Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 5
Princesas, sapos e dementadores




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— Anna? — Conchito chamou a minha atenção mais uma vez. — O que faremos?

— Não sei — disse pegando o meu taco de beisebol que estava no banco traseiro. — Mas se alguma coisa der errado, quero que faça uma coisa: corra.

Corra, Conchito.

Pois agora nós vamos ficar bem ferrados.

— O quê? — ele me olhou incrédulo. — Você por um acaso pretende ir até lá e enfrentar aqueles caras com todo esse seu meio metro?

— E que escolha eu tenho?

— E você acha que vale a pena todo esse risco por ele? — Conchito questionou e fiquei sem resposta.

É claro que ele não valia, eu nem conhecia o garoto direito. Mas sabe-se lá o que aconteceria com ele se eu simplesmente desse meia volta e fosse embora. Tomando toda a coragem que podia comecei a rezar, saí do carro, e Conchito veio atrás de mim, fazendo a sua melhor cara de mau. Se alguém pudesse ver isso com certeza riria até cair do peculiar esquadrão de resgate. Parecíamos aquela dupla dos filmes de super-herói composta por um guaxinim falante e uma árvore gigante.

Ah, Davi, se nós sairmos vivos dessa você vai me pagar até o fim da sua vida, seu idiota! Eu estou com vontade de dar com esse taco na sua cara desde que você me deixou falando sozinha, no dia daquele trabalho, e por isso você não vai escapar de apanhar — eu pensei enquanto andava até o grupo. — Se alguém tem o direito de te matar esse alguém sou eu!

— Com licença — eu disse quando cheguei até eles.

Com licença? Oi? Que pessoa diz “com licença” para um grupo de bandidos? — minha consciência berrou. — Palmas, Anna. Você merece o prêmio burrice do ano. Você agora será enterrada em uma cova rasa e sem as digitais...

— O que faz aqui, princesa? — uma voz respondeu meu cumprimento idiota. Senti um calafrio.

Não acredito! — minha consciência se exasperou novamente. — Não, por favor. Eu prefiro enfrentar bandidos armados com metralhadoras automáticas, a Al Qaeda inteira e seus homens bombas, até o Hitler em pessoa com uma dúzia de mini ninjas atiradores de facas!

— Oi, Sapo — Conchito cumprimentou com a voz grossa, enquanto eu engolia o nojo que me deu só de olhar para aquele homem. Esse tal de Sapo era o chefe de uma gangue que costumava atuar na área e todos diziam que ele gostava de “garotas novas”, entre doze e dezesseis anos. Minha avó já tinha posto ele para correr depois que ele ofereceu a ela menores como dançarinas, mas infelizmente ele tinha alguns amigos do outro lado da lei. Na verdade, eu até hoje não sabia por que Sapo nunca tinha feito nada contra a minha avó depois de ter sido expulso da boate a vassouradas. Bom, se ele tinha amigos influentes com certeza sabia que minha avó também os tinha.

Ao ouvir minha voz Davi me reconheceu e ficou me fitando, boquiaberto, como se tivesse vendo um fantasma. Eu pude constatar que seu lábio estava bastante machucado, no entanto, apesar de tudo, ele não estava tão assustado quando eu imaginei que estivesse, mesmo que se mantivesse em posição defensiva, com as costas coladas ao muro. Os dois homens que antes estavam segurando-o também olharam para mim.

— Posso saber por que você está batendo no meu amigo? — eu disse firme, usando o taco como apoio para as minhas mãos no chão.

— Esse “pleyba é seu amigo, princesa? — Sapo debochou me olhando de cima a baixo, com os olhos cheios de desejo, e quase vomitei. Ser neta de dona Sarah me fazia conhecer muita gente, mas era uma pena que muitas dessas pessoas não valessem a pena.

— É. O convidei para ver um filme — menti.

— Mas ele “tá” bem longe da sua casa, princesa — Sapo repetiu o apelido idiota e eu me segurei.

— Ele pegou a condução errada e me ligou para vir buscá-lo. Posso saber o que houve?

— Eu não fui com a cara desse “playba” engomadinho — Sapo respondeu. — Seu amigo é bem marrento... Sabia que ele não foi nada gentil comigo? — debochou.

— Ele não deve ter feito por mal — disse e olhei com ódio para Davi. O desgraçado devolveu meu olhar com um sorriso torto.

Ah, hoje ele iria morrer.

— Não seja por isso. Davi, peça desculpas — sentenciei. Não pude ver os olhos de Davi, mas com certeza agora era ele quem me fuzilava. Sapo então ficou na sua frente e eu vi Davi cerrar os punhos.

Não estrague tudo! — pensei furiosa. Um longo tempo passou até ele responder.

— Me desculpe — Davi disse com ironia e nenhuma sinceridade. Ainda bem que Sapo não levou em consideração.

— Assim que eu gosto, bem educadinho. Você tem sorte da sua amiga ter aparecido aqui. — Sapo ameaçou e os outros dois caras riram. — Mas isso estragou a minha noite, não sei se devo te liberar. Eu gostaria de um pouco de diversão em troca — ele disse coçando o queixo e me olhando como se eu estivesse nua.

Argh!

Conchito deu um passo, ficando a minha frente, e eu tive certeza que se alguém tocasse em mim ele desceria do salto e faria estrago. Na verdade Conchito estava evitando tudo isso não por ser covarde, mas por ser prudente. Ele costumava fazer drama, mas quando o “bicho” realmente pegava ele não era do tipo que corria. Olhei para Davi e ele me pareceu furioso. Tomei uma atitude antes que os dois fizessem besteira.

— Sua noite não vai ser ruim, Sapo — eu disse e ele sorriu, provavelmente pensando besteira. — Vou mandar separar duas garrafas do uísque mais caro que tem na boate, por conta da casa. Peça para alguém ir buscar — decretei. — Minha avó vai gostar de saber que você foi legal com a gente.

O bandido então continuou pensando e enquanto isso eu mal conseguia respirar.

— Tudo bem — ele provavelmente chegou à conclusão de que não seria legal mexer com as crias da dona Sarah. — Vou deixar o “playba” ir embora. Mas se eu der de cara com ele outra vez, princesa, nem o Papa poderá salvá-lo.

— Não se preocupe, você não o verá nunca mais. Obrigada — eu coloquei um pouco de cortesia ao final, pois pessoas como ele são instáveis e Sapo poderia mudar de ideia a qualquer momento. Ele então fez um meneio de cabeça e os outros dois homens se juntaram a ele.

— Nos vemos por aí, princesa! — ele disse e eu me segurei para não dar com o taco na cara dele. Quando finalmente os três sumiram na esquina da rua eu pude respirar novamente.

— Nossa, que situação mais...

— Cala a boca! — eu gritei e Davi ficou mudo no mesmo instante. — Você tem noção de quão ferrada eu estou por causa do que aconteceu aqui?

— Olha, eu não pedi...

— Ajuda? — cortei furiosa. — Se nós não tivéssemos aparecido nem tente imaginar qual seria o seu destino. Provavelmente seu corpo seria achado no lixão mais próximo, queimado e sem a arcada dentária! Mas não sem antes eles terem se divertido com o seu traseiro!

— Anna, não assuste o garoto! — Conchito disse, ríspido, e eu respirei pausadamente. — Vamos logo para casa. Ou vocês pretendem continuar com essa “DR” aqui na rua?

— Eu não vou...

— Por mim tudo bem — eu interrompi Davi e ele franziu as sobrancelhas. — Mas se você quiser ficar aqui e ser violado eu não vou dizer mais nada. Garanto que o pessoal da rua de baixo vai adorar uma carne nova.

Não eram verdade as ameaças, mas achei engraçado ver que finalmente ele havia ficado com medo.

— É melhor você não contrariá-la — Conchito advertiu. — Vai por mim, você vai preferir voltar a enfrentar aqueles caras a vê-la furiosa. Garanto que ela ainda está bem calma...

Davi então fez um muxoxo, mas eu nem tive paciência para ver qual seria a sua decisão. Entrei no carro e esperei ele se virar com Conchito. Quando os dois já estavam a bordo do latão saímos em disparada, o velho motor esganiçando por onde passávamos.

— Quero saber como você vai pagar por aquelas bebidas — Conchito perguntou, preocupado. — Você tem noção do quanto elas custam?

— E quem disse que eu vou pagar por elas? Ele é quem vai — falei olhando para o garoto pelo retrovisor.

— Sua avó vai infartar quando souber que você falou com aquele homem. Eu que não queria estar na sua pele.

— Não se preocupe, Conchito. Tem gente aqui que está mais encrencado do que eu — eu disse e escutei Davi rir. O maldito estava se divertindo a minha custa, mesmo depois de tudo o que havíamos passado. Será que ele não tinha medo de morrer?

O resto do caminho até a minha casa foi todo feito em silêncio e enquanto isso eu imaginava qual seria a reação da minha avó, pois apesar de bem louca ela era bem protetora. Resolvi que o melhor seria avisá-la logo e por isso assim que Conchito estacionou instruí meu amigo a ir até a boate.

— Avise logo a minha vó, antes que os caras apareçam lá e ela acabe fazendo um escândalo. Conte tudo o que aconteceu a ela, mas, por favor, não aumente nem invente nada! Acho que já tenho problemas demais para resolver.

— Eu nunca aumento nem invento — Conchito se defendeu e seguiu em frente, nos deixando sozinhos na calçada. Já passava da meia-noite e parecia que a festa da rua estava apenas começando.

— Entra — eu convidei, não tão educada, e ele obedeceu. Davi ficou um tempo observando a decoração sem dizer nada, como se tivesse admirado. — Por aqui — eu o conduzi escada acima até o corredor e paramos em frente ao meu quarto. — No final do corredor tem um banheiro, você pode usar se quiser. Depois, venha para cá — apontei para a minha porta. — Vou procurar uma caixa de curativos na cozinha. Quer alguma coisa?

— Não, obrigado — ele respondeu baixinho.

Desci as escadas e procurei pelo kit de primeiros socorros, que estava guardado em um armário baixo, e enquanto voltava ao meu quarto pensei no quanto o meu final de semana estava sendo “maravilhoso”. Suspirei fundo e fui em busca das respostas que eu precisava ter. Quando cheguei ao meu quarto, Davi estava observando a rua pela janela, e ao constatar que ele estava só de camiseta achei estranho, pois nunca o tinha visto sem roupas de manga e com capuz. Seus óculos e seu casaco estavam largados em cima da minha cama.

— Davi? — eu chamei sua atenção e ele me olhou. Fique surpresa com o que vi.

Devido a ele andar sempre coberto eu nunca tinha visto seus olhos ou o seu rosto por completo, então imaginei que ele fosse completamente diferente do garoto parado na minha frente. Seus cabelos eram pretos, uma pouco grandes demais, quase na altura da boca, e o era nariz reto, mas um pouco arredondado. Seus olhos eram da mesma cor dos cabelos, e eram levemente puxados, indicando ascendência oriental.

Davi era simplesmente... lindo.

Nossa....

— Senta aí — indiquei a minha cama, agradecida internamente por não ter suspirado, e ele obedeceu taciturno, como se tivesse envergonhado por estar exposto dessa forma. Mas eu não entendi por que ele fazia isso sendo que não havia necessidade nenhuma. Passada a surpresa, me sentei frente a ele e pegando um algodão com álcool passei levemente no lábio machucado dele.

— Ai! — ele reclamou.

— Deixa de ser frouxo — eu recuperei um pouco do meu mau-humor e passei o algodão com mais força ainda.

— Qual o seu problema, garota?

— O meu problema? — perguntei irônica. — O meu problema é você. Por que você se meteu com aqueles caras? — eu questionei — Sua mãe não te ensinou a não falar com estranhos?

— Eu não fiz nada, apenas passei por lá e eles me viram. Quando me chamaram eu ignorei e segui em frente, contudo isso pareceu irritá-los. Por isso acabaram me agredindo.

— Tudo bem, acho que não vou brigar com você por causa disso, pois a culpa não foi sua. Mas você não pensou em nenhum momento em tomar cuidado? Eu ouvi muito bem quando Sapo disse que você não foi "educado" e por isso ele não tinha ido com a sua cara. Cara, não sei de onde você vem, mas aqui as coisas não funcionam dessa maneira. Aliás, posso saber o que faz aqui?

Ele então se retraiu novamente, voltando a ficar envergonhado. Após um sorriso ele respondeu.

— Condução errada.

— Essa foi a desculpa que eu inventei — eu disse.

— Sim, mas foi o que aconteceu. Eu estava tentando chegar em outro lugar...

— Que lugar?

— Ponte verde. Acho que acabei confundido os nomes e vim parar aqui.

— O que você queria fazer lá? — quis saber. — É só uma ponte velha.

— Você é sempre assim intrometida?

— Só com pessoas idiotas. Olha, já não basta você ter sido super mal educado naquele dia na escola, ainda teve mais essa de hoje! E você nem para ser um pouco mais gentil comigo. Qual é, você se acha melhor do que eu?

— Não, eu não acho. Mas isso não te dá o direito de fazer piada a custa dos outros!

Piada? O quê?

— Do que você está falando?

— Como se você não soubesse. Naquele dia você quis me levar para perto do sol e ainda ficou falando um monte de asneiras. Como você acha que eu me senti?

— Olha, não sei que espécie de maluco estranho é você, mas definitivamente eu não faço ideia do que você quer dizer! — praticamente gritei.

O garoto então diminuiu a expressão ressentida ao ouvir minha defesa efusiva e ficou me analisando por alguns segundos.

— Você não sabe? — ele parecia aliviado.

— Não sei o quê? Mas bem que eu gostaria muito de saber o que eu não sei, mas que você acha que eu sei.

— Me desculpe — ele se redimiu e fiquei confusa. — Achei que você estivesse zombando de mim.

— Garanto que na atual situação eu adoraria ter com o que zombar de você, pois estou com muita raiva. Dá para e explicar o que está havendo? — perguntei e ele ficou um tempo calado, como se procurasse as palavras certas para dizer.

— Eu tenho fotossensibilidade — ele explicou, sua voz agora suave. — Por isso fiquei com raiva naquele dia. Achei que você soubesse ciente disso e tivesse tirando uma com a minha cara.

— Ah...

Então isso explicava tudo, principalmente o fato dele andar por aí feito um dementador, todo coberto. Davi agia dessa forma para se proteger do sol e das luzes excessivas, pois pessoas com esse problema são sensíveis a esses fatores. E eu havia dito algo que aos ouvidos dele pareceu uma ofensa proposital. Fiquei uns instantes digerindo meu erro.

— Agora eu que peço desculpas — falei envergonhada. — Juro que não fazia ideia, achei que você era um esquisitão, só isso. Não, espera, eu não quis dizer isso. O que eu quero dizer é que...

— Tudo bem, Anna — ele pareceu compreender meu embaraço. — Acho que nós dois fomos burros nesse caso.

Nós então rimos juntos pela primeira vez e até me esqueci de todos os problemas. Continuei a cuidar do rosto dele, alguns arranhões leves nas maçãs, quando ele respondeu a pergunta que eu havia feito anteriormente.

— Eu ouvi falar que do alto daquela ponte dá para ter uma visão incrível da cidade, principalmente nas noites de lua cheia.

— E você queria ir lá apenas para ver isso?

— Sim.

— Por quê?

— Estava buscando inspiração para os meus desenhos. Idiota, não é?

— Não. Criativo, na verdade. Vi os seus desenhos uma vez e você é realmente muito talentoso, porém você sabe disso porque eu já te disse — eu então recordei de quando os tinha visto, na vez em que havíamos esbarrado no corredor da escola: paisagens coloridas, rostos de super-heróis e figuras abstratas.

— Na verdade eu nunca esqueci o que você disse, Anna. Eu nunca mostro esses desenhos para ninguém, então foi a primeira vez que ouvi um elogio.

Fiquei feliz em saber que ao menos alguma coisa boa eu tinha feito e isso aliviou a minha culpa por ter sido tão insensível. Percebi que Davi era muito retraído, até mesmo quando não precisava, pois ficou claro para mim que ele não precisava se proteger da luz à noite e andava do mesmo modo apenas porque estava acostumado a se esconder. Mas ele era uma boa pessoa e eu senti que gostaria muito que ele fosse meu amigo.

— Olha, não leve a mal, mas já está muito tarde e tenho certeza que a minha avó deve estar vindo para cá só para ter certeza de que eu estou bem. Eu não confio muito no Conchito no quesito fofoca, então ele deve ter aumentado a história de maneira absurda. Acho melhor você não estar aqui quando chegar a hora de enfrentar a fúria da dona Sarah — eu disse, mas não estava mais preocupada. Davi riu.

— Sei disso — ele confirmou. — Também tenho minhas próprias fúrias para enfrentar. Então... obrigado. Por tudo. Agradeça ao seu amigo também.

Nós descemos silenciosos e eu o acompanhei até a rua, indicando um ponto de táxi que ficava na esquina. Davi me deu um tchau e acenou, no entanto, quando já estava um pouco longe eu lembrei de uma coisa.

— Davi — chamei e ele me olhou. — Não se esqueça da minha grana! — gritei mostrado o valor com os dedos e ele gargalhou alto.

— Pode deixar! — ele gritou em resposta e eu fiquei lá até ele sumir de vista.

— Que figura — pensei. Mas antes que eu tivesse tempo de pensar em qualquer outra coisa um carro velho esganiçou na porta de casa e de dentro dele saiu uma avó furiosa.

— Anna, espero que você tenha uma boa explicação para o que houve! — ela gritou, com as mãos na cintura. Dei um sorriso amarelo em resposta.

— Que os jogos comecem e a sorte esteja ao meu favor!

 

 


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