Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 7
Pode ser quatro queijos?




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/580013/chapter/7

Estava escuro e quente, muito quente. O zumbido era baixo, porém, ainda assim possível de escutar com todo o meu ser. Eu pude sentir a dor, leve, apenas o suficiente para me deixar desperta. Abri devagar os olhos e o vi, parado sobre o meu corpo como seu eu não fosse nada mais do que apenas um alimento. Movimentei-me silenciosamente, deslizando devagar até conseguir alcançar o objeto que precisava para me livrar dele. Ao sentir o toque do metal gélido sob os meus dedos dei um meio sorriso vitorioso. Então, antes que ele pudesse perceber o que o estava acontecendo, o atingi.

— Mosquito desgraçado, traiçoeiro! Aproveitou que eu estava dormindo para entrar no meu quarto e abusar do meu corpo! Mas agora você vai morrer, muahaha! — gritei enquanto enchia o quarto de inseticida spray. — Morra, maldito!

— Posso saber o que diabos é isso, Anna? Endoidou? — Alguém perguntou abrindo desesperadamente a porta do meu quarto e quando olhei dei um grito agudo de susto. O ser das trevas também gritou.

— Ai, meu Deus, Darth Vader veio me levar para o lado negro da força! — esbravejei enquanto arremessava um livro na figura que me fitava: um enorme ser grotesco com uma roupa roxa e a cara totalmente preta.

— Darth Vader é a sua bisavó! — ele respondeu indignado, massageando o local onde o acertei com livro. Quando percebi que o ser das trevas era na verdade Conchito, com a cara besuntado de creme facial lama negra e usando o seu novo robe de cetim roxo, desatei a gargalhar. Isso só o deixou com mais raiva ainda.

— Qual o seu problema, garota? Minha nossa, haja paciência... Já falei pra Sarah mandar você para um psiquiatra — ele disse esbaforido. — Mas aquela velha não me escuta! Sabe por quê? Porque ela é mais doida do que você! Olha só onde eu fui amarrar o meu burro. Família de malucas...

— Hei, não diga isso! — protestei. — Sei que apesar de tudo você me ama e não vive sem mim. Mas enfim, o que faz acordado essa hora?

— Vim te proteger depois que ouvi você falar sobre alguém no seu quarto — respondeu naturalmente. — Se bem que, pensando melhor, a probabilidade de haver um bofe aqui é zero — ele riu e eu fiz cara feia. Conchito então respirou fundo e tossiu. — Que cheiro de inseticida horroroso é esse?

— Estava matando mosquitos da dengue — respondi. — Esses malditos ficam a noite inteira zumbindo no meu ouvido e não me deixam dormir. Tudo culpa daquela porcaria de terreno baldio na rua de trás que está cheio de lixo com água parada. Depois a gente fica doente, morre e ninguém sabe por quê.

— E precisava todo esse escândalo por causa disso? Tá pior do que as malucas da boate — ele questionou revirando os olhos e pondo as duas mãos na cintura, no entanto percebi que lá no fundo ele estava morrendo de vontade de rir. — Se for para você morrer de algo, só se for intoxicada, mona! — falou e nos olhamos em silêncio. Então, antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa, explodimos numa gargalhada daquelas de fazer a barriga doer. Meus olhos se encheram de lágrimas por causa disso.

Passado o susto fomos tomar um leite que, segundo Conchito, era necessário para desintoxicar nossos pulmões da quantidade de baygon inalada. Olhei para o relógio em cima da geladeira e os ponteiros avisaram que já eram cinco horas da manhã. De volta ao meu quarto, estava impossível voltar a dormir, o calor era tanto que meus cabelos grudavam no pescoço. Decidi abrir a janela e peguei o celular. Uma mensagem recebida há apenas vinte minutos no bate-papo piscou na tela. Meu coração deu um salto, mas logo se acalmou quando viu quem era o remetente.

Coelha: Amiga, o André acabou de me mandar uma mensagem. O que será que isso significa?

Anna: Significa que vocês dois são dois desocupados para estarem acordados a essa hora! — respondi para Andressa. Eu a havia apelidado de Coelha por causa por causa de seu sobrenome, Andressa Coelho, e pelo fato dela estar sempre inquieta. Como sempre, ela não se ofendeu e ainda achou fofo.

Coelha: Não, eu falo sério. Espera aí que vou te mandar uma cópia.

Anna: ok.

Coelha: “Em poucas horas será uma linda manhã de sábado. Aproveite cada momento ao lado das pessoas que você ama e sorria sempre quando o sol aparecer. Desejo que uma chuva de coisas boas ilumine sua vida. André.” — E ai, Anna? O que você acha? O que eu respondo? :)

Anna: Não sei... Acho melhor você não responder nada ainda. Essa mensagem parece mais uma daquelas correntes que você copia e manda para todo mundo..

Coelha: Quer dizer que não há nada de especial nessa mensagem? :(

Anna: Talvez sim, talvez não. Porém, se ele está acordado a essa hora e pensou em você, isso é um bom sinal. Então deixe para responder só amanhã, talvez depois. Mande de volta algo do tipo também.

Coelha: Mas por quê?

Anna: Vai por mim, não deixe ele saber que você está louca por ele...

Banquei a conselheira amorosa por mais tempo do que deveria e quando percebi o sol já estava nascendo, tímido, como se não fosse capaz – ou tivesse vergonha – do calorão que estava fazendo. Em poucos minutos o cheiro da padaria invadiu o meu quarto e os primeiros trabalhadores começaram a circular, enchendo a rua de barulho e vida. Era um sábado glorioso, mesmo que houvesse começado fora do normal.

Mas desde quando os meus dias eram normais?

***

— Você parece aérea — vovó disse depois que me viu brincar com o macarrão, fazendo rolinhos com o garfo e os deixando cair para logo depois fazer tudo de novo. — Algum problema?

— Só estou cansada. Dormi muito mal à noite por causa do calor e dos mosquitos — respondi. Mas não era só isso. Eu estava chateada com Davi por ele não haver me ligado e também não o tinha visto na escola durante a semana inteira, pois estávamos ocupados demais com as revisões gerais para as provas da semana seguinte. Davi também parecia ter nascido com o dom de evaporar no ar e desaparecer quando bem queria. — E então, como vai a boate? — desconversei.

— Ah, perfeita! — foi Jeferson quem respondeu. — Os shows estão ótimos e as pessoas parecem especialmente me amar!

— My God... Não há nada pior no mundo do que uma pessoa deslumbrada — Conchito debochou. — Tá se achando, né?

Embora fosse apenas sete horas da noite já estávamos jantando, todos nós, pois minha avó ainda queria cultivar o hábito de fazermos as refeições juntas. Como era sábado, a noite ia ser agitada na boate e por isso ela foi logo descansar um pouco antes de ir. Mal vovó fechou a porta de seu quarto Conchito veio se sentar ao meu lado.

— Decidimos fazer uma festa surpresa para a sua avó hoje à noite — ele bateu palmas.

— Mas o aniversário dela é só semana que vem — lembrei.

— Por isso mesmo. Como ela nunca nos deixa fazer uma festa e sempre arruma um jeito de escapar, vamos pegá-la realmente de surpresa.

— Mas hoje à noite? E você só me avisa agora?

— Anna, querida, decidimos isso há apenas uma hora — ele riu, toda a leveza de sua gargalhada inebriando o ambiente. Conchito poderia fazer o que bem entendesse e pedir o que quisesse que todos fariam. — Vamos sair para comprar umas coisas e de lá iremos para a boate. Se a sua avó perguntar por nós, diga... diga que não sabe. Quando a festa estiver prestes a começar eu mando alguém pegar você — ele me deu um beijo na testa e saiu com Jeferson. A casa ficou silenciosa.

Meu telefone vibrou mais uma vez em meu bolso, mas eu não estava mais com paciência para a paixonite aguda de Andressa. Olhei a mensagem de má vontade, no entanto o seu conteúdo me pegou de surpresa.

“Pode ser quatro queijos?”.

Era um número que eu não conhecia, contudo adivinhei no mesmo instante quem era do outro lado da linha e sorri. Salvei o seu número na mesma hora.

Anna: Essa quantidade toda de queijo pode te dar muitos gases, sabia? — respondi e comecei a rir, imaginando como seria a reação de Davi. Demorou uns cinco minutos antes de eu receber uma resposta.

Davi: Nossa, que maneira mais estranha você tem de começar uma conversa.

Anna: Estranha? Foi você quem já chegou falando sobre queijos sem ao menos dar um ‘oi’ antes de se apresentar, seu mal educado.

Davi: Tudo bem, você tem razão. Me desculpe. Vamos recomeçar então. Oi, Anna, aqui é o Davi. Como vai?

Anna: Bastante bem. E você?

Davi: Um pouco entediado.

Anna: Por que você não deu sinal de vida antes? — perguntei bem direta, não havia porque fazer rodeios. Esperei mais cinco minutos antes dele me responder.

Davi: Não sei. Fiquei com medo de você ter me convidado apenas por impulso. Achei até que nem lembrava mais disso.

Anna: E por que resolveu falar comigo agora?

Davi: Porque achei que não seria legal não te responder nada. Você foi gentil comigo, mesmo à sua maneira. Queria agradecer.

Anna: Hum...

Davi: Está chateada?

Anna: Não, estou só pensando. Você não devia achar que eu faço as coisas por impulso, por mais maluca que eu pareça ser.

Davi: Ok. Acho que me acostumo.

Se acostumar... O que ele queria dizer com isso? — pensei e um sorriso brotou em meus lábios. Percebi então que essa era a brecha que eu estava procurando se quisesse cultivar alguma espécie de amizade com ele. E, bom, se ele estava disposto a se acostumar com as minhas excentricidades eu também poderia me acostumar as dele.

Anna: Você ainda lembra qual foi o ônibus errado que pegou e acabou parando perto da minha casa?

Davi: Sim, não tenho como esquecer isso...

Anna: Então pegue ele agora que eu vou te esperar no último ponto antes dele retornar.

Davi: Mas agora? Você não acha que ainda é muito cedo?

Anna: Sim, mas quem mandou não me avisar antes. Tenho um compromisso depois.

Davi: Ah, tudo bem. Não quero incomodar.

Anna: Não incomoda não.

Davi: Não, é serio. Eu não quero atrapalhar você.

Anna: JÁ DISSE QUE NÃO ATRAPALHA!!! E nem se preocupe, pois o meu maravilhoso compromisso é o aniversário da minha avó.

Davi: Certo então... Te vejo daqui a pouco. Ok?

Anna: Ok. Vou estar esperando. Mande uma mensagem quando estiver perto.

— Droga, o que eu faço agora? — perguntei-me alto logo depois de terminar a conversa com ele. Sim, eu estava disposta a fazer de Davi meu amigo, no entanto éramos muito distintos. Sobre o que falaríamos? Será que ele agiria ao saber da minha peculiar família? Pensando bem, acho que ele tinha razão, eu havia agido por puro impulso e agora estava aqui remoendo meus atos impensados.

— O que você quer fazer, filha? — minha avó questionou enquanto descia as escadas, pois ouvira meu devaneio. Ela pegou um sapato que estava no último degrau e me fitou enquanto o calçava. Apenas fiquei olhando para o chão.

— Convidei um provável amigo para sair, mas agora acho que não sei como vou lidar com isso. Ele não é como as outras pessoas e por isso tenho medo do resultado. Estou começando a achar que vai ser um completo desastre.

— Ora, Anna, você não é como as outras pessoas, eu não sou como as outras pessoas, as pessoas não são iguais as outras pessoas. Não pense nisso e apenas seja você mesma. Amigos verdadeiros não se importam com diferenças bobas — ela disse sorrindo. — E por falar em amigos, onde estão aquelas criaturas que habitam esta casa?

— Não sei, acho que já foram. Bom... vou sair. Algum problema?

— Desde que você não me arrume encrenca como da última vez — ela piscou e logo subiu as escadas. O que ela havia dito fazia todo o sentido e me senti confiante. Eu amava minha avó justamente por isso, ela era de poucas palavras e sabia como nos levantar com apenas uma única frase.

Olhei para mim e percebi que não estava usando uma das minhas melhores roupas, porém decidi não me arrumar tanto, pois eu não estava saindo para um encontro. Apenas troquei o chinelo por um tênis, mudei a blusa, peguei minha bolsa e esperei uns quarenta minutos antes de sair. Nos meus fones de ouvido a voz melodiosa e rouca de Bryan Adams cantava heaven especialmente para mim.

— Ai, Bryan — suspirei —, parece que estou vivendo uma cena igual à daquelas fanfics que Andressa insiste em ler para mim no intervalo das aulas, aquelas que falam sobre amizades impossíveis entre pessoas improváveis.

Tomara então que seja tão fácil e legal quanto.

Sentei no ponto de ônibus às oito horas e esperei. Esperei, esperei e esperei. Oito e quarenta começou a cair um sereno bem fininho e nada de Davi aparecer. E embora eu tenha ficado com muita raiva também fiquei um pouco aliviada por ele não ter vindo. Talvez fosse o certo mesmo, eu ter Andressa como amiga já era um enorme milagre.

— Bom, acho que agora terei uma noite longa regada a sorvete e filmes de super-herói.

— Esperando alguém, mocinha? — uma senhorinha idosa me perguntou e então percebi que tinha falado alto demais. Maldita mania.

— Estava. Mas agora não mais — respondi com um sorriso triste e fui embora. Já eram nove horas.

O sereno não era forte o suficiente para molhar, mas fez a temperatura cair, me deixando com muito frio. Pensei em minha avó e no presente que compraria para ela no dia seguinte, em como seria sua reação à surpresa de Conchito e nas provas que viriam na semana a seguir. Recoloquei os fones de ouvido e novamente a voz de Bryan Adams me deixou sossegada. — Será que vovó gostaria de um sapato ou uma bolsa? Talvez uma blusa? Aposto que ela vai matar o Conchito se ele revelar a idade dela através da velas em cima do bolo. Se bem que é uma grande besteira, ela vai fazer cinquenta e seis e não oitenta. Droga, não faço a mínima ideia da diferença entre sementes monocotiledôneas e dicotiledôneas. Já sei, vou comprar aquele colar que ela disse que tinha amado. O quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado da soma dos catetos. Ou o quadrado dos catetos é igual a hipotenusa?

— Eu nunca tinha visto ninguém falar tantos assuntos em tão pouco tempo — alguém disse, me assustando ao colocar um guarda-chuva sobre minha cabeça. — Ainda mais levando em consideração que a pessoa em questão está falando alto e sozinha — ele falou timidamente, porém não respondi, apenas andei mais rápido para que ele não pudesse me alcançar, toda a serenidade dos últimos momentos simplesmente evaporando de dentro de mim. Aumentei o volume da música.

— Me desculpe, mas é que... — Davi tentou falar, mas eu cortei. Puxei os fones da minha orelha com rispidez.

— Isso é alguma espécie de brincadeira? Porque se for eu não estou achando graça nenhuma — questionei. — O que passa na sua cabeça para fazer esse tipo de coisa? Já sei, você se acha muito importante ao ponto de fazer todos esperarem pela sua boa vontade, não é?

— Me desculpe — ele recomeçou. — Na verdade eu nem imaginava que você ainda estivesse aqui e por isso a minha intenção era ir até a sua casa para poder me desculpar. Eu tentei avisar que ia demorar, mas o meu celular descarregou assim que saí de casa — Davi balançou na minha frente o aparelho desligado. — Se você me der um tempo eu posso explicar, mas aqui na rua acho que vai ser difícil. No entanto, se você não quiser me ouvir eu também entendo — ele de repente pareceu bastante triste. — Estou acostumado — disse, desviando o olhar, mas isso pareceu mais um desabafo do que uma tentativa vaga de me comover.

A chuva – completamente fora de época e não prevista pela meteorologia – começou a engrossar e me deixou quase que completamente molhada em poucos segundos. Respirei bem fundo e pensei em como a vida é.

— Você tem razão, se continuarmos aqui na rua não poderemos falar e ainda vamos acabar pegando uma gripe. Além do mais, não temos mais como sair molhados desse jeito — sorri e ele retribuiu o meu sorriso. — Venha, vamos até a minha casa.

Ele me colocou novamente sob o guarda-chuva e dessa vez aceitei, nos fazendo ficar espremidos embaixo da precária proteção. — Por favor, tire esses óculos, pois se você tropeçar e cair eu vou acabar indo junto, e se isso acontecer não vai ser bom para a sua saúde — reclamei e ele fez esforço para não rir. Ao perceber que eu estava tremendo muito por causa do frio, Davi ofereceu para mim o seu moletom, contudo não aceitei. Achei que isso seria demasiadamente íntimo.

— Obrigado, Anna. De verdade — ele disse tão baixinho que mal consegui ouvir.

— Pelo quê?

— Por ter me esperado. Isso foi a coisa mais legal que já fizeram por mim.

— Não se iluda. Ainda vou arrumar uma maneira lenta e dolorosa de me vingar de você — falei de supetão, mas não era sério. — Apresse o passo.

Nós seguimos rua acima e a chuva aumentou de tal modo que mal conseguíamos nos mover. Uma ventania acabou virando o guarda-chuva e o quebrou, nos deixando totalmente expostos nas ruas escuras. Um carro passou e nos sujou de lama. Peguei Davi pela mão e o fiz correr até em casa.

— Essa é a pior noite da minha vida! — reclamei quando chegamos ao pátio da minha casa.

— Já tive piores — Davi disse. Achei que ele estivesse chateado por causa do nosso estado, afinal, ele estava ali porque eu o tinha chamado. Mas Davi parecia bem e quando nos olhamos desatamos a rir feito loucos.

— Sério, Davi. Será que algum dia vamos nos ver, nos cumprimentar, sentar e ter uma noite normal como duas pessoais normais e civilizadas?

— Sinceramente? Eu espero que não, Anna — ele rebateu.

E eu sinceramente também esperava por isso.



 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Somente à noite" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.