boca. As pontas dos meus dedos roçaram um metal quente. Puxei-o, sentindo a minha carne sofrer algumas fisgadas com o movimento.

            O objeto caiu com um barulho estranho no chão, como um tampão de esgoto sendo atirado contra a parede, queimando as pontas dos meus dedos. Quando me dei conta, era uma espécie de selo em um círculo de metal, parte de um ferro em brasa, usado para marcar gado. Mas ele estava em mim. Dentro da minha boca. Isso não era nada bom.

            Meus olhos correram, acesos e alarmados, estudando o local onde eu estava. Uma sala grande, com pisos brancos e azulejos azuis com poros pequenos, projetados para evitar vapor quente, parecido com paredes de uma sala de neurocirurgia. Até mesmo uma sala de cirurgia era familiar, mas todo o meu passado era um branco.

            Meu corpo, de repente, havia voltado ao seu ritmo normal. Consegui me erguer, vagarosamente, meus ombros ganharam força e, com um impulso rápido, saltei para fora do leito bizarro.

            Olhei a volta. Apenas vitrôs, vidros empoeirados e arranhados, sem nenhuma passagem eficiente de luz, deixando a visão meio turva. A única porta estava no canto esquerdo, feita de um metal pesado, cheia de parafusos do tamanho de uma noz.

            Meus olhos pousaram em uma prancheta de vidro sobre uma mesinha velha, onde uma letra quase ilegível rasgava a folha macia e frágil. Era uma caligrafia horrível.

            Embora fosse impossível entender o montante, um nome era facilmente compreendido por mim: Jack Crowley. Esse era o meu nome. Sim, eu também sabia o meu nome. Apenas isso. O resto era uma grande incógnita.

            Pela primeira vez eu me toquei. Era apavorante. Estar em lugar desconhecido, não conhecer a mim mesmo. O ar frio começou a me dominar como uma corrente, imobilizando meus braços pernas e sentidos. Senti uma linha úmida descer pelo meu rosto. Uma lágrima estúpida e sem sentido havia me deixado vulnerável.

            Eu não podia ficar ali contando com a sorte que, definitivamente, já havia me abandonado. Senti uma fisgada insuportável repuxar a carne da minha boca. Passei a língua pelo local, sentindo um alto-relevo que, certamente, não deveria estar ali.

            Minhas mãos correram pela mesinha, procurando qualquer coisa que me servisse de espelho. Para a minha grande surpresa, acabei me cortando em um espelho quebrado, preso a uma moldura de madeira já desgastada. Fitei o meu rosto. Cabelos castanhos claros cobrindo as orelhas, olhos verdes, pele pálida e lábios finos. Era assim que eu me lembrava de mim mesmo.

            Isso me deixou ainda mais perdido. Saber o meu nome e conhecer o meu rosto, tudo tão particular. E meus pais? E irmãos? Onde eu morava? Meus pais eram gentis comigo, ou eram cruéis? Eu os amava?

            Abandonei as perguntas, observando o que realmente era importante no momento. Limpei o sangue do meu dedo na única roupa que eu usava, um shorts preto, abri a boca, inclinando o espelho para ver o céu da minha boca.

            Lá estava. Uma cicatriz. Não uma comum. Era, claramente, um símbolo bem elaborado. Uma tatuagem feita à carne viva, idêntico ao objeto de ferro em brasa dentro da minha boca minutos atrás.

           

 


 

            Pronto. Aquilo era o suficiente para me deixar em completo desespero. Eu precisava desaparecer daquele lugar. Corri até a porta de metal, procurando por alguma maçaneta. Não havia. Forcei-a para frente, mas ela nem ao menos se moveu. Era pesada e imponente, nenhum esforço meu seria capaz de mover aquele porta, que devia pesar, pelo menos, trezentos quilos.

            Corri até um dos vitrôs no alto da parede, subindo na mesinha velha. Forcei o vidro e ele se abriu com um rangido estridente. Mas era uma passagem pequena demais para meu corpo passar. De qualquer forma, não havia nada, a não ser uma outra sala, idêntica a que eu estava.

            Mas algo ali dentro deixou minhas pernas bambas, ao ponto de me fazer cede e cair de costas no chão. A dor não era maior do que a perplexidade me invadindo. Na outra sala, bem ao meu lado, uma pilha de corpos jazia no centro do cômodo. Corpos nus, inertes, cheios de cicatrizes, cortes no pescoço, no rosto, no peito ou nas costas. Marcas de algum maníaco.

            Só podia ser. Eu estava nos domínios de algum serial killer sádico e perigoso. Se não me apressasse, logo eu estaria no alto daquela pilha. Corri mais uma vez até a porta, ignorando as lágrimas de pavor. Forcei a porta mais uma vez, mas era quase impossível.

            Meus dedos deslizaram sobre os enormes parafusos, tão bem fixados na parede que seria quase impossível arrancá-los. Eu estava preso, e não havia nenhuma outra saída. Soquei a porta. Pela primeira vez eu tentei gritar.

            _ Hey! Tem alguém aí? – minha voz era familiar, como eu me lembrava – Alguém! Me tira...

            Fiquei em completo silêncio. Quanta estupidez! Eu iria chamar a atenção até aquela sala, o assassino viria até mim e apressaria a minha morte. Parei de gritar, deixando a razão falar mais alto. Fiquei em silêncio, hesitante. Então meus ouvidos captaram um som baixo, mas nítido.

            Passos.

            Uma bota de borracha batendo contra uma poça d’água. Segui o som, vinha da sala ao lado. Corri até a mesinha, apoiei-me sobre ela mais uma vez e, cautelosamente, sem que me notassem, ergui minha cabeça até o vitrô, de modo que apenas meus olhos focassem a sala sinistra.

            Eu acertara por muito pouco. Eram, de fato, botas de borracha, mas a poça não era água. O sangue estava a toda volta, meus olhos não haviam percebido na primeira vez. Agora, no entanto, aquela cena não me deixava nenhum pouco aliviado. Um homem caminhou até a pilha de corpos. Tocou o cadáver de uma mulher, que rolou sem cerimônia até cair no chão, espirrando sangue do jaleco encardido do homem.

            _ Você está nos domínios dos Palatinos agora.

            A voz do homem me fez estremecer. Com quem ele estava falando?

            _ Tentei, inúmeras vezes, deixar a marca do Interceptador nessa gente, mas eram fracos demais para conseguir.

            Engoli em seco. Então ele estava marcando pessoas? Minha língua deslizou sobre a cicatriz recente no céu da boca.

            _ Ninguém resistia à selagem da marca.

            A única coisa que eu conseguia enxergar era o homem de costas, seu jaleco encardido com manchas de sangue, uma bota escura de borracha e a sua nuca, coberta por cabelos negros espessos e sebosos.

            Ele se curvou, girando pelos calcanhares. Então eu vi. Os olhos âmbar em minha direção, furiosos. Os lábios quase não existiam, apenas uma linha fina rosada, um queixo protuberante e uma testa saliente. Nada agradável. Ele estava falando comigo, afinal.

            _ Mas você sobreviveu.

            Ele exibiu um sorriso maroto. Meus pés falharam e eu escorreguei, caindo de cócoras no chão. Fiquei em silêncio, imobilizado de pavor.

            _ Não vá se matar aí, garoto! – ele avisou – Eu não quero ter o trabalho de achar outro como você mais uma vez.

            Outro como eu? Do que ele estava falando? Claro, eu não iria iniciar um diálogo com um assassino. Embora sofresse de amnésia, sabia perfeitamente que uma pilha de mortos, um louco de jaleco e uma sala de cirurgia formavam o cenário ideal para se iniciar uma lenda urbana.

            Ouvi os passos de borracha se afastando. Ele começou a assobiar uma canção conhecida. Dança da Fada Amêndoa, uma canção que nunca gostei. Era assustadora demais para contos infantis. Meu corpo estremeceu diante da naturalidade. Ele estava se afastando. Corri até a mesinha mais uma vez, procurando qualquer coisa que me servisse como arma de proteção. Um bisturi enferrujado, uma navalha manchada de sangue, o espelho e um objeto comprido com uma broca na ponta. Não tinha idéia do que se tratava e achei melhor não pensar sobre isso.

            Corri até o leito de metal, tombei-o para o lado, usando como uma trincheira, caso o homem tentasse vir até mim. Estava pronto com as minhas armas em mãos. Eu o perfuraria, se fosse preciso, deceparia sua cabeça se fosse preciso. Então alguma coisa se moveu atrás da porta de metal. Podia ver por baixo da porta, onde a luz havia sido engolido por dois pares de sombras de pernas.

            Levou alguns segundos. Apenas minha respiração era ouvida nesse tempo, tão fina e quebradiça, como se qualquer outro movimento pudesse impossibilitar o ar entrando e saindo em meus pulmões.

            A porta, finalmente, se abriu. Uma luz amarela e fraca invadiu a sala, banhando os azulejos e evidenciando manchas de sangue pelas paredes. Mãos, trilhas vermelhas. Uma chacina.

            Ele estava bem ali, ainda assobiando sua canção maléfica. Segurei o objeto com broca firmemente, esperando o próximo passo. O homem começou a caminhar em minha direção, segurando algo comprido em sua mão. Parecia uma pequena serra elétrica, ou algo do tipo.

            _ Você ainda não está pronto – ele avisou – faltou a minha assinatura.

            Eu o encarei, perplexo. Ele apenas sorriu.

            _ Ora, garoto, você é a minha mais nova obra-prima. Preciso deixar a minha marca, para que milady saiba quem o criou e venha até mim agradecer pessoalmente.

            Ele lambeu o canto dos lábios, faminto. Fosse quem fosse “milady”, eu não queria ficar para conhecer. E também não queria esperar pela assinatura de um maníaco com uma serra elétrica.

            Meu punho se fechou no canivete e no objeto com broca. Eram as armas mais eficientes. O homem veio contra mim num salto súbito, ainda assobiando Dança da Fada Amêndoa.

            Num ato de instinto, minha mão agarrou o leito de metal e eu empurrei contra o meu agressor. A mesa levantou alguns centímetros, disparando contra o maníaco. Ele tentou se esquivar, mas não foi tão rápido. A mesa bateu em sua mão, a serra girou no ar, atravessando a sua perna.

            _ HYAAAAAAAA!!!!!!

            O homem gritou feito uma mulher, literalmente. Uma voz estridente e cruciante. Ele caiu, sentindo a serra ligada esfolar sua pele, até travar no que pareciam ser os seus ossos. Ele se debruçou no chão, urrando de dor.

            Era a minha chance. Corri em direção à porta. Mas uma mão me segurou pelo calcanhar, impedindo a minha fuga. Embora o doutor sádico tivesse gravemente ferido, tinha forças o suficiente para me deter. Ele me puxou, e caí de rosto no chão.

            Uma dor invadiu minhas narinas. Senti o sangue escorrer em meu gosto, deixando um gosto de cobre na boca. Segurei a navalha com vontade e, sem pensar duas vezes, cravei o objeto no braço do meu agressor.

            Ele gritou sentindo sua dor se intensificando, meus seus dedos se recusavam a me deixar fugir. Dei socos em sua mão e tentei afastá-lo, mas seu braço parecia ser feito de pedra, incapaz de ser removido.

            _ Você é MINHA criação! – ele gritou – milady precisa saber!

            Segurei a broca com as duas mãos, sentindo uma onda de pânico falar mais alto. Eu morria ou... Eu não tinha escolha.

            _ EU não sou seu!

            Dizendo isso, me curvei pra cima dele, investindo o objeto contra o seu pescoço. Precisei fazer força para que o objeto atravessasse sua pele. Era como furar couro de animal. Um esguicho de sangue jorrou como uma fonte escarlate, manchando o chão e espirrando em meu rosto. Senti os dedos afrouxarem, puxei o meu pé, me libertando do inimigo, me levantei e corri sem pensar, nem olhar para trás. Apenas com uma certeza. Eu o havia matado.

 


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Notas finais do capítulo








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