Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 8
Abacaxis cantores




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É, nada como uma chuva para deixar o meu dia ainda mais maravilhoso e normal. Se continuasse assim eu começaria a cogitar a possibilidade de nunca mais sair de casa nas noites de sábado, pois parecia que sempre que alguma coisa estranha tinha que acontecer comigo acontecia exatamente neste dia da semana.

A vez em que eu fui atacada por dois poodles furiosos...

Ou a vez que me roubaram os tênis quando os tirei para me pesar na farmácia...

A velhinha no supermercado que tentou me bater com o guarda-chuva enquanto gritava “onde está o Afonso!?”...

A noite em que uma louca me confundiu com sua prima morta e jogou água benta na minha cabeça...

E o encontro com Davi na rua escura em que tive que ajudá-lo a não apanhar de uns “meliantes”.

Pensando bem, não tinha como eu exigir nada diferente. A normalidade das coisas não era muito minha fã e perto disso uma chuva completamente fora de época não era nada se comparada ao resto.

Quando eu e Davi entramos na sala de casa estávamos ensopados. A chuva, se é que era possível, ficou ainda pior e um relâmpago fortíssimo encheu a sala de luz. Davi ficou analisando o ambiente e ainda bem que eu percebi a tempo que ele estava quase pisando em território proibido.

— Cuidado com esse tapete! Se você sujá-lo de lama vai ver a face de Hades pessoalmente. Minha avó ama esse tapete mais do que a mim — adverti e não era mentira. Vovó havia ganhado aquela coisa cafona e peluda de um figurão e provavelmente me trocaria pelo objeto caso um dia ele fosse roubado e o resgate fosse eu. — É sério. Deixe os seus sapatos ali no canto e venha comigo.

O garoto rapidamente retirou os sapatos e me seguiu casa adentro sem dizer nenhuma palavra. Nós já estávamos no topo da escada quando ele se manifestou.

— Anna, é sempre assim quando você sai de casa? Sempre acontece alguma coisa diferente?

— Imagina. Só quando eu dou de cara com você. Você parece que tem o poder de atrair encrenca — respondi e fiquei pensando que se eu sozinha atraia esquisitices, com Davi parecia que a polaridade toda da terra nos atraia para o caos. Mas o mais engraçado era que ele parecia estar achando toda aquela situação muito divertida.

Davi era um enigma para mim, pois tinha um comportamento e um temperamento difícil de definir. Em alguns momentos era extremamente tímido e se escondia mesmo sem necessidade, um esquisitão. Já em outras vezes ele era até meio sarcástico, fazendo piadinhas e rindo em momentos que não eram para rir, como agora. Era intrigante, como ler um mapa de cabeça para baixo. Você até consegue ver tudo o que há ali, mas não compreende aonde isso vai te levar.

E com isso pode acabar se perdendo se seguir em frente.

— Você pode me arrumar uma toalha? — ele pediu, gentilmente, os cabelos molhados pingando e grudando em seu rosto. Era bem bonito. Fiquei olhando um tempo para ele até que ficasse vermelho e abaixasse a cabeça.

Voilà. Lá estava o Davi tímido outra vez.

— Vou fazer melhor do que isso. Espere no banheiro que vou te arrumar umas roupas secas. Tudo bem para você usar roupas de outra pessoa?

Ele fez que sim e eu segui até o quarto de Conchito na tentativa de arrumar alguma coisa máscula o suficiente para que Davi pudesse usar. Dentro do armário me deparei apenas com uma profusão de leggings, bermudas coladas e os vestidos que Conchito usava nas apresentações da boate. O restante continha glitter demais ou era estampado demais. Busquei lá no fundo por algo que fosse mais “usável” e por fim encontrei uma calça jeans aparentemente normal. Era um pouco apertada, mas como Davi era menor que Conchito torci para que servisse. Achei também uma blusa branca adornada com abacaxis cantores, o que era melhor do que as com o rosto da Lady Gaga e as com frases como “beijinho no ombro”, e a levei também.

— Davi? — bati na porta do banheiro e ele apenas pôs a cabeça para fora. — Espero que sirva — entreguei as roupas e ele agradeceu. — Eu também preciso me trocar, então bata na porta do meu quarto quando acabar — coloquei os braços ao meu redor para espantar o frio e segui até meu quarto.

Enquanto trocava de roupa parei para pensar e me dei conta de que nada estava fazendo o mínimo sentido. Nós estávamos pela segunda vez dentro da minha casa, mas sequer éramos amigos, não sabíamos nem qual era o sobrenome um do outro. Nós tínhamos nos visto apenas poucas vezes e nunca havíamos parado para conversar ou fazer qualquer outra coisa. Éramos apenas dois estranhos que insistiam em se falar.

Mas por que será que eu me sentia tão bem na presença de alguém que eu não conhecia? Lembrei do que eu havia me perguntando pouco tempo antes: “Será que algum dia vamos nos ver, nos cumprimentar, sentar e ter uma noite normal como duas pessoais normais e civilizadas?"

A resposta era... não.

Algumas leves batidas na porta atraíram a minha atenção e me apressei, prendendo os cabelos molhados num rabo de cavalo. Encaminhei-me para abri-la e Davi entrou, parecendo bastante desconfortável por causa da roupa. A calça havia ficado muito apertada e a blusa de abacaxis tinha uma abertura na gola grande demais, quase até a metade do tórax. Ele estava parecendo um dos dançarinos da boate da minha avó.

Mordi os lábios.

— Horrível, não é? Acho que seria melhor eu ter ficado molhado — ele disse todo envergonhado. Mas se ele soubesse o quanto era fofo duvido que se esconderia tanto.

— Eu disse que um dia ia me vingar de você por ter me feito esperar, só não sabia que seria tão rápido. Nem está tão horrível assim. Só um pouco — menti. Na verdade ele estava bem gostoso, mas óbvio que eu não ia dizer isso a ele.

— Seus pais não vão achar ruim ter um garoto no seu quarto? — ele perguntou e fiz uma expressão séria.

— Meus pais estão mortos — disse e fiquei de costas.

— Ah, eu sinto muito — ele se desculpou.

— Não, tudo bem — abanei as mãos. — Foi um acidente horrível... — suspirei.

— Carro?

— Não — respondi. — Foram comidos por onças na Amazônia.

— Co... como? — ele gaguejou.

— Eles trabalhavam para o Greenpeace e certo dia foram chamados até uma reserva indígena para resolver um problema. Eles acabaram se perdendo na mata e foram comidos. O que sobrou deles coube numa caixa de sapatos — respondi e fiz muita força para não rir. Porém, ao ver a cara incrédula e assustada de Davi não resisti e comecei a gargalhar.

— Pelo amor de Deus! — ele exclamou. — Como você pode brincar com uma coisa dessas? Você é sempre assim, faz piada com tudo?

— E você é sempre assim tão chato? — devolvi. Ele ficou sério por um tempo e então não resistiu e riu comigo. — Bom, embora eu more com a minha avó, meus pais estão bem vivos. Mas essa é uma longa história que eu tenho certeza que você não vai querer saber — cortei. — E eu não costumo receber garotos no meu quarto, por isso é melhor se comportar. Posso confiar em você?

— Totalmente — ele respondeu com as mãos nos bolsos. — Bom, você falou algo sobre o aniversário de sua avó então é melhor eu ir andando, as pessoas vão chegar.

— A festa não vai ser aqui, será em outro lugar — respondi e então tive uma ideia.

Já que estávamos ali sem fazer nada e tínhamos planos de sair... por que não levá-lo comigo?

— Quer ir?

— Acho melhor não, Anna. A gente mal se conhece... e não acho certo me meter em uma festa de família.

— Davi, vai por mim. As festas da minha avó são tudo no mundo menos de “família” — disse e ele arqueou as sobrancelhas. — Além do mais, você não tem como ir a lugar nenhum com essa chuva.

— E essa roupa? Não gostaria sair assim desse jeito — reclamou.

— Já sei — fui até o meu armário e revirei tudo até encontrar algo. — Vista isso — entreguei a ele um casaco jeans. Ele pegou e analisou a peça.

— É seu?

— É. Mas é muito grande para mim e acho que vai ficar legal em você. Então, agora que o problema está resolvido você vem comigo?

Ele olhou pela janela e viu o quanto a chuva ainda estava pesada. Antes que me desse uma resposta ouvi o barulho de uma buzina e reconheci como sendo a do carro novo da minha avó. Olhei pela janela e vi quando uma pessoa desceu apressada, e quando soube quem era saí em disparada. Nem percebi se Davi veio atrás de mim.

— Alex, seu maluco! — abracei meu amigo quando ele entrou na sala. — Quanto tempo!

— Um ano, pequena — ele respondeu com seu sotaque americano inconfundível. Alex era amigo da minha avó há muitos anos e eu sempre desconfiei que ele gostaria de ser bem mais que isso. Mas vovó costumava dizer que não queria ser o seu amor brasileiro, já que Alex provavelmente deveria ter uma namorada em cada lugar que parava. — Sentiu minha falta?

— Claro que sim, meu gringo favorito. E obrigada pelo presente que você me mandou no natal passado. Aquele taco foi a melhor coisa que ganhei na vida — agradeci e ele deu uma risada rouca. Alex então olhou por cima do meu ombro e fez uma expressão safada.

— Não vai me apresentar seu namorado, Anna?

— O quê? — olhei para trás e vi Davi observando. — Ah, não, ele não é meu namorado. Nós apenas estudamos juntos.

Alex apenas deu de ombros e agradeci a Deus por ter um amigo tão discreto.

— Bom, vamos? Depois colocamos o papo em dia — ele abriu a porta e saímos. Davi ficou olhando para a chuva provavelmente decidindo se ia ou não.

— Deixa de frescura e entra logo — eu o empurrei para dentro do carro e Alex arrancou com tudo.

*

— Então, Anna, eu cheguei hoje de manhã e decidi aparecer só agora para fazer surpresa — Alex contou. — Sua avó ficou louca quando me viu.

— Vocês deviam se acertar logo e parar de enrolação.

— Pois é, mas ela não me quer. Fazer o quê — ele suspirou. — Fiquei sabendo que vocês estão contratando novos strippers — Alex perguntou e Davi, que estava ao meu lado, me olhou de esguelha.

— Sim, um dos meninos casou e o outro vai voltar pro interior. Você precisa ver os currículos que recebemos para preencher as vagas. Acredita que dois caras com ensino superior e pós-graduação estão a fim de tirar a roupa lá na boate? Os coitados são professores e disseram que precisam de um extra para complementar a renda...

— É, a vida não está fácil para ninguém — Alex concordou. Davi se remexeu ao meu lado e percebi que queria dizer algo.

— Anna, aonde vamos... exatamente? — ele perguntou depois de um tempo, acanhado.

— A uma boate LBGT — respondi.

— A sua avó é dona de uma boate LGBT?! — ele arregalou os olhos.

— E qual o problema? — perguntei irritada. — Algumas pessoas são donas de padarias, outras de oficinas. Se existe uma boate gay ela tem que ter um dono, não tem? Isso é perfeitamente normal — eu disse e Alex caiu na gargalhada. Davi não respondeu, apenas ficou com uma cara de espanto.

Nós seguimos o resto do caminho sem conversa e em pouco tempo chegamos. O letreiro luminoso de neon da Êxtase Star nos recebeu e era possível ouvir uma batida eletrônica vinda de dentro.

— Chegamos — Alex estacionou. Nós descemos e ele andou na frente, deixando eu e Davi a sós. A chuva já havia diminuído e serenava fininho.

— Bom, melhor eu ir andando — o garoto disse.

— Por quê?

— É que... esse lugar. Eu...

— Tudo bem — interrompi quando vi o quanto ele estava embaraçado. — Uma boate gay deve ser demais para você que é todo certinho, não é? — falei e ele pareceu ofendido.

— Não, não é isso — ele proferiu. — É que eu ainda não entendi qual é a sua.

— Qual é a minha? Como assim, Davi?

— Por que você insiste em falar comigo e me tratar como se fôssemos amigos quando na verdade não somos? — ele perguntou. — Por que você simplesmente não me esquece como todo mundo?

Pensei, pensei e cheguei a uma resposta objetiva e conclusiva.

— Eu não faço a mínima ideia — respondi e era sincero. — Acho que fui com a sua cara.

— Só isso? Simples assim?

— É. Simples assim.

— Você é maluca, sabia?

— Obrigada pelo elogio. Mas e aí, vai entrar ou não?

Ele olhou para a porta da boate e depois colocou novamente as mãos nos bolsos.

— Pense que vai ser uma experiência única — falei.

— Tudo bem — ele disse depois de muito pensar. — Vou entrar.

Segurei-o pelo pulso e depois de falar com Carvalho, o segurança, entramos juntos. O ambiente conhecido estava fervilhando de gente alegre e que dançava de forma divertida. Abri caminho por entre as pessoas e nos levei até a parte privativa onde sempre aconteciam as festas VIPs.

Todo tipo de gente diferente que é possível de se imaginar estava dentro do pequeno salão. Alguns transformistas transitavam com vestidos espalhafatosos e uns rapazes trajando apenas calça preta e gravata borboleta serviam bebidas. No centro, havia uma mesa com o bolo de aniversário e ao chegar mais perto percebi que a vela era em formato de pole-dance, com uma bonequinha loira pendurada na haste. Avistei minha avó perto de Alex e caminhei até ela.

— Feliz aniversário, vó! — desejei enquanto a abraçava. Ela estava com cheiro de coquetel de frutas e percebi que já estava sorridente demais.

— Querida! — ela me apertou forte e beijou o topo da minha testa. — Agora estou completamente feliz — vovó disse levantando uma taça. — Alex, vamos brindar à felicidade!

— Ah, vó — chamei sua atenção e apontei para Davi. — Esse aqui é o meu amigo que te falei.

— Então esse é o famoso Davi! — ela o agarrou e o beijou em cada lado do rosto. — Que lindo! Agora entendo porque você se arriscou por ele. Vejo que valeu a pena — vovó riu e Davi ficou vermelho. Desejei que no mesmo instante um buraco se abrisse para que eu pudesse enfiar a minha cara dentro, mas é claro que isso não aconteceu. — Fique à vontade, coisa linda — finalizou apertando as bochechas dele e logo depois encheu novamente a sua taça.

— Vem comigo — eu tirei Davi de perto dela antes que ela dissesse algo que fizesse eu querer me jogar na frente de um carro, e o levei até onde Conchito estava.

— Que cara é essa, criatura? — Conchito perguntou quando me viu. — Oi, Davi — ele cumprimentou, meio confuso, e o garoto apertou sua mão.

— Vovó já bebeu demais — respondi e percebi que meu amigo estava fantasiado de motorista. — Por que você está com essa roupa?

— Motorista da rodada, darling. Not álcool. Quem você acha que vai levar esse bando de louca bêbada para casa? — ele gargalhou e nos estendeu duas taças coloridas. — Provem isso aqui, fui eu que fiz.

Davi pegou uma das taças e ficou olhando para o líquido cor-de-rosa. Parecia inofensivo, então não me preocupei com ele. Quando bebi, era suave e tinha gosto de morango. O teor de álcool era bem leve, nada comparado ao que eu era acostumada, e por isso não senti nada de diferente. Nós três ficamos observando a festa e enquanto isso eu e Davi bebemos duas, três, quatro, cinco taças da mistura que Conchito inventou. Os parabéns foram cantados depois da meia-noite e me perdi de Davi por uma meia hora enquanto ficava com minha avó e cumprimentava os amigos dela. Estava tudo correndo muito bem.

Estava.

Até Conchito vir atrás de mim com uma cara espantada.

— Anna, seu amigo já bebeu alguma vez na vida? — ele perguntou, esbaforido.

— Não sei. Acho que não. Por quê? O que houve? — me desesperei.

— Nada demais — ele riu. — Mas eu acho que você precisa ver isso.

 

 


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