Vergo escrita por Tris, Panda girl


Capítulo 16
Vitórias


Notas iniciais do capítulo

Hello! Sou eu, Panda Girl! Que saudades de poder dizer isso, senti muita falta de vocês, meus sobrinhos. Que malvadeza a nossa sumir assim do nada e voltar sem avisar, mal deixando uma nota no capítulo anterior (hehehe). O que posso dizer é que foi tudo estratégicamente calculado (tirando o hiato, não somos tão más, apenas procrastinadoras). Não quero prometer nada a vocês, pois todos sabemos como nós somos enroladas, mas vou adiantando que já estamos trabalhando (ou tentando trabalhar) no próximo capítulo, então talvez não demore tanto. Queria pedir pra mandarem eneria positiva pra Triz, que ficou doente pela segunda vez em menos de um mês (rimou) e agradecer a todos que continuam conosco durante essa jornada fantástica, até porque ninguém merece esperar tanto por capítulos novos.
Beijinhos, abraços de urso e balinhas de menta, da Tia Panda.



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— Eu sempre achei q você não tinha noção, mas agora eu tenho certeza.

Era a Miriam, em pé e de braços cruzados, rindo da forma mais sádica que eu já a vira rir. Só não entendia o motivo. O som da máquina de lavar ao fundo misturado com a risada da megera, aumentava o ar perverso que me rodeava (tinha medo de inalar aquilo tudo e morrer asfixiado).

Levantei uma sobrancelha, em completa confusão.

— Isto aqui é seu não é? - disse ela enquanto balançava o broche que o Verne tinha me dado. Desde o dia que ele me deu e eu coloquei no meu bolso, ele permaneceu lá, porque eu esqueci completamente de sua existência. Agora o broche estava nas mãos da víbora.

Por que tudo que era meu ia parar nas mãos dela?

— Foi o seu namoradinho que te deu né? — ela jogou na minha direção e quase não consegui segurar. — Até quando você vai acreditar nesse conto de fadas?

— Não sei o que você está insinuando.

Me virei, indo para o meu quarto. Não queria conversar com ela. Nunca acabava bem. Se é que eu podia chamar de "conversa" o que tínhamos.

— Você sabe que a maioria das princesas é magra, né? Ou você quer dar uma de Cachinhos Dourados e comer o que não é seu?

— Você 'tava lavando roupa ou engolindo literatura infantil? — falei, cedendo às provocações

Outra risada sádica.

— Ele vai te largar logo logo. Um menino tão novo, tão bonito, só está confuso, coitado. Mas daqui a pouco ele muda de ideia, arruma uma namorada bonita tipo... a Leslie. Ele não gosta de você de verdade... Será que você não percebe? Ele tem dó de você.

— Ele gosta de mim do jeito que eu sou. — rebati com a frase mais clichê possível.

— Mas ele sabe realmente como você é?

Eu tinha que responder mas não consegui. Não podia mostrar o quanto aquelas últimas palavras me machucavam. Que elas só estava servindo para aumentar minhas antigas inseguranças. Que eu já tinha pensando nisso antes. Que no fundo eu temia que tudo o que ela falava fosse verdade.

— Era o que eu imaginava.

Finalmente dei um passo para sair.

— Gordon, — ela encravou as unhas no meu braço, como sempre — cai na real.

— Eu não sou burro, Miriam. — as palavras finalmente saiam da minha boca. — Eu sei reconhecer uma mentira quando eu vejo uma. É por isso que não acredito em você.

Então a diaba me empurrou, soltando as unhas, e eu esbarrei numa mesinha de canto, quebrando o vaso que estava em cima dela e consequentemente me cortando. Coincidentemente, o mesmo vaso em que as flores do Verne estavam outro dia.

— Olha a merda que você fez! — ela gritou.

Sabia que ela gostava daquele vaso, mas culpa não era minha. Caminhou de forma irritada até a área de serviço, ouvi o armário sendo aberto. Voltou de lá carregando uma vassoura. Era uma bruxa completa.

— Agora vê se limpa a bagunça que você fez. — ela disse arremessando a vassoura na minha direção. Provavelmente tinha tirado o dia para treinar alvo a distância, porque ela estava jogando tudo em mim.

E eu sabia que ela me achava o "alvo" perfeito.

— Eu tenho mais o que fazer. O Dr. Albert está me esperando.

— Passar bem. — foi a única coisa que respondi.

Ela foi embora e eu fiquei varrendo a meleca que restou. Sabia que não ia acabar bem, e nossa conversa de fato não acabou.

Quando estava tudo limpinho, olhei pra parede, onde tinha uma manchinha vermelha, bem pequena. Olhei pro meu braço.

Não, não estava jorrando sangue e mágoas do meu organismo e não estava formando uma poça do meu próprio desespero no chão, era só um cortezinho. Mas, pra mim, era como se eu já estivesse me afogando naquela maldita poça.

Limpei a parede e fui para o meu banheiro. Abri a primeira gaveta, pegando a pequena caixa de alumínio onde ficava meus curativos. Depois de múltiplas tentativas pra puxar a abinha do papel, eu consegui, e cobri o maldito machucado. Foi quando a campainha tocou. Estaria a megera de volta?

— Já vai! — gritei.

Coloquei a caixinha de qualquer jeito sobre a pia e fui atender à porta, me surpreendendo com quem estava do outro lado.

Um labrador animado pôs as patas sobre meu peito e começou a me lamber.

— Olá pra você também, Boswell. — minha mão afagando sua cabeça canina.

Verne estava na porta usando uma regata e um short, a típica roupa de treinamento.

— Se eu não me engano, hoje não é dia de treino. — olhei em seus olhos e eles brilhavam.

— Eu sei.

— Entra.

Afastei da porta para que ele e o cachorro da Kate pudessem entrar.

— Eu estava dando uma volta com o garotão aqui e pensei que talvez fosse uma boa ideia dar uma passada aqui. Só pra dar um oi.

— Entendi.

— E também queria ver se você queria ir lá no fliperama.

— O que tem aqui perto de casa?

— Sim. Uma revanche no Street Fighter seria legal.

Comecei a rir.

— Você ainda não aceitou que eu sou melhor que você naquele jogo?

— Ué, vamos ver. — Gostei do som desafiante que a voz de Verne tinha.

Ainda fazia carinho na cabeça Boswell e percebi que ele respirava de forma ofegante.

— Acho que ele está com sede. — disse indo pegar uma vasilha no armário da cozinha.

— Deve estar. Eu aproveitei que tinha que passear com ele e corri um pouco também. — Verne debruçou sobre a mesa americana. — Ele cansou mais rápido do que eu.

Agachei e coloquei a vasilha com água gelada no chão, e rapidamente Boswell já estava bebendo.

— Eu cheguei numa hora ruim?

Me apoiei do outro lado do balcão

— Não. Estou sozinho em casa ... — Sabia que era exatamente isso que ele queria ouvir. — Mas não por muito tempo.

Um som metálico preencheu o silêncio entre a minha frase que acabara de ser dita e o que Verne iria dizer.

— O que foi isso? — ele perguntou olhando para dentro da casa.

— Acho que eu sei o que foi.

Fui em direção ao meu quarto, e balancei minha mão chamando o Verne pra me seguir. Boswell não estava muito preocupado em nós seguir, então deitou no chão da sala e parecia que ia tirar um cochilo.

Adentrei o quarto e a janela estava aberta, permitindo que o vento ou os espíritos entrassem e derrubassem todos os meus band-aids, espalhando pelo piso do banheiro e meu quarto.

A caixa de alumínio tinha caído, como eu previa.

— Eu te ajudo a catar — Verne disse, agachando.

Me agachei também e começamos a coletar.

— Essa caixa de curativos caiu por que você estava pegando algum? Está tudo bem? Você se machucou? — sua voz soava preocupada.

Seus olhos agora focavam na mais nova marca temporária que estava no meu gordo braço.

— Sim. Eu sou meio desastrado, então basicamente hematomas e arranhões já fazem parte do meu dia a dia.

— Sei como é. Também sou.

Recolhemos todos e eu guardei na caixa. Verne pegou a tampa.

— Não queremos derrubar isso de novo, não é?

Ele pegou das minhas mãos, tampou e jogou a lata para cima da cama. E então ajoelhou na minha frente, seu rosto indo de encontro ao meu. Minhas costas colando no batente da porta do banheiro. Eu estava preso.

— E a revanche no jogo? — digo com um sorriso malicioso no lábio.

— Já esperou tantos dias, acho que pode esperar mais um pouco.

— Já disse que não temos muito tempo né?

— Eu sei, mas é tempo suficiente. — Ele cochichou enquanto seus lábios, salgados por causa do suor, tocavam os meus.

Ter o Verne em meu braços me dava uma sensação mista de medo e conforto. Seus braços finos me deixavam receoso, com medo de quebrá-los quando eu o puxava para mais perto, quando eu o apertava mais forte. Ao mesmo tempo, no entanto, quando eu sentia seus músculos, escondidos, soterrados, me lembrava que ele era muito mais forte do que ele aparentava.

E eu sabia que isso não era algo só do seu físico.

Suas mãos secas corriam dos meus ombros e desciam pelos meus braços, e diferentemente de mim, ele não precisava ter medo de me quebrar. Ele recolhia meus cacos aos poucos. Ele enxugava a poça na qual eu me afogava.

Estava tão alheio que só percebi que estava sendo desnudado quando um ar frio percorreu minha costa. Verne subia delicadamente minha camisa.

"Ele sabe realmente como você é?"

As palavras que eu tinha escutado mais cedo retumbaram em meus ouvidos como se eu as estivessem ouvindo naquele momento.

Não, ele não sabia como eu era. E também não era hora dele saber.

Pus minhas mãos sobre as suas, tirando elas de cima de minha camisa, e me debrucei por cima dele, tentando o impedir de usar as próprias mãos.

Verde apoiou os antebraços nos chão, e eu, cada vez mais, fui ficando em cima dele.

Meus dedos gordos agora subiam de suas pernas cabeludas até seu quadril. Senti que a regata que ele vestia estava dobrada. E ao invés de desdobrar, comecei a dobrar mais, e mais, e mais...

— Ei!

Verne parou subitamente de me beijar e se afastou, deslizando pelo chão e acabando com todo o clima que estava no ambiente.

— Eu posso ficar sem camisa, mas você não. Por quê?

Sentei em cima das minha pernas, e tentei não demonstrar que eu estava com medo dele descobrir o motivo.

— Me diz. — ele insistiu, depois que permaneci em silêncio, sem saber o que responder — Por que sou eu que sempre acabo sem roupa?

Corrigindo o que ele tinha acabado de dizer, até o momento Verde não tinha ficado complemente nu (infelizmente) em nenhuma das vezes em que estivemos sozinhos, que também não foram muitas. Sempre éramos interrompidos por algo, alguém ou como agora, por ele mesmo.

— Têm pessoas que não gostam de ficar da maneira como vieram ao mundo. — dei de ombros.

Verne não respondeu. Olhei de relance. Ele me encarava. Os braços cruzados sobre o peito. Aqueles olhos verdes ainda querendo uma explicação

— Talvez eu não queira ficar sem camisa hoje.

— Hoje e nem dia nenhum.

— Está frio lá fora. — sua expressão continuava impassível. — Fresco...

Aprendi com o tempo que Verne era uma pessoa teimosa. Ele não me deixava mudar de assunto ou fugir dele. Ele sempre queria que eu fosse direto ao ponto e, mesmo que eu o enrolasse, ele esperava até eu dizer o que é pra ser dito.

— Eu não sou como seus amigos ou como as pessoas com as quais você anda. — minha voz soou cansada.

Sim, ele me venceu por cansaço.

— Eu sei disso.

— E... eu não sou mais como eu era antigamente.

Tomei coragem e o olhei. Ele abriu um pequeno sorriso ao ouvir minha última frase.

— Mas eu não conheci o Gordon de antigamente.

Respirei fundo e soltei o ar.

"Ele sabe realmente como você é?"

Não, Miriam, ele não sabe, pensei. Mas agora vai saber.

Com um movimento rápido, tirei a camisa, bagunçando meu cabelo totalmente enquanto a passava pela cabeça.

— Feliz agora? — abri os braços e encarei o Verne.

Minha gorduras estavam amostra. Elas formavam um relevo montanhoso suave coberto pela neve da minha pele pálida e fria e por pétalas de rosa das minhas picadas de mosquito. Eu era imperfeito, e não tinha certeza de como me sentia em relação a isso.

— Eu? Não. — deu de ombros. — Você está?

— O quê?

Não acreditava no que ele estava me perguntando.

— É, você está contente? O que você está sentido?

— O que... eu estou... sentindo!? O que eu sinto no momento!? Bom Verne, eu estou me sentindo desconfortável, invadido, exposto, vulnerável e levemente com frio.

Realmente o vento que entrava pela janela estava fresco.

Então, para me surpreender mais (e porque ele provavelmente não estava feliz o suficiente), Verne arrancou a própria blusa.

— É sério isso? — perguntei, minha cara ficando vermelha.

Tudo que eu não precisava no momento era de um jogo da diferença entre meu corpo e o dele. Não queria comparar, mas era impossível evitar.

Ele ignorou o que eu tinha falado, e se aproximou, me fazendo perder a concentração e esquecer complemente meu joguinho dos sete erros. Pela primeira vez suas mãos curiosas descobriam parte do que sempre ficava coberto por malha de algodão. Nossas barrigas se encostavam. A dele lisa. A minha gelatinosa. Ele parecia não se importar. Por que eu deveria me importar?

Eu era imperfeito, mas meu namorado me pintava como uma obra renascentista e percorria o caminho de minhas estrias como estradas. Eu era perfeito, eu era infinito, e eu me sentia bem em relação a isso.

— Como está se sentido agora? — ele sussurrou em meu ouvido, afastando poucos centímetros, suas mãos apoiadas em meu peito, quase um dejà vu do dia em que o assustei. Entretanto, era a minha vez de ter suas mãos em mim.

— Agora? Levemente abusado.

Verde riu.

Boswell latiu lá da sala.

— Oi, garotão! Quem te deixou aqui hein?

A voz da Leslie preencheu a casa.

Nosso pouco tempo tinha acabado.

Nos levantamos e vestimos nossas camisas. Dois trapos jogados em cima da minha cama.

— O vento tá fresco mesmo. — Verne disse, passando a gola da blusa pela cabeça.

Suas madeixas douradas, quase loiras, completamente desalinhadas, me fazendo questionar se era assim que elas ficavam quando ele acordava.

— Eu disse que estava. — Sorri.

Sai pelo corredor e a Leslie já me chamava.

— Gordon, se você encontrou esse cachorro na rua eu sei muito bem para quem devolver. É o Boswell, o cão da...

— Kate. É eu sei.

Ela parou de fazer carinho no Boswell, que não gostou muito de ser deixado de lado, e me viu. Seus olhos azuis eletrizantes rapidamente correram para a pessoa que vinha logo atrás de mim.

— Uh... — suas bochechas coraram levemente. — Desculpa incomodar vocês, caras. Mas olha que legal, eu já estava de saída mesmo.

— Você acabou de chagar em casa Leslie. — Verne disse risonho.

— E estou saindo de novo.

— Não precisa sair. Eu e Verne é que estávamos de saída. — Olhei para ele. — Vamos no fliperama.

— Bem, já que insistem em sair, eu não vou discordar. Estou morta de cansaço. E não estou nem um pouco com vontade de ter que voltar para rua. Um dia a escola ainda vai me matar. — E acrescentou com uma voz sombria — Vai matar a todos nós!

— Sempre suspeitei disso também, Less. — Verde ria, se divertindo com as palhaçadas da minha irmã, que ficou praticamente a tarde inteira no colégio.

Sua mochila quase caia do único ombro em que estava pendurada. Seu cabelo estava tão desalinhado quanto o do Verne, um coque frouxo no topo da cabeça, pronto para se soltar e derramar aquelas negras madeixas pelos seus ombros.

— Eu 'tô parecendo um desses maníacos dizendo que o fim do mundo está próximo. Credo. — Ela revirou os olhos. — Tudo para tentar disfarçar o fato que eu peguei vocês no flagra. Tudo porque vocês não avisam: "olha, Leslie, não volte pra casa, estamos nos pegando aqui sozinhos". Eu podia muito bem ter ficado na rua, mas nãaaao! Ninguém me avisa nada. — Sua voz foi sumindo conforme ela andava pelo corredor. — E Gordon, você podia pelo menos ter falado pro Verne ajeitar o cabelo coitado. Não deixa o bichinho sair assim não.

Ouvimos uma porta se fechando. E depois abrindo novamente.

— Esqueci de dar tchau. Au revoir. — Agora ela ficava falando em francês, só porque achava legal e por estar lendo um livro francês nas últimas semanas

A porta fechou com um estrondo novamente.

— Ela está naqueles dias. — Olhei para o Verne, suas bochechas com um leve rubor.

— Imaginei. A Kate também.

— Sério?

— Por incrível que pareça sim. Por que você acha que eu estou passando com o Boswell as 17:00 da tarde? Foi mais uma ordem do que um pedido.

Ri da cara que o Verne fez, e fomos para a rua, Boswell não muito contente de ter que andar mais.

Virei para um lado e Verne foi para a direção contrária.

— Aonde você vai? — ele perguntou.

— Para a casa da Kate. Não vamos entregar o cachorro e depois ir pro fliperama?

— Não, vamos direto. É melhor.

Dei meia volta.

— Coitado do Boswell.

— Coitado nada. Ele gosta! — Verne disse enquanto voltávamos a caminhar. — Quando a Kate leva ele para passear, ela não anda nem um quarteirão direito.

— Já você, em compensação, anda o bairro inteiro.

O cachorro latiu como se concordasse e estivesse entendendo do que estávamos conversando. Verne revirou os olhos.

— Viu? Boswell concorda comigo!

Ele riu.

— Meu cabelo está mesmo bagunçado? — ele perguntou de repente.

— Sim.

— E por que você não me falou?

Sua mão passava de forma apressada na cabeça para arrumar a gaforina, enquanto a outra segurava a guia do cão.

— Você ficou bem atraente.

— E assim, eu continuo atraente?

O cabelo que eu achava que estava sendo penteado na verdade tinha sido todo eriçado, e estava completamente em pé. Ele parecia um cientista louco.

— Francamente, Verne! — disse repreendendo-o.

Parei em sua frente, e percebi que meu tom de voz o tinha assustado. Pus minhas mãos sobre sua cabeça, obrigando aqueles fios a abaixarem.

— Agora sim você está bem atraente

Não tinha ido arrumar o cabelo dele também, mas sim piorar mais a situação. Puxei os fios todos para baixo, e com seu topete fiz uma franja que batia nos olhos.

— Só que agora eu não enxergo nada. E ninguém enxerga meus olhos.

— Melhor ainda. Aí eu vou ser o único que fico hipnotizado por esse verde intenso.

— Qual deles?

Ele assoprou a franja, mas ela caiu sem sucesso em seus olhos, novamente.

— Sempre soube que era intenso. — Verne respondeu de forma ambígua a sua própria pergunta, e só então me fazendo perceber que minha frase anterior não estava totalmente clara.

Fomos caminhando pela calçada. O vento soprava na direção contrária, balançando nossas roupas e esfriando um pouco. Elas grudavam em nossos corpos, me lembrando do nosso recente momento mágico.

— Fui no mercado ontem comprar farinha e ovos esses dias, acho que vou fazer um bolo de chocolate que vi na internet, parece muito bom. — falou.

— Não esquece de me chamar para experimentar quando ficar pronto. A não ser que fique ruim.

— Pode deixar. Ele tem uma calda por dentro que escorre quando você corta e pode servir com sorvete. É quase um petit gateau gigante, não tem como ficar ruim.

— Quer apostar? — desafiei.

— Gordon, você não acha que devia apoiar seu namorado e seus dotes culinários? Eu vou pedir divórcio!

Ele apertou meu nariz enquanto ria.

— Divórcio é só para casados, Verne.

— Quem disse que eu não pretendo casar com você um dia?

— Ai meu Deus, você é ridículo mesmo.

O caminho até o fliperama passava por entre uma rua comercial, cheia de lojinhas bonitinhas. Tinha um brechó onde eu ia com a Less comprar roupas baratas de vez em quando. Verne mal podia imaginar que minhas camisas que ele tanto amava não custavam nem metade do preço das que ele usava quando saia comigo.

Uma menina bonitinha veio na outra direção. Ela usava shorts azuis claro e uma regata laranja. O cabelo preto tinha o comprimento até a cintura. Acho que ela também usava uma argolinha no nariz, mas não tinha certeza.

A garota acenou para Verne, toda sorridente. Mas ele não teve reação, a não ser virar a cara. Tentou mais uma vez quando nos aproximamos um pouco mais. Nada. A morena não pareceu se importar, deu de ombros e seguiu seu caminho, fazendo nosso amigo canino latir.

— Amiga da Abigail. — explicou ele.

— Poxa, mas você não precisava ser tão rude com ela.

— Não fui. Não gosto dela, ficou dando em cima de mim enquanto eu 'tava com aquela nojenta. As duas conseguem chegar ao mesmo nível.

— Eu nunca vi ninguém odiar meninas tanto quanto você. — ri.

— Machistas...

— Verdade.

Boswell variava entre corridas frenéticas e empacadas súbitas, dificultando o processo. Houve um momento em que ele parou para cheirar os pés de uma criança e Verde não conseguiu parar de pedir desculpas, apesar de ela e seu pai parecerem bem apaixonados pelo monstro peludo, dourado e macio que olhava para eles balançando o rabinho.

— Parece o cachorro da Bianca, papai! — A garota sorria. Devia ter uns quatro ou cinco anos, era branquinha, de cabelos castanhos curtos e franjinha, olhos cor de âmbar e nariz de batatinha. Usava um casaco jeans tão grande que cobria o dedinho com o qual apontava para o labrador de Kate

— Não, Grace, o da sua prima é um west terrier, é bem diferente.

— Mas ele é animado do mesmo jeito!

— Você gosta dele?  —perguntei. —Pode fazer carinho na cabeça, ele gosta.

Grace começou a coçar atrás da orelha de Boswell, o qual resolveu que rolar no chão era uma boa resposta para o carinho. Ela retribuiu esfregando sua adorável barriga canina. Os dois ficaram assim por uns bons minutos, até que o pai da garotinha disse que precisavam ir.

Verne e eu seguimos na direção contrária à deles, sem perceber que o cachorro tentava voltar para sua amiga. Ele puxou a coleira e correu com tanta velocidade que arrastou o pobre Verde na direção contrária, fazendo-o tropeçar e entrar em uma ciclovia, o que resultou em um ciclista mal-educado mostrando-nos o dedo por ter de desviar para não atropelar os dois. Porra Boswell.

Após quase sermos atropelados por outra bicicleta, termos que parar para recolher cocô e Verne tropeçar no degrau de entrada de uma loja, chegamos ao nosso destino.

O fliperama era velho e basicamente um lugar para crianças juntarem prêmios de jogos para trocarem por balinhas. Segundo Verne, todos achavam que ele iria falir depois de 2010, com o barateamento do videogame e a popularização dos jogos para celular, mas o filho do dono era bem bonitinho, fazendo algumas garotas do bairro (e o próprio Oliver algumas vezes) gastarem suas moedas jogando pinball. Além disso, eles vendiam quadrinhos e cerveja barata, atraindo os nerds do bairro. Apesar de tudo, não deviam ter gastado dinheiro com reforma ou uma equipe de limpeza há algum tempo, pois o lugar era bem obsoleto e empoeirado. Ninguém parecia se importar.

Quando chegamos lá, o famoso galã das fichinhas trocou as moedas do Verde e incrivelmente aceitou que entrássemos com nossa bolinha de pelos ambulante, desde que ele ficasse preso em algum lugar. Tinha o cabelo castanho escuro cortado estilo militar, os olhos azuis e a barba por fazer, além de uma pele bronzeada de leve. Não era lindo, mas era acima da média. Eu ainda preferia meu namorado.

Eu comecei jogando com a Cammy e Verne com o Honda. Minha tática era ser rápido, sem dar tempo para ele reagir. O coitado jogava como uma criança, não devia saber a função de cada botão do arcade e ficava apertando-os aleatoriamente. Obviamente, eu ganhei.

Verde deu um tapa na pobre máquina.

Sorri.

Alguns minutos depois de que começamos a jogar, o maníaco das fichas acenou para Verne.

— Menino zarco, pode tomar conta pra mim por meia horinha?

Verne não olhou.

— Eu falei com você! Seus olhos. Eles são verdes 'né? — Falou enquanto gesticulava com as mãos, apontando para os próprios olhos. — E aí, vai tomar conta pra mim ou não? Preciso ir comprar uns cigarros e comer alguma coisa.

Ficamos sem entender o motivo do adjetivo estranho até o menino largar um dicionário enorme sobre o balcão. O tédio de trabalhar em um estabelecimento tão decadente era grande o suficiente para forçar alguém a ler palavras na letra z do dicionário. Eu, pessoalmente, não gostava muito de dicionários. Gostava das palavras bonitas que havia neles, mas tinha uma preguiça enorme de procurar por elas. Talvez, se algum dia eu tivesse trabalhado em um fliperama, teria mais paciência para isso.

A grande muralha de olhos verdes do meu lado, que até então não havia tido nenhuma reação, parou de encarar o pobre rapaz.

— Ah, sim, pode ir. Se alguém vier aqui que eu faço?

— Troca as moedas por fichas pra mim. Tem uma tabela na gaveta com os valores e o dinheiro você bota naquela caixa marrom que quando eu chegar eu guardo no lugar certo. As fichas ficam naquela gaveta ali, a chave é essa com uma pintinha vermelha. Agora, se for alguma gatinha, pede 'pra ela me esperar aqui que eu já volto.

Verde fez um sinal de positivo com o dedão e observamos o moreno ir embora.

— Acho que agora temos um pouco mais de tempo... — Meu “menino zarco” sorriu para mim.

— Só se for mais tempo 'pra eu ganhar de você.

Ele riu.

Oh, Deus, como eu amava aquele sorriso.

— Você vai ver, essa partida eu ganho.

— Desiste, Verne. Você pode até saber jogar aqueles joguinhos de rico, mas o bebê aqui é o rei do fliperama.

— Não sabia deste seu lado nerd, Gordon.

— Agora sabe. E esse meu lado nerd vai ganhar de você mais uma vez.

Ele escolheu o Ryu.

— Isso é injusto, Verde, olha o personagem lixo que eu peguei.

— Não é culpa minha se você faz péssimas escolhas.

— Vou ganhar de você com ele mesmo assim.

— Duvido.

E eu realmente ganhei. Duas vezes. Verne ficou meio desconfortável e pediu um tempo, disse que na próxima rodada ele ganharia. Apoiou uma mão no arcade e a outra na nuca, um pouco de suor escorria da sua testa.

— Ei, Gordon, você vai fazer alguma coisa terça de tarde?

— Acho que não, por quê? — Eu provavelmente cancelaria qualquer compromisso para sair com ele mesmo.

— A Kate quer fazer uma “sessão da tarde” na casa dela. Eu posso fazer pipoca doce caso isso já não tenha te convencido de que vai ser legal.

— Vou pensar no seu caso, docinho.

Ele me deu um empurrãozinho e ficamos rindo. Simplesmente não conseguíamos parar de sorrir.

Jogamos mais uma partida.

Dessa vez, ele parecia empenhado. Jogava freneticamente, com os dedos longos se movimentando rapidamente de botão em botão. Eu gostava daqueles dedos, eu gostava muito daqueles dedos. A coluna dele também expressava sua concentração, toda arqueada, como se ele fosse pular em cima de mim a qualquer momento e arrancar um pedaço de meu pescoço como uma leoa comendo um antílope. Ok, talvez essa não fosse a intenção dele. E eu também não queria morrer como um antílope. Talvez eu estivesse mais para veado do que para antílope.

Devo ter ficado muito concentrado em meus pensamentos sobre leoas e antílopes, porque, quando vi, meu pobre personagem estava fazendo o papel de antílope atacado. Eu estava mesmo levando uma bela surra.

Verne ganhou.

O garoto do balcão ainda não tinha aparecido e nossas fichas esgotaram. Ficamos com vergonha de trocarmos nossas próprias moedas por fichas, então sentamos no degrau da entrada do fliperama. Verde buscou Boswell com a coleira e foi ao banheiro buscar um pouco de água da pia do banheiro para ele beber.

Ficamos observando a movimentação na rua. Ninguém quis entrar, talvez não fôssemos tão bonitinhos quanto o moreno dos olhos azuis.

Os olhos verdes de Verne me encaravam.

— Que foi? — Perguntei. — Não posso te beijar no meio da rua, se é isso que você quer.

Ele bagunçou meu cabelo e riu.

— Que pena.

Engoliu em seco.

— Mas não era isso que eu queria.

— Certeza? Ouvi dizer que o desejo mais profundo de todo ser humano é sentir o gostinho dessa boca aqui.

— Você deveria abrir uma barraca do beijo então. Ao menos teria mais cliente do que essa biboca aqui.

— Não é como se essa “biboca” já não funcionasse assim. Só tem clientes porque querem dar uns amassos no filho do dono, danem-se os jogos.

— Eu nunca vim aqui beijar ele. — Falou sem segurar uma risada eufórica. — E você, Gordon?

Ficou me cutucando no braço enquanto ria.

— Não tenho nada a declarar.

E ficamos assim, eufóricos, no meio da calçada por um bom tempo.

— Você não me deixou falar o que eu queria aquela hora. — disse ele.

— Ah, sim, pode falar.

— Bem, eu te contei como eu descobri que era… assim. Queria saber como seu pai descobriu sobre você. É que às vezes eu penso em contar 'pra alguém, mas não sei como. E sua família parece lidar tão bem com tudo isso. Eu queria entender como. Não precisa contar, se você não quiser, é claro.

E eu simplesmente não tinha como negar aquele pedido.

 

••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••

 

Era uma vez uma tarde de verão. O sol sempre batia na frente da nossa casa nessa época do ano, quando ia se pôr. O carro estava do lado de fora da garagem, e uma estranha umidade preenchia o ar.

Desci os degraus que ficavam em frente à porta (ainda devem estar lá. Mas eu não estou mais) e dei a volta no carro. A umidade vinha de três baldes completamente cheios, prontos para tirar toda sujeira que aquele automóvel tinha acumulado.

Minhas mãos, ainda secas e magras, tremiam. Talvez a sujeira do carro não seria a única coisa a ir embora naquela tarde, pensei. Coloquei as mãos no bolso pra ver se melhorava. Sem sucesso.

— Ah, oi filho, você está aí. Não te vi chegando.

Meu pai saiu da garagem, abrindo um sorriso gigantesco ao me ver, fazendo meu estômago doer de culpa. Minhas mãos tremiam mais.

— Então, quer me ajudar a lavar o carro? — Ele piscou. — Como antigamente?

Quando era pequeno, sempre pedia pra ajudar meu pai a lavar o carro, o que na verdade era só desculpa para poder brincar com água e sabão numa tarde quente, já que não tínhamos piscina ou banheira pra nós refrescar. Só que eu fui crescendo, a adolescência chegou e brincar com água já não era mais a minha grande diversão.

— Tá. — respondi dando de ombros.

No entanto aquele era um dia diferente.

Ele me jogou uma esponja e começamos a esfregar. Ele puxou assunto. Me lembro que falamos sobre coisas aleatórias, mas meu cérebro estava tão ansioso que as únicas coisas nas quais eu pensava seriam as palavras que eu iria dizer.

Tinha imaginado como eu falaria, como abordaria o assunto, não queria ser direto. Quando você é direto, você machuca os outros. Eufemismos não são tão ruins quanto parecem. Eles são como colchões que colocam embaixo do prédio para alguém que iria se jogar. Não ir direto ao ponto é suavizar a queda. Ser direto, é não ter colchões. É deixar a pessoa morrer.

Por isso eu pretendia por colchões para o meu pai. Se possível, um caminhão inteiro deles.

— Acho que acabamos. — ele falou.

Estava com a mangueira, enxaguando as últimas rodas.

— Acho que fizemos um bom trabalho — completou, suas mãos na cintura, avaliando o nosso serviço.

— Sim. — respondi. Olhei para ele.

—Como nos velhos tempos — ele falou.

— Como nos velhos tempos — e então eu liguei a mangueira com tudo e mirei bem nas suas pernas. — Ei! — ele gritou dando um pulo.

Por mais nervoso que eu estivesse, uma risada conseguiu sair de dentro de mim.

— Você que quis recordar o passado.

— Eu estava desprevenido! Mas agora você vai ver também. — e então ele jogou a água que restava em um balde bem no meu rosto.

Sempre que nós terminávamos de lavar o carro quando eu era menino, ele molhava meus pés com a mangueira, e isso era o estopim para o início da nossa pequena guerra de água. Quem ganhava? Ninguém. Parávamos por cansaço mesmo, porque nós dois acabávamos sempre encharcados. E ter meu pai correndo com um balde na mão e eu me escondendo com a mangueira, esperando a hora certa do ataque, me fez esquecer complemente do por que que eu tinha saído do meu quarto num dia tão quente. Minhas mãos tinham parado de tremer durante aqueles minutos. Gargalhava de maneira que não gargalhava a dias, com medos e preocupações me assombrando, e a verdade avassaladora que eu guardava.

Como em muitos livros e filmes que as pessoas querem congelar o momento, aquele seria o meu momento. Momento que desceu pelo ralo, junto com a água de sabão quando meu pai hasteou um balde branco (sim, pode parecer patético, mas uma vez compramos um balde branco somente para isso).

— Eu me rendo. Não aguento mais!

Ainda sorrindo ele puxou uma cadeira de plástico que tínhamos na nossa garagem e se sentou.

— Não dá mais para ser como antigamente filho, seu pai está ficando velho. — Ele arfou.

Eu deveria ter respondido, mas só sorri. Minha cabeça rodava. Como eu ia abordar o assunto?

— Filho, está tudo bem?

Olhei para ele e pude ver que sua expressão estava preocupada. Ele sabia que alguma coisa estava acontecendo.

— Pai... — a primeira palavra saindo de forma trêmula — nós precisamos conversar.

Respirei fundo.

— Gordon, o que foi?

Então, como em uma tempestade de verão, todas as palavras saíram da minha boca de forma rápida. Eu não coloquei colchões, eu acelerei a queda.

— Eu gosto muito de você e por isso eu sinto muito pelo que eu vou dizer agora. Eu esperei muitos dias para falar isso, porque eu realmente não sabia como falar... Eu não queria desapontar você. Mas eu não consigo mais guardar isso.

Meu olhos começaram a arder. Eu não podia chorar ainda, tinha muita coisa para falar.

— Eu sou homossexual.

Não prestei atenção a expressão no rosto do meu pai, eu continue falando, de forma desenfreada.

— Eu sei que nenhum pai gostaria de ouvir isso vindo do filho. Eu sei muito bem que é difícil para você. Eu pensei que eu estava enganado, e que era algo que todo mundo passava, mas não é. E por mais que qualquer um venha agora falar que eu sou novo demais para entender o que eu estou sentido e que eu sou novo demais para entender pelo que estou passando, eu não estou enganado. Eu tenho certeza agora, certeza absoluta. Eu sou gay.

Uma lágrima escorreu pela minha bochecha e eu fiz questão de secá-la. Ainda não tinha terminado.

— E por isso eu quero pedir que não tente mudar o que eu sou ou não acreditar em mim. Eu não estou pedindo para você me aceitar nem nada, foi o que eu falei antes, nenhum pai merece ouvir isso, mas eu só peço para que não tente me convencer do contrário. E se isso exigir muito de você, eu entendo se você quiser que eu vá embora. Eu juro que eu entendo mesmo! Se for demais para você, eu saio de casa porque nenhum pai quer ter um filho como eu.

As lágrimas desciam com tudo. Eu não conseguia mais evitar.

— Desculpa pai, me desculpa por isso tudo...

— Gordon!

Olhei para ele dessa vez. Ele já tinha chamado meu nome mais eu não podia interromper meu monólogo, e continuei falando ignorando o fato de que ele queria dizer algo. Tentei evitar ouvir o que ele tinha para dizer. Tentei segurar o choro, e engoli em seco. Meu pai passava a mão pela testa e pelos cabelos, repentinas vezes.

Ele estava enlouquecendo com o que eu tinha acabado de contar? Eu tinha enlouquecido meu pai?

— Gordon... eu... — ele me olhou, sua expressão era de choque — Eu vou ser bem honesto com você, da mesma maneira que você foi comigo. Eu não esperava por isso. Eu jamais poderia imaginar que um dia... — ele passou a mão pelo rosto — Que eu fosse ouvir isso vindo de você.

Minha boca ficou seca.

— Eu não vou ser hipócrita e dizer que está tudo bem comigo, porque eu realmente estou em choque.

Ele levantou da cadeira, me obrigando a erguer a cabeça.

— No entanto eu não quero que você peça desculpas pelo filho que é. Gordon, quantas pessoas adorariam ter um filho que é inteligente, generoso e honesto? Que está sempre ajudando o pai velho, que é rabugento as vezes? Que aceito uma madrasta e uma irmã na sua vida, só por que esse mesmo pai velho se apaixonou novamente e queria ter uma família de novo? — Sua voz estava embargada de emoção. — Você é o melhor filho que um pai poderia ter.

— Eu era o melhor filho que um pai queria ter.

— Não, Gordon! Você é! E que ideia louca é essa de ir embora de casa?

— Você não quer que eu vá?

— Gordon... — meu pai segurou meus braços — Eu já perdi uma pessoa que eu amava uma vez, e eu não pude fazer nada. Eu não quero perder outra, ainda mais que dessa vez eu posso evitar.

Ele me puxou para um abraço, e nós não conseguimos mais conter a emoção. Molhávamos mais nossas roupas já encharcadas, agora com lágrimas de alívio, surpresa e principalmente saudade de quem ainda fazia muita falta, apesar de tanto tempo.

Era estranho perceber que o tempo que eu levei para falar tinha sido ao mesmo tão rápido e tão longo, mas não mais longo que os dias de duvida e medo que me rodearam.

O tempo é muito mais do que horas, segundos ou minutos. Não são números somente. Da mesma forma que lar não é um lugar e sim um sentimento, o tempo depende do que sentimos para durar o tanto que queremos ou o que temos que vivenciar.

Aquele abraço, por exemplo, durou séculos dentro de poucos minutos.

— E, Gordon, — ele se afastou — nunca mais se desculpe por ser quem você é. Ainda mais quando você tem coragem de admitir.

Concordei com a cabeça.

— Bom, — ele passou o braço pelos meus ombros — foi o que eu falei. Eu ainda estou bem chocado, e eu vou precisar que você me ajude também, porque eu não sei como agir, eu estou completamente perdido... — ele abriu um sorriso, e eu me senti leve.

— Tudo bem. — sorri também.

— Primeiramente... eu vou ter que comprar um bando de esmalte para você ou você pode dividir com a sua irmã?

Percebi que ele estava realmente confuso. Meu sorriso se abriu mais.

— Não, pai. Eu não quero me tornar uma garota ou algo do gênero. Eu sou gay... mas eu só gosto de garotos.

— Ah, é?

— Sim.

— Graças a Deus eu não vou ter que gastar mais dinheiro com maquiagem e esmalte!

Começamos a rir, como quando estávamos lavando o carro. O tempo brincava conosco de novo, fazendo como se tudo tivesse acontecido em dias diferentes.

 

— Mas... Se você quiser que eu compre, eu compro... — ele disse um pouco sério.

— Não, pai, eu não quero mesmo.

— Desculpa se eu soei um pouco preconceituoso, eu disse... É...

— Tudo muito novo para você. Eu sei.

Guardamos os baldes e fechamos a garagem, praticamente o tempo todo em silêncio. Não um silencio ruim. Um silencio bom, daqueles que trazem paz interior.

— Temos que contar para sua irmã. E para a sua madrasta também. — disse ele. — Mas só quando você quiser, é claro.

— Já tinha pensado nisso. Eu vou. Só queria que você fosse o primeiro a saber.

Ele me olhou nos olhos.

— Obrigada por me contar, filho.

Ele me puxou de novo e fomos andando para a frente da casa. O sol, que já tinha sumido do céu, estranhamente nos banhou com sua luz. Os últimos raios daquele dia na minha cabeça e na do meu pai. Era como, de onde estivesse, minha mãe aprovasse tudo que tinha acontecido naquela tarde.

Como se ela estivesse feliz por nós.

E eu realmente esperava que estivesse.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, deixem a crítica construtova de vocês para que possamos sempre melhorar!



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