Tempestade dos Dias escrita por Marie67


Capítulo 1
Devaneio e Lembrança


Notas iniciais do capítulo

Capítulo 1 de uma história pequena sobre os dois. Este capítulo pode ser classificado como Livre.



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O dia era tão branco que Killua não aguentava mais ver essa cor. Nem sentir tanto frio. A cidade onde estava há dois anos era mordente no inverno, e ficava completamente pura em branco e cinza. Por não aguentar mais a visão da janela, ou o vácuo do apartamento, ou ainda para amenizar os sintomas da gripe, deitou-se. Dormiu por horas não identificadas e não contadas, horas borradas e com gosto de metal em sua língua. Horas com sensação de cobertor e névoa do aquecedor. O colchão ainda estava sobre o chão - não teve a decência de comprar uma cama ainda, embora dispusesse do dinheiro. A sala de seu minúsculo apartamento tinha virado um mar de cobertores, travesseiros e papéis de doces, e, surpreedentemente, caixas de cigarro espreitando traiçoeiras, denunciando seu novo hábito que viera com a maioridade. Fumar era estúpido. Porém, Killua andava se sentindo imensamente estúpido.


Não sabia muito bem se naquele mar de desorganização e branco ele derivava acordado ou dormindo. A linha entre esses dois ainda era uma coisa complicada para Killua. Dormia acordado. De vez em quando, no campo acordado, lembrava-se dos irmãos, ou de que tinha de pagar um punhado de contas, de que precisava lavar sua louça e roupas, de que não podia mais faltar aulas - e então lembrava de que estava em férias - e de uma série de trivialidades. No meio destas, brotava o extremo oposto do trivial: o ausente, Gon.


Mas não adiantava ficar cultivando e alimentando a ausência do rapaz moreno, e então voltava a focar nas presenças materiais de sua vida recentemente independente. Inútil independência. Servia apenas para apodrecer gripado no chão de carpete, pois os remédios eram inúteis, seu corpo era traiçoeiro, o frio era um exército inteiro poderosamente armado. Estava dormindo, dormindo profundamente, quando ouviu batidas na porta no sonho doce e ardido que sonhava. Não, era só a garganta que ardia...


Quem batia? Estava em ilusão, ele tinha a capacidade de sonhar consciente de que era apenas sonho. Seria Gon? Um de seus irmãos? Uma das garotas que insistiam em se interessar por ele? A porta de mentira logo logo se abriria. Mas que toque toque incessante.


"Killua!" gritou a presença neurológica atrás da porta. Era a voz de Gon, ou pelo menos sua reprodução.


"Está dormindo?" E Killua estava, de fato. Dormindo e devaneando.

A porta então se abriu, denunciou o gemido de suas dobradiças. Ouviu passos. Não, sentiu passos. Ora. Tinha um gosto de realidade. Seus sentidos felinos estavam tão debilitados que quis se bater por não saber distinguir passos reais de fictícios.

Até que teve uma certeza de ferro de que não sonhava, e nem dormia mais. Fora tocado, ou melhor, balançado, por um par de mãos fortes. Estava sendo observado por um par de olhos amarelados. Estava sendo cegado por um sorriso amistoso que derreteria toda a neve.


- Eu voltei da viagem - anunciou a voz de Gon, deleitosa - vou ficar para as férias. Eu vim te ver.


O Killua adormecido em partes que ele era só conseguiu olhar incrédulo para o genuínamente real Gon Freecs que o olhava de cima, agachado com uma mochila gigantesca de viagem nas costas e mais umas duas menores nas mãos. E a chave de seu apartamento. É claro... Gon tinha a chave. Aquele estúpido. Não tinha cerimônia. Não ligou para avisar que viria. Veio direto do voo, ele foi concluindo enquanto acordava. E tossiu em espanto e doença por bons segundos.


- Killua! Você.. está péssimo - ele silvou, segurando-o pelas costas e largando as bagagens no chão.


- Eu estou bem - respondeu - e... por que não ligou, idiota? Eu teria preparado alguma coisa...


- Você não faz comida normalmente, é? - Gon lhe perguntou duvidoso, se levantando e se espreguiçando, enquanto andava em círculos pela saleta.


- É claro que eu faço - retrucou - mas você não deve querer qualquer coisa. Eu tenho café de hoje, e uns pães, e biscoitos.


- É o bastante. Eu não vim comer. Eu vim te ver.


Seu coração estava desgovernado enquanto tateava pelos armários atrás de algo para oferecer a Gon. Sentia algo trêmulo e sinuoso no estômago, parecia com uma felicidade, com alívio, tinha um gosto de surpresa. Estava finalmente feliz de verdade? Gon estava bem ali, se espreguiçando em sua sala, cuspindo palavras quentes que Killua tinha esquecido o gosto, a sensação de ouvir da boca dele. Depois de toda a tempestade de dias que passara lhe respondendo as cartas e esperando que voltasse, ele estava bem ali. Houve noites onde engoliu lágrimas pesadas porque não conseguia mais esperar. E teve de esperar tanto. Estava afobado e trêmulo, e até deixou um prato cair enquanto tentava organizar biscoitos nele. O barulho trouxe Gon.


- O que fez aí? - ele perguntou.


- Um acidente. E peguei algo pra você comer. Vem, e depois eu limpo isso - estabeleceu, levando as embalagens para sala, com duas xícaras de café requentado.


***

Comeram e beberam numa conversa que mais parecia um monólogo: Gon contava, Killua comentava e o deixava continuar. Ele contou de todas as pessoas diferentes que viu. Contou da pobreza e das dificuldades do país onde estivera. Contou do calor, e de como ele certamente estaria logo tão resfriado como Killua pelo choque térmico. Confabulou alegremente sobre o jeito como as pessoas o tratavam, feliz com tudo aquilo. A pele de Gon estava num tom mais escuro e alaranjado, provavelmente pelo sol forte do país onde estava. Seu cabelo usualmente espetado estava mais baixo. Ele tinha criado um pouco de barba. Seu rosto tinha ficado um pouco mais quadrado. Ele tinha crescido um tanto. Killua se perguntou se tinha mudado também aos olhos dele. O rosto que lhe fornecia uma alegria instantânea estava diferente, mas a sensação ao vê-lo era a mesma. Killua se pegou sorrindo de lado enquanto notava os cantos e mudanças do rosto do outro, e isso fez suas bochechas avermelharem.


- Não é o máximo? Eu aprendi muito - Gon exclamou, finalizando seu relato.


- Tenho certeza que sim - respondeu - exatamente como você contava nas cartas. Eu só estive estudando e mantendo o apartamento...


- Isso é uma coisa muito boa também, Killua.


- Espero que seja. Não é muito excitante, na verdade.


- Pra mim, é bom saber que você está se mantendo, e que está bem. Eu pensava muito nisso lá, sabe? - ele contou despretensioso, com a boca na borda da xícara, mordiscando a porcelana.


Mal sabia o outro, mas a menção de que era lembrado por Gon no mar de experiências de seu intercâmbio fez seu coração se aquecer e seu rosto também. Soprou no vapor da xícara e bebeu o calor enquanto olhava para o lado, escondendo seu deleite involuntário.


- Tanta coisa interessante e você pensando em mim. Eu me viro.


- Mas é normal, não é? Não ia esquecer de você só por ter ido para outro país. Você é importante.


- Se você acha - desdenhou enquanto se levantava, levando o prato vazio e as duas xícaras.


Gon nada respondeu enquanto o seguia até a cozinha apertada, atencioso. Killua lavou mecanicamente a louça, e após isso, catou pedaço por pedaço do prato que quebrara antes. E enquanto o fazia, Gon se agachou bem à sua frente.


- É claro que acho. Sempre achei. Não deu pra ver quando eu saí para o aeroporto, Killua?


Quando olhou para o outro, viu que estavam ineditamente próximos. Não, ineditamente era uma mentira. Quando viu Gon tão próximo dele, a lembrança mais traiçoeira de sua vida inteira roubou seus pensamentos. Ele falava de um outro acontecimento, que Killua também jurava ter sido um sonho. Ele se lembrava de que dormira no banco do aeroporto, na noite que Gon partira para outro país. Ele o acompanhara até lá, e Mito estava junto, mas não na hora em que aconteceu aquilo. Naquele sono pela metade, Killua sentiu... um beijo.


Mas quando acordou, não acreditou por evidência alguma que havia sido um beijo de verdade. E desde então esteve em dúvida, pensando se Gon realmente o havia dado aquele capricho ou não...


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