Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 3
Romeu e Julieta




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Depois de duas semanas estudando na escola nova nada de interessante havia acontecido. Sim, por incrível que pareça, todos os alunos se importavam mais com suas vidas do que com o mundo exterior e desse modo poucas pessoas falaram comigo nesse meio tempo. Nada de brigas, nada de confusões e até os professores pareciam meticulosamente arrumados.

Achei um tédio.

Bem, não que eu estivesse procurando por problemas, mas foi estranho ser apenas mais uma aluna qualquer enquanto nas outras escolas eu era sempre a neta da dona da boate gay. Isso nas melhores hipóteses, pois já cheguei a ouvir cada absurdo que sempre faziam com que eu me metesse em brigas e inúmeras suspensões até ser expulsa. No entanto, dessa vez acho que conseguiria permanecer intacta até a formatura.

— Hoje faremos um trabalho diferente, por isso peço atenção. Como o professor de biologia faltou, usarei o seu horário vago e unirei vocês com outra turma. Por favor, se encaminhem até o auditório central — o professor de literatura comunicou antes mesmo de nos dar bom dia. Apenas arrumei minhas coisas e segui os outros alunos.

— O que será que ele vai aprontar? — uma garota bonitinha e de aparelho nos dentes questionou para mim com seu sorriso metálico. Eu ainda não a tinha visto na minha sala e por isso deduzi que ela fosse da outra turma.

— Não sei. Sou nova aqui e ainda não estou a par de como agem todos os professores.

— Você é nova aqui? — ela perguntou, mesmo que eu tivesse acabado de dar a ela essa informação.

— Sim, estou aqui faz duas semanas.

— Ai, que legal! — ela saltitou. — Adoro conhecer gente nova. Aliás, meu nome é Andressa.

— O meu é Anna — respondi. A garota então agarrou no meu braço e começou a falar sobre várias coisas as quais eu mal conseguia acompanhar, me enchendo de perguntas. Ela só me largou quando chegamos à entrada do auditório.

— Adorei te conhecer — a estranha menina saltitou e me puxou de modo a sentarmos próximas. — Então, está gostando de estudar aqui?

— Sim — respondi e fui sincera. — Mas tem horas que esqueço que estou no Brasil, pois me sinto dentro de algum desses seriados da Disney. Tenho a impressão de que a qualquer momento vocês vão começar a cantar e dançar uma coreografia ritmada — eu disse e nós duas rimos. — Aqui é bem diferente de todas as outras escolas em que estudei.

— Você já estudou em várias escolas? Por quê?

— É... — respondi sem saber o que dizer. — Longa história.

— Ai, que sorte! Estou enfurnada nessa desde que aprendi a ler — ela reclamou, parecendo se esquecer do que havia perguntado antes. Andressa então parou de rir do nada e ficou olhando para um ponto específico. Segui com o olhar e percebi que ela fitava um garoto com o antebraço tatuado, que estava sentado umas três fileiras a nossa frente.

— Por favor, formem duplas! — o professor atraiu minha atenção indicando o início do trabalho. Como já estava sentada com Andressa, cheguei à conclusão de que faria meu trabalho com ela, mas a garota não parava de olhar para o tatuado com um olhar apaixonado.

— Quem é ele? — perguntei e ela suspirou longamente antes de responder.

— Aquele é o André. Lindo, não é?

— É... ele é bem bonito mesmo — concordei. — Por que você não faz dupla com ele já que ele está sozinho?

A garota me olhou como se eu fosse maluca e respirou fundo.

— Você ficou louca? O André é tipo o cara mais bonito desse lugar. Ele jamais aceitaria fazer par comigo, fora que corro o risco de levar um não na frente de todo mundo!

— Você tem cinquenta por cento de chance dele responder não, da mesma forma que tem cinquenta por cento de chance dele dizer que sim! Faz o seguinte: convide-o para fazer par com você. Se ele negar, diga que tudo bem e vá embora sorrindo, sem se abater. Aja como se tivesse convidado apenas porque não há outra opção — aconselhei e torci pra dar certo.

— Você tem certeza? — ela perguntou.

— Vai lá.

A garota então se ajeitou e andou vagarosamente até o rapaz. Antes de falar com ele, Andressa me olhou mais uma vez e eu levantei os polegares, encorajando-a. Os dois trocaram meia dúzia de palavras e ela não esboçou reação, apenas pegou o celular e fingiu não ligar para a resposta negativa dele. Observei que ele pareceu estranhar o fato dela estar indiferente ao seu “não”, provavelmente algo raro, e imediatamente se levantou, mudando de ideia. Os dois se sentaram lado a lado e Andressa sorriu para mim, agradecida.

Anna, você é mesmo uma doida — pensei. — Mal fez uma amiga e já a perdeu para um possível namorado...

Eu até estava contente com a boa ação, no entanto percebi que agora estava sozinha. Todos pareciam já ter se arrumado e não havia mais ninguém para fazer par comigo.

Ninguém, exceto uma pessoa.

No canto da sala, quase imperceptível, o mesmo garoto encapuzado que havia esbarrado comigo no primeiro dia estava sozinho, lendo um livro e alheio a tudo a sua volta. Eu ainda não tinha comprado o livro de literatura, por isso precisaria me unir a alguém, não tinha como eu fazer nada sozinha nem se  quisesse. Ele era estranho, porém, no momento, minha única opção.

— Oi! — eu disse quando me aproximei e ele não respondeu. Fiquei em pé na sua frente por alguns segundos e ele simplesmente me ignorou. — Você sabia que é feio não responder as pessoas? — perguntei e só então ele olhou para mim.

— Você está falando comigo? — ele perguntou olhando de um lado para o outro.

— Sim. Por acaso tem mais alguém aqui nessa cadeira — respondi e ele ficou sem ação. — Então, posso fazer o trabalho com você?

O garoto ficou me olhando e eu fiquei olhando de volta esperando uma resposta. Quem visse a cena poderia pensar que éramos dois malucos. Eu principalmente, já que enquanto esperava fiquei balançando a cabeça de um lado para o outro.

— Ah, sim. Claro — por fim ele respondeu, quando eu já estava quase indo embora e deixando-o sozinho. — Me desculpe.

— Tudo bem — respondi, abanando as mãos. Perguntei-me por que diabos ele usava óculos escuros dentro da escola, mas me segurei. Será que ele era vesgo? Imaginei um par de olhos assimétricos me fitando e desatei a rir.

— Algum problema? — ele perguntou. Eu era muito escandalosa nesse quesito e nunca conseguia me segurar.

— Nada — disse olhando para a tela do celular e fingindo ler algo engraçado. — Então, lembra de mim? — puxei assunto.

— A garota do labirinto — ele respondeu com um meio sorriso. Bom, pelo menos se ele fosse vesgo tinha um sorriso lindo para compensar. — Parece que você conseguiu achar o que procurava.

— É, consegui. Entrei numa penca de lugares errados, mas consegui, garoto dos desenhos — nós sorrimos juntos. — Então, sobre o que é o trabalho mesmo?

— Romeu e Julieta.

Fiz uma careta de desgosto.

— O que foi? Você não gosta de Shakespeare?

— Sim, eu gosto. Principalmente MacBeth — falei e ele arqueou as sobrancelhas.

Que foi? Achou que eu era ignorante, é? Se ferrou... Eu já li várias histórias dele, baby.

— Então qual o problema com Romeu e Julieta? — ele questionou após o meu soberbo monólogo interno.

— Shakespeare é incrível, um gênio, mas sinceramente eu odeio essa história. Todo dia me pergunto que porra foi essa: Primeiro, Romeu era um pedófilo, já que a Julieta devia ter uns 13 anos. E segundo, eu sinceramente não sei como morrer pode ser considerado romântico. Fora que eles foram dois imbecis ao se matarem por causa de um mal-entendido. Ela finge que morre, ele se mata por ela e ela morre porque ele se matou. Historinha escrota, né? — disse e o menino ficou assustado pelo meu vocabulário a La Dercy Gonçalves. Ok, sei que pareceu exagero, mas minha cota de romances melosos estava completamente saturada, pois acho que uma história onde dois adolescentes cometem suicídio por amor não deveria ser tão difundida.

— Nossa! — ele soltou o ar vagarosamente, acho que se recompondo — Você tem uma opinião forte... mas você também tem que ver o contexto histórico e uma gama de coisas. Na época as mulheres casavam muito cedo e por conveniência, por isso uma história de amor que pudesse vencer isso fez tanto sucesso. E convenhamos que a morte era a única maneira de uma mulher se libertar — ele defendeu, triste. — Porém, compartilho da sua opinião.

— Sério?

— Sério — ele respondeu. — Não acho bonito ninguém morrer por amor.

— E você acredita no amor? — Indaguei.

— Não. Ele foi inventado para iludir e vender livros

— Verdade. Mas se algum romancista ou mesmo um fã ouvir a gente falar essas coisas seremos linchados. Acho que não podemos pôr isso no trabalho.

— Acho que com as palavras certas podemos expressar a opinião que quisermos — ele respondeu, simpático.

— Concordo. Então, qual o seu nome? — procurei saber para anotar na folha da dupla.

— Davi.

— Anna — disse estendendo a minha mão. Ele a apertou meio receoso e percebi o contraste entre nossos tons de pele. Enquanto a minha pele era escura e queimada de sol a dele parecia a de um vampiro nórdico, extremamente pálida. Como alguém conseguia ser assim num lugar tão ensolarado?

Deixei meus questionamentos bobos de lado e demos continuidade ao trabalho. Gostei da companhia de Davi, pois apesar das esquisitices ele pareceu ser um cara legal e inteligente, aceitando as minhas opiniões nada convencionais. Porém, estávamos numa parte longe das janelas e o ar-condicionado estava me matando. Alguns fracos raios de sol entravam, mas seriam o suficiente para que eu pudesse parar de tremer.

— Vamos sentar mais próximos à janela — eu pedi. — Preciso de sol.

— Não — ele negou nervoso. — Não gosto do sol.

— Por que, você por acaso brilha? — falei comparando-o com uma história de vampiro, mas Davi não sorriu. Ele simplesmente pegou suas coisas e saiu sem dizer uma única palavra.

O que raios aconteceu aqui?

Por sorte nosso trabalho já estava quase terminado, por isso logo entreguei para o professor. Confesso que fiquei me sentido um pouco mal por não entender o que tinha dito para deixá-lo naquele estado.

*

— O que você tem? — Andressa perguntou no dia seguinte, quando me viu totalmente aérea no pátio da escola. Sua presença era animadora, aquele tipo de pessoa que acorda cheia de vida e bem-humorada às sete da manhã de uma quarta-feira. Ela era a única garota ali que parecia não se importar com a marca dos meus tênis e por isso achei que seria interessante tê-la como amiga.

— Nada — menti. — Então, como foi lá com o bonitão? — perguntei fazendo uma dancinha mal-intencionada com as sobrancelhas.

— Ai... ele é um sonho, nem sei como te agradecer. Jamais imaginei que o André fosse um dia falar comigo — ela suspirou. — Pena que você não deu a mesma sorte e ficou com aquele menino estranho — sua expressão ficou séria.

— Por que ele é daquele jeito?

— Sei lá — ela respondeu. — Nunca o vi sem aqueles óculos e aquelas roupas todas, e muito menos falando com alguém. Achei um milagre ele ter aceitado fazer aquele trabalho com você — ela riu maliciosamente. — Talvez você seja especial.

— Deixa de besteira, Andressa — eu bati de leve no seu ombro. — Agora vamos entrar que já estamos atrasadas.

A aula foi puxada como era de praxe, pois uma escola como aquela não tinha uma boa reputação à toa. Procurei por Davi para que pudesse me desculpar por “sabe lá o que eu havia feito”, mas infelizmente não o encontrei. Maldito corredores enormes, me faziam ficar perdida e mesmo com duas semanas ali eu ainda errava o caminho da sala. Acho que minha cabeça era tão cheia de besteiras, poemas, músicas e inutilidades que não sobrava espaço para eu formar um mapa mental. A semana acabou e acabei desistindo da procura, talvez o garoto fosse mesmo só um maluco esquisito. Eu não devia mais me importar com isso.

Mas por que diabos eu estava me importando tanto então?

 

 


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