Tempestade dos Dias escrita por Marie67


Capítulo 2
Onde não havia frio


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo pode ser considerado já 13+, está um pouco além do outro. No mais, uma segunda parte da história. Boa leitura.



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Estavam bem parados em um impasse, enquanto tentavam remover o vidro quebrado do chão. E tentavam revolver uma memória que podia ser verdadeira, ou não podia. Aquilo incomodava Killua como um zunido, e então perguntou, reunindo a coragem.


– Do que está falando? - questionou, interrompendo o catar do vidro.


– Não é nada, não - Gon espantou o assunto com um sorriso.


Terminada a limpeza, os dois se moveram em conversa pouca até o quarto em que Killua dormia. Lá havia outro colchão no chão, porém este era bem maior e tinha mais roupa de cama. Enquanto Gon o seguia até lá, ele pensou o quanto era estranho que negava a presença de muitas pessoas naquele cômodo, mas não a de Gon. Era tão natural como ir à sala. O moreno praticamente habitava seu apartamento quando não estava em viagem, então, Killua percebeu, era muito natural que dividissem quarto, ás vezes roupas, que dividissem tudo sem questionar. Quando foi abrir os paineis da janela, viu que o céu deixava de ser branco para se tornar cinza gelo. Era a noite vindo.


– Está tarde... - Gon lamentou, se desfazendo de parte das pesadas roupas de frio que vestia.


Killua prontamente recolheu os casacos e foi procurar um lugar para pendurá-los, mas continuou ecoando a conversa pelos cômodos.


– Tch, Gon. Não precisa nem pedir para passar a noite aqui, não é? Mas aviso de novo, não vai jantar nem um décimo do que ia ser com a sua tia...


– Eu ajudo você... você sabe fazer o quê? A tia Mito só pode me receber daqui a alguns dias...


O tom carinhoso era outra saudade que de vez em quando se esgueirava por seus pensamentos, e um sorriso tolo mostrou isso abertamente.


– Sei fazer macarrão - anunciou da área de serviço para o quarto, agradecendo pela distância que escondia de Gon o misto de excitação e felicidade que ia sentindo em escalada.


Um silêncio momentâneo se seguiu, onde Killua sentiu-se roubado pelo cheiro almiscarado e quente que os casacos do outro tinham, lá no fundo. Levou o rosto mais para perto e fechou os olhos. Sentiu as notas de areia, sabonete, da colônia que Gon ocasionalmente se lembrava de usar, mas não sempre. Pareceu passar uma eternidade ouvindo o que todas aquelas notas tinham para contar.


– Aprendeu com a sua mãe?


– Não - respondeu em alerta, retirado de seu devaneio - bem... foi uma menina que me ensinou.


Killua notou que não tinha mais motivo algum para permanecer conversando a distância com Gon, mas o assunto que começara a surgir parecia ser mais confortável sem contato visual.


– Que menina? - ele foi além, com aquela curiosidade de chamas que tinha.


– Uma menina que costumava vir aqui - desviou novamente o assunto.


– Uma namorada? - as palavras fizeram Killua se preocupar profundamente.


Pois Gon estava certo. April tinha sido uma namorada. Ela lhe ensinou a cozinhar algumas coisas. Ela lhe deu seus segundos beijos - pois o primeiro tinha sido aquele no aeroporto - e lhe tocara o corpo, mas de um jeito que ele não conseguia sentir coisa alguma senão um queimar abaixo do abdômen. April era uma menina agradavelmente bonita, tinha lábios carnudos e um cabelo bagunçado como o dele, mas o dela era negro e longo. Mas era só isso e um pouco de distração para Killua. Nunca tinha se sentido muito bem com aquilo, pois sentia que a moça gostava muito dele, mas ele não sabia devolver. Ele encontrava satisfação em ouvir sua voz e em não estar sozinho todos os dias, também. Não telefonava para Gon enquanto ela estava no apartamento. Um dia, Killua lhe disse que não podia continuar com ela por gostar de outra pessoa, e não conseguiu até hoje explicar aquilo em palavras pretas e brancas. Mas sabia que tinha sido mais um desvio.


– Não tudo isso, Gon... era uma amiga. - e começou a voltar para o quarto.


– Entendi - o moreno respondeu, já deitado de barriga para baixo perto do aquecedor.


Killua ficou um tanto sem reação quando o encontrou ali bem em seu chão, usando os braços de travesseiro, olhando despreocupado para ele. Percebeu, pensando em April, a diferença que as duas presenças tinham, a diferença do gosto, a diferença da reação. A presença de Gon espantou o branco e o frio, devagar, palavra por palavra e gesto por gesto.


– Killua - Gon murmurou, sentando-se na ponta do colchão - eu senti falta de ficar aqui. Eu senti a sua falta... não é a mesma coisa viajar por aí sozinho. - e sorriu abertamente para ele, num golpe baixo que imediatamente fez Killua se sentir flutuante e ansioso ao mesmo tempo. Traiçoeiro, inocente, traiçoeiro.


– Hn - murmurou, não encontrando as palavras - eu... senti falta de ter alguém conhecido por perto, também.


– É que eu gosto disso. Passar a noite na sua casa sem me preocupar. Quando você ainda morava com a sua família isso era meio impossível, lembra?


– Era mesmo. Mas quando eu me mudei, você não quis mais sair daqui...


– Mas você quer que eu fique, certo? - ele quis saber.


E Killua só tinha uma resposta, mas ela se transformou em pergunta. Ele queria como pouco quis coisas na vida que Gon ficasse. E sabia que por aquela noite, ele ficaria. Mas ficaria na próxima? E em outras? Quase conseguia enxergar as mãos frias e etéreas do desecontro, da distância e das falhas que ele mesmo poderia cometer tirando a sua certeza.


– Gon - e sentou-se bem perto dele - do que você estava falando mais cedo, na cozinha?


Viu uma coisa bastante atípica acontecer no rosto de Gon: a dúvida e um certo medo, enquanto viu o rubor tomar seu rosto. Só era possível ver de perto na pele que o rapaz tinha, aquele rubor. Ele estava envergonhado e como era o costume não sabia esconder, assim denunciou o beiço que fez com a boca.


– Você não se lembra? - lamentou o moreno, enquanto se movia para o colchão e tirava os sapatos.


Killua se lembrava perfeitamente, apenas negava o fato, em medo de estar completamente equivocado. Não era possível que Gon fosse fazer algo assim. Se via tão distante de ter aquele desejo concebido. Parecia algo em outra realidade à qual Killua Zoldyck não tinha o direito de pôr os pés.


– Refresque minha memória, e eu vou saber se lembro ou não - desafiou, instintivamente desviando o olhar. Aquilo tinha chances remotas de dar certo. Mas Killua sempre fora bom em jogos. O seguiu até a sua própria cama, aproximando-se.


– Fecha os olhos, então - pediu Gon, ainda com o mesmo beiço e o indicador levantado.


E Killua esperou por bons segundos, até ser agraciado com a memória que pediu.
Fora nada menos do que agraciado.


O hálito de Gon se misturava ao seu, e era quente, tinha um pouco de café nele, um pouco de menta, e um gosto que era humano demais para ser descrito. Seus olhos se fecharam sozinhos e desapressados, se rendendo à memória mais traiçoeira de sua vida. Seu coração não tinha tempo nem ritmo, e batia em uma sensação tão física e audível que conseguia ouvir cada pulso. Levou uma das mãos os ombros de Gon enquanto ele o relembrava, e outra ao seu pescoço, onde pode sentir os pulsos do moreno também. Sentiu-se muito, muito leve. Sentiu que poderia morar naquela sensação. Soube que sentira falta de Gon. Soube que sentia coisas por ele. Soube o quão estúpido ele era por nunca ter perguntado antes.


Gentilmente, o outro aprofundou o beijo, retirando-o de ser uma memória. Sentiu sua língua pedir aquilo, e suas mãos tatearem por lugares e lugares abaixo do pescoço de Gon. E quando o outro parou para respirar, foi Killua quem retomou apressadamente o elo. Mas de outra maneira. Ansioso, com mãos agarrando a lã do casaco, com corpos colados, com as línguas tão conflitantes e sintonizadas que estava sem ar, mas não lhe importava o ar, pois sentira tanta saudade dele. Se derrubaram no colchão, mas não perceberam. Quando se sentia em chamas, foi Gon quem pediu novamente uma pausa.


Ele não disse coisa alguma. Apenas respirou, inspirou, expirou, lentamente, olhando dentro da alma de Killua com aqueles olhos solares mesmo no escuro do quarto que anoiteceu por completo. As mãos fortes que o acordaram mais cedo descansavam em seu rosto, numa carícia.


– Então é assim - Killua soprou - assim que você se despediu de mim - disse, com os olhos fechados, e depois os abrindo.


O sorriso despretensioso de Gon o fez sorrir também, sorrir sinceramente, sentindo que alma sorria junto.


– É assim com você acordado - ele riu baixinho.


– Tsc, você podia ter me acordado naquele dia.


– E se você não gostasse?


Killua não sabia responder àquilo muito bem, então deu outro beijo no moreno e outros mais, e mordiscou seu lábio inferior, enquanto dizia:


– Isso é o quanto eu não gosto disso, Gon... percebe? - provocou.


Ouviu a risada arrastada e deleitosa do outro responder aos seus beijos, enquanto ele brincou e bagunçou com os dedos a nuvem prateada de seus cabelos.


– É que você parecia tão calmo dormindo. Não queria te acordar. Eu nem gosto tanto assim de despedidas... não gosto nem um pouco. Se te acordasse, teria que me despedir de novo. Não seria ruim?


– É, seria. Eu dormi completamente sem querer... mas depois que tive que me despedir de você eu vi que também não gosto dessas coisas. É um pouco sem sentido. Você ia embora do mesmo jeito, querendo eu ou não.


Procurou pelo olhar do outro, e deixou seus dedos explorarem a face dele, também. Todos os cantos que ele notara mais cedo, todas as mudanças e marcas, como que em reconhecimento. Parecia tudo familiar, embora houvesse novidades. Passou o indicador por um corte de lâmina minúsculo pintando a pele bronzeada - conseguido provavelmente quando tentara tirar a barba - e depois pelos lábios dele. Achou uma marca de sol, tateou em um lugar que lhe fez cócegas. Ficou distraído naquela busca, até sentir Gon fazer o mesmo no rosto dele.


– É, é verdade. Mas agora passou esse tempo todo e eu estou de volta - ele deixou acontecer uma pausa, enquanto passou os dedos pelas bochechas de Killua.


– O que foi? Isso faz cócegas...


– Não sabia que você tinha sardas.


– São muito poucas. Só dá pra ver de perto.


– É... eu acho que nunca fiquei tão perto pra poder ver. É diferente de perto... - e ele foi deixando a fala no ar, sorrindo apesar do cansaço.


– E você gosta de ficar assim? - Killua perguntou retoricamente, pois Gon lhe dava a resposta estampada em seu rosto.


Mas ainda assim ele respondeu anuindo com a cabeça, já lentamente serpenteando para o sono. Assim diziam seus olhos vacilantes e seu sorriso sincero que ia indo embora, sua respiração que diminuia o tempo pouco a pouco. Gon devia estar cansado de toda a viagem, presumiu. Antes de se entregar ao torpor, ele ainda lhe disse, numa voz pesada, um "boa noite".


Killua ainda ficou ali por bons minutos, pensando em como o sono de Gon o deixava seguro para olhar sua face de uma outra maneira. Ali, no silêncio que era só dele, queria poder ter dito uma infinidade de coisas. E todas elas floreavam em sua mente naquele momento, naquela hora onde não teria medo de dizê-las. As pensava e cultivava na quietude, e o reflexo de todas aquelas coisas belas e sujas que suprimira era um sorriso que tinha se formado em sua face. Um sorriso vacilante, pois seus dedos se agarravam compulsivamente o tecido do lençol em ansiedade. Suspirou lentamente por muitas vezes, querendo espantar aquele fervor de pensamentos. A mão de Gon continuava em seu rosto, já caindo para o ombro, e nesta mão ele segurou, até se recuperar. E foi seguindo Gon até os sonhos, levando consigo as palavras que não disse.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. A história continua a partir daí - ainda acontecerão muitas coisas. Se curtiu, recomende :)



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