Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 6
O fantasma da biblioteca




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— Anna, espero que você tenha uma boa explicação para o que houve! — Minha avó gritou com as mãos na cintura. Dei um sorriso amarelo em resposta.

— Que os jogos comecem e a sorte esteja ao meu favor!

— Sem gracinhas, pois eu não estou com paciência para isso — esbravejou. — Você tem noção do que fez?

— Mas o que foi que eu fiz de tão grave? Só ajudei uma pessoa!

Ela então enxugou a testa com as costas das mãos e percebi que metade de sua fúria era na verdade preocupação. Dona Sarah respirou bem fundo, como que para se acalmar, e falou pausadamente, como sempre fazia quando eu me ferrava.

— Entre, não quero conversar com você aqui na rua...

Nós entramos em casa, com minha avó à frente, e fuzilei Conchito com os olhos, pois com certeza ele deveria ter aumentado as dimensões de toda a situação. Ela me puxou para o seu quarto e fechou a porta bem na cara do meu amigo, pois aquela seria uma conversa apenas entre nós duas.

Achei bem feito para ele.

— Que história é essa de se meter com aquele homem? — ela disse se referindo a Sapo. — Você por um acaso não sabe quem ele é?

— O que foi realmente que Conchito lhe falou? — eu rebati. Precisava saber a versão que ela tinha sobre os fatos.

— Que você simplesmente se meteu em uma briga de gangue para salvar um colega de escola munida com aquele taco horroroso que você sempre carrega por aí! — Sarah respondeu sem pausar. — E que depois trocou o seu amigo por duas garrafas de uísque, como se ele fosse uma mercadoria. Isso depois de Sapo ter insinuado que na verdade queria você em troca! — ela terminou, furiosa.

Comecei a rir e vovó quase e matou com o olhar.

— Pelo amor de Deus, vó! Não é nada disso. Pelo menos não desse jeito que Conchito relatou.

— Então me explique!

— Primeiro, não era uma gangue, eram apenas Sapo e mais dois infelizes da sua corja. Segundo, eles estavam agredindo o meu amigo sem nenhum motivo, apenas porque ele estava passando por lá. Terceiro, eu apenas pedi gentilmente que Sapo deixasse Davi ir embora e, como ele veio cheio de segundas intenções, ofereci as bebidas como um acordo de “paz” — fiz aspas com os dedos. — Não foi nada demais e não corri nenhum risco. Sapo tampouco pareceu chateado e disposto a fazer algo de ruim comigo futuramente. Fique tranquila. Esta tuuuudo bem — eu falei a última parte bem devagar, dando ênfase ao “tudo”. Minha avó ficou algum tempo calada.

— Eu sei que contando assim não parece nada demais — ela proferiu depois de pensar. — Mas eu realmente fiquei com medo de que algo te acontecesse, querida. Esse homem é um maluco, te avisei mil vezes para ficar longe dele. Por que fez isso? Por que se arriscou? Você sabe as coisas que aquele homem é capaz de fazer. Ora, Anna, eu te ensinei melhor que isso e você sabe muito bem que se as coisas tivessem dado errado a essa hora não estaríamos tendo essa conversa. Até onde eu sei você não é tão irracional. Esse seu amigo vale tanto a pena assim?

— Não sei, vó — respondi meio envergonhada. — Ainda preciso descobrir isso. Mas eu também faria o mesmo por qualquer outra pessoa. Acho que não existe essa coisa de pessoas que “valem a pena”, acho que existe apenas ajuda. E Davi precisava de ajuda naquele momento. E olha, eu só fiz exatamente o que a senhora faria no meu lugar. Foi você quem me ensinou a ser boa, lembra?

Ela então ficou me olhando, como se estivesse analisando as coisas que eu havia dito. Percebi quando sua expressão mudou e um leve sorriso nasceu em seus lábios, me avisando que eu havia ganhado o jogo. Parece que eu havia conseguido convencê-la de que tudo estava bem e por isso deixei para me acertar com Conchito depois. Aquele língua de metro ainda ia me pagar.

— Davi. Então é esse o nome dele? — ela disse amena e até um pouco maliciosa. — Onde ele está?

— Mandei-o embora. Achei que seria desagradável para ele participar dessa discussão. Ele é um garoto diferente.

— Diferente? — minha avó perguntou, agora sorrindo, e tive a certeza que por causa disso ela não me deixaria em paz a semana inteira. — Acho que você está me devendo uma conversa.

Eu sorri em troca e comecei a ajudá-la a retirar a maquiagem e as bijuterias, um ritual que vez em quando fazíamos juntas. Ela não voltaria mais para a boate aquela noite e eu sabia que teríamos uma longa conversa.

— Ai, vó, já disse que adoro esse vestido? — eu disse depois que finalmente prestei atenção no que ela usava. Ele era preto, sem mangas, com alças largas e sem decote, um modelo muito bem comportado. Bom, seria comportado se aquela não fosse Sarah Fernandes, pois na parte de trás do vestido havia um enorme decote que deixava praticamente toda a sua costa à mostra. Minha avó, apesar de ter passado dos cinquenta, ainda podia usar um vestido como esse.

— Eu sei. Lindo não é? Mas você não me compra com elogios. Ainda vai ficar de castigo por um bom tempo, Anna furacão!

Apesar do castigo iminente não fiquei brava, pois aquela mulher fazia de tudo por mim. Nós deitamos juntas na cama e passamos a noite inteira falando sobre coisas as quais há algum tempo não conversávamos, contando histórias loucas e sonhos, desejos e bobagens. Davi estava incluso nesse pacote e minha avó me disse que estava mesmo mais do que na hora de eu fazer amigos novos. Restava agora saber se Davi também pensava nisso.

*

Eu estava de mau humor, muito mal humor.

Acordar cedo era algo até natural para mim, mas eu estava realmente moída. Achei que depois de conversar com minha avó ela amoleceria o coração, no entanto dona Sarah sabia ser bem cruel quando queria. Como castigo pelas minhas peripécias acabei tendo que lavar os dois banheiros, limpar os dois andares da casa, lavar a área e faxinar a cozinha sozinha.

— Eu acho que morri, mas estou tão mal que minha alma está com preguiça de deixar o corpo e seguir para a luz — respondi para Andressa quando ela perguntou como eu estava.

— Que horror, mona! — ela me chamou de um jeito engraçado, no entanto eu não ri, pois se fizesse isso gastaria toda a energia corporal que estava economizando para assistir a aula naquela manhã. Eu estava tão cansada que piscar parecia cansativo e por isso fechei os olhos e apoiei a cabeça no ombro dela. — Como foi o seu fim de semana? Farreou muito? — Andressa perguntou, provavelmente achando que eu estava de ressaca.

Quem me dera.

— Que nada. É que minha avó resolveu me fazer de empregada. Nunca mais quero saber de uma vassoura na minha vida.

— Nossa, que bad, Anna! Mas você não fez nada de interessante?

Estudei física, aturei as músicas horrendas do Conchito, fui ao supermercado, vi um cara apanhando, descobri que o cara era o Davi, descobri que o cara que estava batendo nele era um bandido, me meti na briga, troquei Davi por bebidas, levei ele pra casa, constatei que ele era um puta de um cara lindo, fiquei sabendo que ele tinha um problema, pedi desculpas por ter feito coisa errada, mandei-o embora, levei bronca da minha avó, tentei matar o Conchito por ter aumentado a fofoca e por isso minha avó me fez trabalhar como Hércules em seus doze trabalhos. Esqueci algo?

— Não, Andressa — respondi. — Não fiz nada interessante. Nadinha.

— Ai, que chato — ela pareceu se compadecer. — Espero que seu próximo final de semana seja bem mais agitado.

Deus me livre — rezei internamente. — Deus me livre.

Nós duas ainda conversamos por alguns minutos antes de irmos para a aula e combinamos de nos encontrar no intervalo. Embora estudássemos na mesma série nossas salas estavam muito distantes uma da outra e por isso sempre tínhamos que saber onde a outra estaria se quiséssemos fazer algo juntas. Já havia alguns alunos em minha sala quando entrei e fui direto para a minha cadeira demarcada pelo professor, pois mesmo no ensino médio ainda tínhamos que sentar exatamente no mesmo lugar todos os dias. Os livros de uso comum ficavam por lá mesmo, dentro do tampo da mesa, e quando fui pegar o de cálculo algo caiu de dentro dele. Era um envelope branco, bem simples e sem nada escrito em nenhum dos lados. O abri cuidadosamente e dentro dele tinha um pequeno bilhete escrito à mão.

“Desculpe-me pela comunicação antiquada, mas não tinha como eu falar com você de outro modo. Estarei na biblioteca, na hora do intervalo, com o seu dinheiro. Davi”

Não aguentei e comecei a rir da maneira como ele escreveu o bilhete, com uma linguagem formal e nenhuma risadinha comum nas mensagens trocadas pelas pessoas. Pensei também que ele poderia ter pedido o número do meu telefone para Andressa, já que estudavam juntos, ou simplesmente vindo até mim como qualquer pessoa normal. No entanto me pareceu que ali, dentro daquele ambiente, Davi gostava de aparecer o mínimo possível. Dobrei o papel e coloquei no bolso, pensando em como esse garoto era diferente de todos os outros que já havia conhecido.

A aula pareceu demorar mil anos para acabar, pois a professora passou cálculos complexos e intermináveis que provavelmente só teriam utilidade se eu fosse trabalhar na NASA. Meu estômago roncou quando o sinal bateu e, antes mesmo que eu saísse da sala, Andressa estava lá me esperando.

— Hoje o lanche é por minha conta — ela ofereceu e eu lembrei que tinha que ver outra pessoa. Nós éramos amigas, mas ainda não tinha como eu contar para ela todas as coisas que haviam acontecido nos últimos dias, pois achava que primeiro eu precisava resolver as coisas com Davi.

— Mudança de planos — eu ri e ela me olhou torto. — Dormi na aula da professora Norberta e ela me pediu uma pesquisa sobre a função da tangente na construção de equações secundárias perfeitas no plano posterior da parábola triangular — inventei um nome mirabolante e Andressa ficou boquiaberta. — Preciso ir correndo até a biblioteca.

— Nossa, mas como você está sem sorte. Xô uruca! — ela fez estalou os dedos sobre a minha cabeça e eu ri do gesto. Andressa era muito ingênua e acho que por isso eu gostei imediatamente dela. — Quer que eu vá com você?

— Não precisa — neguei veementemente e minha amiga, ainda bem, não percebeu. — Nós vemos na saída, ok?

— Ok. Boa sorte ai com a construção da tangente na triangular função perfeita — ela embaralhou os nomes que eu havia inventado e saiu saltitante, deixando um rastro do seu caro perfume floral. Assim que ela sumiu no corredor tomei o caminho oposto até a biblioteca.

Eu ainda não havia entrando no lugar e me surpreendi com a quantidade de estantes e livros presentes ali, que tomavam todos os espaços desde as paredes até quase tocar o teto. As seções estavam divididas por temas e ordem alfabética e as estantes lotadas faziam muros que se fechavam de forma abrupta como um labirinto. A associação com o labirinto me fez lembrar imediatamente de meu primeiro encontro com Davi, quando ele me indicara o caminho até a sala do diretor, mas eu acabara me perdendo. Do jeito que o espaço era grande, com sua profusão de corredores e mesas, e minha cabeça sendo uma negação em relação à memória espacial, provavelmente eu não encontraria a saída sem antes andar em círculos por algum tempo.

Como os alunos tinham grana para terem os seus próprios livros e hoje em dia todas as pesquisas serem feitas através da internet, a biblioteca estava tão vazia quando um mausoléu e o silêncio só era cortado pelo barulho chato que meus tênis faziam em contato com o chão. Apenas a bibliotecária, sentada em frente ao computador, parecia ser a única alma viva ali.

— Onde será que ele se meteu? Droga, acho que estou perdendo o meu tempo — me perguntei já arrependida de ter deixado Andressa na mão. Resolvi dar meia volta, mas antes que encontrasse a saída alguém tocou no meu ombro, me assustando. Soltei um grito e a bibliotecária me olhou feio.

— Por que você não vai assustar a sua avó? — eu ralhei e Davi me deu um sorriso sem graça. — Se o seu plano é me matar do coração, parabéns. Você quase alcançou o seu objetivo.

— Quer dizer então que você não tem medo de bandidos, mas tem medo de fantasmas? — ele debochou e eu baixei a guarda.

— Claro! Não posso bater neles com o Anderson Silva, já que são apenas espectros, não é mesmo?

— Anderson Silva? — ele pareceu confuso e dessa vez foi eu que ri alto. A bibliotecária nos olhou feio novamente e pedi desculpas.

— Longa história. Um dia eu te conto. Mas, então, você me chamou e eu estou aqui. O que quer?

— Ah, sim — ele só então pareceu lembrar o que fazíamos ali. Observei o garoto e ele estava novamente vestido como alguém que quer se esconder, então por alguns instantes me lembrei de sua condição. — Eu acho que te devo algo — Davi estendeu para mim um envelope idêntico ao que me deixara o bilhete, com a diferença que esse parecia um pouco mais cheio. — Espero que esteja certo.

Eu ainda fiquei olhando alguns segundos para o envelope antes de pegá-lo e olhar o conteúdo e, enquanto isso, Davi ficou me fitando quieto, como se eu estivesse abrindo uma bomba relógio. Ali dentro havia pelo menos metade a mais do que eu havia dito que custavam as bebidas e não entendi por quê.

— Parece que você é um péssimo aluno em matemática — zombei. — Aqui há muito mais do que o valor que te falei.

— Sei disso — ele respondeu acanhado, escondendo as duas mãos nos bolsos da calça. — Mas você ficou tão brava que achei pensei em te recompensar de algum modo.

— Olha, Davi, não quero parecer mal educada, mas essa não é a maneira correta de se pedir desculpas para alguém. Principalmente para uma garota. Isso foi desnecessário, jamais esperei de você qualquer coisa em troca.

— Me desculpe — ele gaguejou, toda a timidez saindo e tomando conta do seu rosto. — Não quis te ofender.

— Tudo bem — eu amenizei. Provavelmente Davi nunca tinha lidado com uma situação como essa, no entanto confesso que fiquei ofendida, pois não esperava nenhuma recompensa por tê-lo ajudado. Retirei do envelope o excedente do dinheiro, estendendo de volta para ele, e no mesmo instante sua expressão ficou triste. Só então me toquei que ele não era como os outros caras. Com certeza Davi não achava que eu fosse me chatear com isso. Me senti culpada por ter sido tão grossa com ele.

— Tive uma ideia — disse pondo o dinheiro de volta no envelope. — Já que eu estou “cheia da grana”, quero te fazer um convite — Davi abaixou a cabeça no mesmo instante e começou a rir. — Eu estou falando sério! Que tal se a gente saísse para comer uma pizza? Acho que já está mais do que na hora de termos uma conversa normal e sem algum acidente. E aí, o que me diz?

— Você está falando sério? — ele perguntou, unindo as sobrancelhas.

— Por que, algum problema? Sua namorada vai achar ruim?

— Não... — Davi ficou sem graça. — É que faz tempo que não como pizza.

Eu sabia que essa resposta não tinha pé nem cabeça, mas mesmo assim agi naturalmente. Provavelmente ele não era de sair muito com outras pessoas e ficou sem saber o que dizer.

— Pois esse sábado vamos acabar com esse jejum. E aí?

— Eu... não sei, Anna. Acho que...

— Não precisa responder agora. Você tem uma semana pra dizer se topa ou não. Se quiser, é só me ligar — falei enquanto anotava em um pedaço do envelope os números do meu telefone. — Tenha um bom dia, garoto dos desenhos — coloquei o papel no bolso da camisa dele e me despedi. Davi ficou estático, sem dizer absolutamente nada, e, sem esperar qualquer reação da parte dele, virei as costas e fui embora.

Perguntei-me várias vezes se eu estava fazendo a coisa certa, pois Davi era um garoto retraído e eu não sabia absolutamente nada sobre ele. As outras pessoas costumavam falar coisas absurdas a seu respeito e se mantinham afastadas por causa do seu jeito taciturno, mas Davi era legal, eu podia ver pelos breves momentos descontraídos que nos tínhamos conseguido ter. Talvez ele fosse bem mais do que toda aquela casca que costumava aparentar. Uma coisa que eu havia aprendido na vida é que as pessoas constroem muros para se sentirem seguras, mesmo que isso as deixe isoladas do mundo. Eu mesma fazia isso com tanta frequência que muitas vezes havia me perdido dentro de mim. E se dependesse de mim, Davi não se perderia dentro dele mesmo.

 

 

 


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