Bitolar escrita por Morango do Nordeste


Capítulo 7
Capítulo 7 - A dois passos da forca


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo é bem transitório. Entretanto, creio que as coisas estão evoluindo. O próximo é um dos mais excitantes que escrevi para Bitolar.



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– Pode me passar o suco por favor?

Ayla poderia estar pedindo socorro que a expressão de Conrado continuaria totalmente impassível. Entretanto, sua mãe estava perto, e ele não serviria maus modos junto com a torta de climão.

– Obrigada.

Ele mastigava lentamente cada pedaço da carne, imaginando, talvez, que o atrito de seus dentes fosse castigar a garota. Flora parecia curiosa com a cena, mas permanecia silenciosa. Hamilton não tinha vindo para o almoço, e ela achava até bom com a situação presente. Ele não seria tão discreto em relação ao estranho comportamento dos jovens.

O almoço estava sendo uma verdadeira tortura para Ayla. Estar naquela casa, sendo forçada a conviver com Conrado depois da noite anterior parecia até crime. Mas para quem ela se queixaria? Os pais do garoto? Seu médico fisioterapeuta que pensava que eram irmãos? Ela sentia-se injustiçada por não ter nenhum amigo ou estranho para desabafar.

Ela até tinha pensado em telefonar para Henrique, mas em seus pensamentos, tal atitude só pioraria o clima dentro da casa, e dessa vez com o padrinho. O que poderia custar uma transferência inesperada de Henrique para o pantanal mato-grossense ou até mesmo algum distrito amazônico perdido entre tribos indígenas furiosas.

Mas ela não deixava de culpar-se pela infeliz falta de pensamentos na noite anterior, quando beijou o menino. Foi a atitude não pensada mais destruidora que poderia ter tomado. Mas ficar pensando em sua miserável vida nova não iria ajudar muito.

Ela se levantou e como forma de agradecimento resolveu lavar as louças. Era até terapêutico realizar tarefas domésticas no modo piloto automático e deixar a mente vagar... Pensou em como seria sua casa, seu quarto e até mesmo sua escola.

– Deixa isso, Ayla. Eu vou limpar a cozinha agora.

– Não, tia. Quero ajudar um pouco.

Conrado saiu da cozinha sem nenhuma palavra e Ayla quase suspirou de alivio.

– Me desculpe a intromissão, mas aconteceu alguma coisa entre você e o Conrado?

– Não que eu saiba.

Ayla não pôde enfrentar o olhar preocupado e se manteve concentrada na mancha de molho de tomate na porcelana clara que esfregava. Pareceu amargo mentir para alguém que se importava com ela, mas falar a verdade não parecia ser possível com Flora.

A menina terminou a lavagem e resolveu se manter no quarto de hospedes no segundo andar, onde poderia ficar sozinha com seus pensamentos. Entretanto Flora não se daria por vencida. As coisas estavam tensas por tempo demais em sua casa.

– Conrado, podemos conversar?

– Claro, mãe.

– O que aconteceu entre você e a Ayla?

– Nada.

– Não minta para mim.

Conrado suspirou e resolveu se levantar da cadeira do computador, sentando ao lado da mãe na cama.

– Eu acho que ela inventou essa história de amnésia e ela sabe disso.

– E por que você acha isso?

– Porque na primeira oportunidade que ela teve, tentou me manipular.

– Como assim?

– Eu baixei minha guarda e ela me beijou.

– E por isso você acha que ela está fingindo?

– Eu acho que ela matou o Ônix e tá armando aqui dentro pra não ser pega.

Flora parecia horrorizada com seu filho falando daquela maneira, mas isso não a impedia de prosseguir no interrogatório particular com sua cria.

– Sei que ela tinha seus desvios de conduta, mas você acha mesmo que ela seria capaz de matar alguém?

– Não sei, mãe. Só sei que ela não tem limites.

– Conrado... Você está sendo duro demais com ela. Nada foi provado ainda, e seu pai já falou sobre a pegada, lembra?

– Isso não significa nada, mãe.

– E o que adiantaria pra ela te beijar se tiver mesmo matado Ônix?

– Sei lá. Ela pode me obrigar a ajudar ela a fugir...

– E ela agora é uma bruxa com poderes, é? Qualquer coisa que você faça por ela não deixa de ser sua responsabilidade.

– Mãe, me desculpe, mas você não sabe como ela pode ser persuasiva.

– Claro que sei. Sou mulher também, sabia? Mas acho que te criei para ser mais que um brinquedinho na mão de uma garota bonita, não?

Conrado poderia ter tomado um soco na cara que estaria melhor. Ele não era do tipo que não falava sobre o que ocorria na sua vida com seus pais. Era até infantil, mas ele não gostava de não compartilhar sua vida. Flora parecia decidida a resolver a situação e continuou:

– Ela não está fingindo, Conrado. O médico viu a lesão. Ela ficou horas olhando fotos antigas com um cuidado que ela nunca teve com nada. Ela ajuda a arrumar a casa, não gosta de incomodar. Acha mesmo que a antiga Ayla seria assim? Acha que a antiga Ayla te beijaria e ficaria sem conseguir te olhar direito?

Os argumentos de Flora pareciam ser válidos para Conrado que permaneceu em silêncio por algum tempo, até que com a voz fraca, disse:

– Eu perdi um amigo por causa dela... Não sei se consigo...

– Não estou te pedindo pra esquecer. Só estou te pedindo pra deixar isso no passado antes que te envenene.

Flora fez um carinho na cabeça dele e depois deu um terno beijo em sua testa. Antes de sair do quarto e deixa-lo com seus pensamentos, comentou:

– E eu ainda prefiro a Ayla do que aquela sonsa que você trouxe da última vez.

Conrado sorriu levemente. Ele tinha amado uma vez. E Ayla tinha usado isso como ponte até um objetivo novo. Ela não teve caráter ou honestidade.

– E aí, Henrique? Qual o resultado da perícia do Ônix?

– Sente-se, por favor.

Hamilton poderia bater no jovem perito se o mesmo continuasse enrolando. Era importante demais.

– Anda logo.

– Sei que está preocupado com a Ayla, mas já te adianto que não foi ela.

– Não?

– Não.

Hamilton finalmente resolveu sentar e relaxar um pouco. Novas pistas viriam agora.

– O agressor da Ayla e o assassino do Ônix são a mesma pessoa.

– E o que mais?

– A pegada que achamos é de tênis esportivo. Desses que qualquer garoto usa. O tamanho é 41.

– Isso sim é uma pista boa. Mais alguma coisa?

– Achamos sangue da Ayla no chalé também. Ela provavelmente foi ferida lá e fugiu até onde encontramos ela caída. Encontramos a faca que foi usada com o cabo carbonizado.

– Nosso assassino é realmente inteligente.

Henrique sentou-se em frente e disse em tom de confidência:

– Estou preocupado. É alguém frio e calculista.

Hamilton apertou as têmporas e sentiu o desejo por nicotina aflorando.

– Vai ser mais complicado achar o culpado.

– Sim. O pior é que a corregedoria está de olho já. Tivemos muitas manchetes em relação ao caso e nenhum suspeito ainda.

Ao ouvir a sentença, a nicotina e o vício acabaram por ganhar e o investigador acabou por quebrar a lei, acendendo um cigarro.

– Precisamos de tempo.

– Não vamos ter muito mais sem um suspeito oficial.

O processo de tragar, inspirando e expirando finalmente relaxou a mente de Hamilton.

– Meu tempo está se esgotando também com a suposta morte. Os assassinatos não fizeram bem para a imagem da corporação na região.

– Estão te pressionando?

– Sim. Já chegaram requisições pedindo a urgência no findar do programa morte pirata.

– E então? O que vai fazer?

Hamilton expirou a fumaça pela última vez antes de espremer a biga contra um copo descartável.

– Vamos ter um suspeito oficial.

– Você já sabe quem?

– Antes preciso descobrir quem calça quarenta e um.

Ele sabia que precisava do número do pé de cada um dos suspeitos antes de fazer qualquer coisa. A partir daí ele poderia achar o criminoso, ou na falta dele, criaria tempo com um suspeito.

– Juarez? Que bom que você chegou. Preciso que você traga um par de sapatos de...

– Hmmm... chefe? Temos visita.

Hamilton voltou seu olhar para a mulher negra e imponente a sua frente e sentiu sua pele arrepiar. Notícias nada boas estavam por vir.

– Boa tarde, inspetora Denise.

– Boa tarde, Hamilton. Podemos conversar em particular?

– Mas é claro. Acompanhe-me até a minha sala privada.

O investigador caminhou pelo longo corredor ao som dos sapatos altos de Denise batendo. Para Hamilton, o som poderia ser a preparação para seu enforcamento.

– Entre, por favor.

Hamilton segurou a porta enquanto Denise entrava e por fim encostou a mesma com delicadeza. Ele se acomodou em sua cadeira e encarou Denise firmemente.

– E então?

– Estou a par da operação morte pirata. Creio que já recebeu alguns requerimento mas o assuntou está ficando mais sério.

– Como assim?

– Além da pressão da imprensa por informações, os Dumont começaram a agir. Não se passa um só dia sem que Eric Dumont vá ao gabinete do governador com alguma cobrança ou pedido. E o ministro da segurança está nervoso com a situação. Dois assassinatos em uma cidadezinha com 40 mil habitantes? A moral da corporação está baixa.

– E o que vocês querem?

– Primeiro, e mais importante: Ayla Dornelles reintegrada a sociedade. Em segundo, um suspeito oficial.

– e quanto tempo tenho?

– Dez dias. Contando o final de semana, antes que Eric Dumont exija um novo investigador. O que infelizmente, ele tem influência suficiente para conseguir.

Hamilton sentiu-se abatido. Ele iria sim atrás de um suspeito. Mas revelar Ayla? Não era o momento certo.

– Hamilton, eu acredito na sua capacidade em relação a esse caso. Apesar dos meios não tão convencionais, acredito que está no caminho certo.

– Obrigado, Denise. Mas sei que se eu não estivesse a dois passos do enforcamento, você não apareceria por aqui.

A negra de modos altivos riu, e Hamilton a acompanhou.

– É verdade. Mas pelo menos te dei tempo suficiente para pensar em algo.

– Obrigado, doutora. Agora, se me der licença, preciso procurar um assassino.

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Ayla encarava-se fixamente no espelho. Com a ponta do dedo indicador, percorreu todo o caminho de sua cicatriz. Estava rosada, quase branca. Não tinha deformado seu rosto. Talvez, daqui a alguns meses, nem fosse possível vê-la mais.

Ela sempre escutava o quanto era bonita, mas não tinha levado completamente a sério, com a percepção de que não se enquadrava nos padrões de filmes e revistas… Mas agora, se olhando, se admirando, podia ver.

Não eram só os traços harmoniosos e o conjunto de sua fronte. Era algo que se transmitia além da parte física. Poderia ser comparado ao magnetismo. Ela sabia atrair, ela sabia como usar seus pontos fortes. A palavra certa era charme, para descrever.

O tempo que perdeu admirando-se chegou a ser constrangedor. Ela sentiu-se perfeitamente narcisista e egocêntrica. Mas aquele tempo tinha servido para dar-lhe autoconfiança. Ela tinha algo inato, que muitos almejavam e lutavam a vida inteira para ter.

Ela sabia que merecia mais que ficar trancada em uma casa na companhia de quem não a desejava. Ela podia provar que era mais… Podia fazer qualquer um perder o controle e viciar-se nela como na primeira tragada do crack… Bastava apenas que ela pudesse voar mais longe…

– Ayla?

– Ah, oi, padrinho.

– Tudo bem com você?

Hamilton chegava, arrebatando-a de seus pensamentos e divagações.

– Sim, está tudo bem.

– Bom, tenho duas notícias.

– E então?

– Eu fiz um pedido ao juiz de prisão preventiva para o Isaac. Seu namorado na época do crime. A pegada dele bate com o tamanho da que foi encontrada no local do crime e ele tem histórico.

– Me desculpe, padrinho… Mas você não parece certo de que foi ele.

Ayla tinha percebido o leve desconforto na voz de Hamilton. Era algo tão óbvio, que talvez até o completo estranho percebesse sua mentira.

– Percebeu, não é? Ainda bem que papel não mostra nossa cara de culpado. Bom, deixa eu te explicar melhor, é que pode ser ele. Tem chances bem altas. Mas eu não estou completamente certo. Por isso mesmo, pedi uma preventiva.

– E o que mais?

– Bom, essa é a parte complicada. Você vai ter que voltar pra sua vida normal.

A menina sentiu-se gelada. Será que agora seus pensamentos tinham forças? Parecia incrível, mas ao mesmo tempo, assustador. Como acender fósforos pela primeira vez, quando se é criança, e é proibido brincar com fogo.

– Mas você vai ter que fingir estar com a memória boa. Se alguém te perguntar alguma coisa, você precisa se esquivar. Uma boa resposta é dizer que está sobre segredo judicial. Isso assusta os leigos.

– E vou poder voltar a morar com a minha mãe?

– Ainda não. Falta pouquinho. Só mais um tempinho pra resolver as coisas. Assim podemos te vigiar melhor.

– Ok. Então, no caso, vou voltar só pra escola.

– Basicamente. Você ainda está se recuperando do tornozelo, e passar por um trauma desses, deixaria qualquer um mais sossegado.

Ayla sentiu-se alegre, e provavelmente transpareceu isso.

– Ficou feliz, é?

– Desculpe, mas eu me sinto muito parada aqui. Acho que isso vai fazer com que eu sinta que estou perdendo menos da minha vida do que o assassino gostaria.

Hamilton acariciou o alto da cabeça da menina e sorriu levemente.

– Bom, agora preciso que você e a Flora arrumem um jeito de você ficar chocante para a sua primeira aparição pública.

– Como assim?

– Digamos que você vai matar alguns do coração quando reaparecer.

Hamilton sorria levemente malicioso e Ayla sentiu-se contagiar pelo espírito. Ayla Dornelles estaria de volta, e ainda mais destruidora.


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Notas finais do capítulo

Sem trecho do próximo capítulo, porque o próximo está completamente chocante. Agradeço muito os comentários que tive, a favoritação e as visualizações que tenho. Obrigada fantasminhas, ninguém acompanharia até tão longe se não estivesse curtindo.
O carnaval veio a ser bem produtivo, e meu bloqueio foi superado. Até semana que vem.



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