Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 4
Corra, Conchito, corra!




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Chamaremos de dilatação linear a dilatação de objetos cujo comprimento é muito maior do que as outras dimensões. Nesses casos, a variação do comprimento tende a ser...

Doente de amor... procurei remédio na vida noturna... Com a flor da noite, em uma boate aqui da zona sul... A dor do amor... é com outro amor... que a gente cuuuura... Vim curar a dor, desse mal de amor... na boate azul...

... mensurável enquanto a dilatação das outras dimensões tende a ser desprezível quando comparada ao comprimento — continuei a ler, agora em voz alta. — É o caso de uma barra ou fio. De forma empírica (ou seja, experimental), podemos verificar que...

Garçom... aqui nessa mesa de bar, você já cansou de escutar... centenas de casos de amor... Garçom... no bar, todo mundo é igual...

...a dilatação — pigarreei, para manter a concentração —  de uma barra é proporcional a duas coisas: Ao seu comprimento inicial e à sua variação de temperatura. Com isso...

Hoje, o que eu encontrei me deixou mais triste... Um pedacinho dela que existe... Um fio de cabelo no meu palito... ó...

— Porra, Conchito! Dá para parar de ouvir essas músicas de corno! — gritei e procurei algo bem pesado para atirar na cabeça dele, pois estava impossível aprender física com uma trilha sonora de bar tocando no quarto ao lado e perturbando o meu juízo. O som continuou chorando alto e meus berros se perderam no meio das canções “cornas-dorcotovelísticas”. Munida com apenas um tamanco, me encaminhei enfurecida até o seu quarto e o dito cujo estava deitado de costas, na parte de cima do beliche, curtindo o maldito som como se não houvesse amanhã. Dei com o tamanco na cabeça dele.

— O que diabos você está fazendo em casa num sábado à noite? Hoje não tem show, Cher?

Conchito continuou lá, parado, e nem se importou com a tamancada que havia levado. Fiquei intrigada e abaixei o volume do som. Com isso escutei uns soluços e choramingos esquisitos, como se um gato tivesse se engasgando.

Essa não.

— O que foi? — perguntei, agora compadecida com o meu amigo. — Está doente?

— Não — ele fungou.

— O que foi então? A Beyoncé morreu? Proibiram a venda de CDs do Village People? Não... não me diga que a Lady Gaga parou de cantar? — perguntei com deboche.

— Não, Anna, pior do que isso! — Conchito respondeu, sério, pois ficava lento para entender sarcasmo quando estava emotivo. — É que aquela ingrata da sua avó me dispensou por hoje.

— Como assim, o que houve?

— Ai, Anna... — ele desceu do beliche e sentou na parte de baixo. — Você acredita que aquela velha assanhada deixou a invejosa do Marlon fazer um show lá na boate? E justo hoje, no meu dia! Com ela pode me trair desse jeito? — Conchito fungou.

— Ah, é isso — eu ri e ele me olhou ofendido. — O Marlon é um grande amigo da minha avó e sempre que ele vem à cidade faz uma apresentação especial na boate a pedido dela. Você sempre soube disso, não sei para que tanto alvoroço.

— Mas justo no dia da minha apresentação? — ele perguntou dando ênfase no “minha” e eu segurei o riso, pois Conchito era muito dramático. — Por quê?

— Porque ele chegou ontem e vai embora amanhã, seu bobo. Desse modo, só tinha como ele se apresentar agora no sábado, no caso hoje — respondi e o abracei. — E além do mais, não se preocupe. Ninguém vai trocar a Cher, diva e deusa, por uma qualquer — disse com um biquinho de pato e franzindo os olhos, assim como Marlon em suas apresentações, e então Conchito riu por causa de minha imitação tosca.

— É verdade, você tem toda a razão — ele enxugou as lágrimas e bateu uma palminha. — Eu sou muito mais eu e fui purpurinada assim que vim ao mundo. O recalque não mais me abaterá! — discursou exagerado, como sempre. — Amanhã ninguém sequer se lembrará dessa molambenta.

— É isso ai, Conchito, confiança! — disse afagando seus cabelos hidratados com babosa e mel. — Bom, agora que o seu ataque de pelanca acabou, acho que eu posso voltar a estudar sem ter que aturar sua dor de cotovelo. E da próxima vez que você quiser curtir uma fossa, favor fazer isso ao som de Bryan Adams, please! Só de pensar naquela voz rouca...

— Você e essa sua paixão platônica por esse cantor antigo. Sabia que o Bryan Adams já tem mais de sessenta anos? E eu só estava ouvindo essas músicas porque meu pendrive queimou e eu perdi todas as músicas da Lana Del Ray...

— Primeiro, o Bryan vai ser meu eterno amor, não fale o nome dele, pois você não merece esse privilégio — eu ralhei, pois ninguém além de mim podia pronunciar o nome do meu amado. — E segundo, não me interessa o que houve com o seu pendrive. Se você ficar triste eu prefiro que você pule da sacada. Ao menos eu não terei que ouvir essas músicas mais uma vez!

— Ai, que horror! — ele pôs a mão na boca, fingindo estar aborrecido. — E eu me iludindo, achando que você gosta de mim!

— Olha, Conchito, eu até gosto. Bem menos, se comparado ao tanto que eu gosto de comer, mas gosto. Mas hoje não estou com humor para te aturar. Por que você não vai dar uma volta?

— Porque eu estou sem vontade. Mas se eu quiser sair e curtir eu saio, tá. Ao contrário de você, sua encalhada, que está passando o sábado à noite na companhia de livros ao invés de algum boy. Talvez se você parasse de comer feito um peão de obras alguém olhasse para você — ele alfinetou.

— Querido — usei o mesmo tom de deboche e alisei minha barriga —, olhe bem para isso. Não é gordura, ok. É que eu sou tão gostosa que essa gostosura toda não cabe em mim e acaba transbordando pelas laterais do meu jeans — eu disse e nós dois rimos. — E como gostosura nunca é demais, que tal comermos alguma coisa?

— Eu aceito. Mas devo avisá-la de que não há um único pão em casa. Vamos ter que ir às compras — Conchito falou enquanto trocava de blusa.

— Eu vou matar o irresponsável do Jeferson — bufei enquanto ia até o meu quarto. Jeferson sempre esquecia quando era a vez dele de fazer as compras e no final suas tarefas sempre sobravam para mim. Eu ainda resmungava quando Conchito entrou no meu quarto.

— O que procura, Anna?

— Está rolando uma micareta na rua principal e alguns caras gostam de passar do ponto. Por isso devo me prevenir — falei com dificuldade ao entrar embaixo da cama. — Ah, achei!

— Não, Anna, você não vai andar com essa porcaria! — ele ralhou quando viu o que eu segurava.

— Eu não vou sair a essa hora sem o Anderson Silva!

Anderson Silva é o apelido carinhoso do meu taco de beisebol, que foi presente de um amigo gringo da minha avó. Ele (o taco, não o amigo gringo) já havia me livrado de muita briga, cachorros raivosos e espantado ladrões. Meu xodó.

— É nessas horas que me pergunto como os jovens de hoje serão o futuro da humanidade — Conchito suspirou, desgostoso. — Quando o Alex disse que você poderia pedir o que quisesse dos states aposto que ele tinha a intenção de te dar uma bolsa Gucci ou algo do tipo.

— O que raios que vou fazer com uma bolsa Gucci, Conchito? Além do mais, desde que eu vi o Bruce Willis quebrar a cabeça de um cara com um desses, ter um igual se tornou meu sonho de consumo!

— Vou fingir que não ouvi isso — ele arrumou o cabelo e fez uma careta. — Vamos — chamou e fui puxada escada abaixo por um amigo irritado.

Quando chegarmos ao portão vimos que a rua estava muito movimentada por causa da micareta, pessoas alegres passando para lá e para cá. Eu e Conchito rimos muito por causa dos looks de alguns participantes, mas também percebemos que no meio deles já havia alguns bêbados e engraçadinhos. Não seria seguro uma garota e um cara de legging apertada andando sozinhos tão tarde da noite, ainda mais a pé, e por isso decidimos ir de carro. O velho Fiat 94 de vovó roncou algumas vezes antes de pegar no tranco e Conchito tossiu.

— Oh, desgraça! — ele reclamou. — Já disse para a sua avó se livrar dessa porcaria. Por que ela ainda mantém essa lata velha se acabou de financiar carro um novo?

— Cala a boca e dirige! — eu interrompi, gargalhando, e ele se ajeitou no volante. — Não fale mal do latão!

Rodamos um bocado antes de encontrar um lugar aberto, pois além de ser tarde, metade das ruas no entorno estavam interditadas por causa da festa. Já estávamos quase desistindo quando finalmente conseguimos.

— Ah, não! — Conchito reclamou quando viu que não havia espaço para estacionar perto do mercadinho. — Será que todo mundo resolveu vir para essa maldita micareta?

— Deixe o latão aí e ande logo — eu disse empurrando-o na direção do mercado. — Larga de ser mal-humorado e se apressa!

Já no mercadinho, nós pegamos apenas o essencial para fazer uns sanduíches, refrigerantes, e os ingredientes para o café da manhã e o almoço do dia seguinte. Quando estávamos quase terminando, o dono do mercadinho começou a expulsar os clientes gentilmente, primeiro desligando o ar-condicionado, depois algumas luzes. Olhei no meu celular e já eram onze e vinte e cinco da noite.

Saímos apressados e a única coisa que conseguíamos ouvir era o barulho indistinto de alguma música agitada tocando ao longe. A rua, mesmo repleta de carros, estava completamente deserta, pois todos tinha descido para a praça principal. Porém, apesar da tremedeira (incontrolável) de Conchito e da minha (um pouco menos aparente) chegamos são e salvos ao latão.

— Nossa, estava morrendo de medo de ser assaltada — confessei. — Que lugar mais esquisito.

— Nem me fale, Anna — meu parceiro concordou. — Nem me fale.

Demos partida no velho carro e em poucos minutos já estávamos rindo novamente e conversando sobre os mais gatos da novela das nove. Foi então que, de repente, percebi uma movimentação no canto de uma rua igualmente escura.

— Olhe, Conchito, uma briga. Vamos sair logo daqui — alertei e meu amigo se espantou, pois estávamos muito perto dela. Conchito deu meia volta com o latão enquanto eu observava tudo com curiosidade e foi então que não acreditei no que vi.

Três homens discutiam com um rapaz, e pelas roupas dele eu pude perceber que o cara que estava sendo intimidado não era dali. Foi então que um dos homens estalou os dedos e os outros dois seguraram o garoto pelo braço, deixando-o vulnerável. O que deu a ordem se aproximou e desferiu um soco no rosto do jovem, fazendo-o cair. Dei um grito de espanto, que foi abafado pelas minhas mãos.

Nos milésimos de segundo entre o soco e a queda eu pude ver quem era o rapaz. Mesmo com o rosto parcialmente escondido eu o reconheci pelo moletom com capuz. Estava escuro, mas eu era boa com fisionomias e não tinha como estar errada ou enganada, pois quem era estranho o suficiente para usar óculos escuros a essa hora além dele?

Aquele era Davi. O mesmo Davi da escola. O garoto dos desenhos.

— O que foi? — Conchito se assustou.

— Eu “conheço ele”.

— Ele quem?

— Davi — respondi apontando para onde ele estava. Davi agora tinha se levantado e os três homens riram quando ele recolocou os óculos, que haviam caído. Tentei ver como estava o seu rosto, mas a rua tinha uma iluminação bastante precária.

— Conhece de onde?

— Ele estuda comigo.

— Vamos chamar a polícia! — Conchito se exasperou, pegando o celular.

— Não dá tempo. A cidade está uma loucura por causa dessas micaretas. E, além disso, estamos muito longe do centro — disse aflita. Só então percebi o que havia falado, realmente estávamos muito longe do centro, pois Casa Verde era um bairro bem periférico. — O que Davi faz a essa hora da noite por aqui? — pensei.

— Oh, meu Deus! O que faremos, Anna?

Pensei em todas as possibilidades e elas sempre apontavam para o lado errado. Droga, eu tenho o dom de estar no lugar errado e na hora errada, só pode! Isso não vai dar certo... Por que eu deveria me arriscar por ele, eu nem o conheço? O que esse idiota está fazendo aqui? Ah, que se foda... Porém, tenho certeza de que quando eu vir a foto do seu corpo no noticiário provavelmente não vou conseguir dormir de tanto remorso. Ou não, pessoas morrem todos os dias... QUE DROGA!

— Anna? — Conchito chamou a minha atenção mais uma vez. — O que faremos?

— Não sei — disse pegando o meu taco de beisebol, que estava no banco traseiro. — Mas se alguma coisa der errado, quero que faça uma coisa: corra.

Corra, Conchito.

Pois agora nós vamos ficar bem ferrados.

 


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