Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 29
Super-heróis não sabem voar




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Foi com cinco anos de idade que eu comecei a perceber que a minha família era diferente, mas não diferente de um jeito bom. Eu costumava ver novelas com Maria quase todos os dias assim que chegava da escola e não conseguia entender por que os meus pais não se pareciam em nada com os casais apaixonados que estampavam cada cena feliz, os olhos inundados de amor um para o outro e para suas crias.

No início eu achava que a culpa era minha por eu não ser forte como as outras crianças, e também porque devido o meu nascimento complicado minha mãe não pudera mais ter filhos. Contudo, depois de um tempo, percebi que o problema comigo era apenas pelo fato de eu não parecer em nada com ela, não perseguir as mesmas ambições desmedidas e, para piorar, não poder ser o seu filho lindo e perfeito capaz de enchê-la de orgulho com conquistas idiotas. Para os de fora a família parecia a mais perfeita (Sandra ligava muito para as aparências), mas só Deus sabia a vida angustiante que eu tinha que aturar ali. Então, com minha mãe toda hora se lamentando e meu pai se esquivando, eu comecei a desaparecer dentro de mim aos poucos e a apenas fazer figuração nos fundos, tal qual uma estranha e desajustada palmeira de plástico. Por fim, nos acomodamos e aceitamos, seguimos o fluxo que era ditado por Sandra e sem percebermos um dia simplesmente paramos de nos importar. E assim eu cresci sem saber direito como era a sensação de felicidade genuína, de amor e de pertencimento a alguém, alguma coisa ou algum lugar.

No entanto eu descobri tudo isso e muito, muito mais, no exato dia em que Anna me olhou nos olhos pela primeira vez. E, sendo o furacão que ela é, eu sempre soube que Anna não se limitaria a mudar somente um único aspecto da minha vida.

Tal qual os furacões, ela varreria e desordenaria tudo.

— Pois é, cara, não fica assim — ela começou a se explicar assim que paramos do lado de fora da minha casa, todo o seu apoio vindo em forma de uma mão desajeitada no meu ombro. Eu sabia que apesar da coragem ela também tinha um modo de defesa, que ela ativava retirando toda a sentimentalidade das coisas. — Davi... então, eu juro que a minha intenção não era essa, sabe? Bom, eu sabia que iria rolar alguma coisa do tipo, mas nunca imaginei que seria algo nesse nível tão baixo. Droga, eu devia ter mantido a boca fechada em relação àquele seu tio, sério mesmo... — ela respirava cada vez mais fundo à medida que as palavras saíam de sua boca. — Sinto muito se eu arruinei o seu aniversário, só agora que o efeito passou é que eu percebi que isso vai ter consequências bem ruins. Por isso, eu queria dizer que...

Coloquei minhas mãos em torno do seu rosto e a puxei para mim, a beijando de um modo que eu jamais imaginara que pudesse beijar alguém um dia, todas as sensações existentes no universo sendo sentidas ao mesmo tempo como uma coisa incapaz de ser explicada mesmo que através das mais elaboradas metáforas. A tristeza e a monotonia da minha vida haviam sido arrancadas à força pela presença dela, tal como era respirar após uma longa volta no fundo do mar. Era como beber água após um longo período no deserto, como se jogar de um avião sem paraquedas, e claro, tão perigoso quanto amar.

E eu descobrira recentemente o quando gostava de coisas perigosas.

Ela me agarrou de volta, pela gola do terno e, para minha surpresa, entrelaçou uma perna na minha, o que me fez segurar sua coxa por debaixo do vestido para manter o equilíbrio. Foi o beijo mais quente e intenso que já tínhamos experimentado, sua boca exigindo de mim calor e algo mais, algo como desejo. Eu podia sentir isso me dominando, me descobrindo, tomando forma e se fazendo presente no meu corpo em lugares bem fáceis de imaginar. E eu não importaria com mais nada que acontecesse na minha vida depois desse beijo, pois um momento como esse valia a pena qualquer coisa.

— Nossa — ela sussurrou para mim nada recatada, depois de ter mordido o meu lábio inferior do jeito que ela sempre fazia quando as coisas subiam uns graus. — Acho que eu gostei disso — Anna disse então depois de se soltar de mim, olhar para baixo e perceber que eu estava ficando “animado”. Me odiei por não conseguir manter a firmeza como ela sempre fazia e deixar que minha cara logo esquentasse, mas o jeito que ela sorriu me mostrou que ela só era melhor em disfarçar.

Acho que ela estava sentindo coisas também.

— Eu tenho que entrar e resolver isso — pigarreei disfarçando, metade do corpo com vergonha e metade com calor. — Eu...

— Ah, sim — Anna pareceu voltar para realidade e a preocupação rapidamente voltou ao seu rosto. Se afastando de mim e arrumando os cabelos logo em seguida, ela se recompôs como se nada tivesse acontecido. — Acho que devo te dizer boa noite então.

— Obrigado.

— Pelo quê? — acariciei de leve o seu rosto e ela franziu as sobrancelhas, tentando entender o motivo do meu agradecimento. — Davi, foi só eu chegar aqui que você brigou com a sua mãe, ela expulsou os convidados e até o seu pai gritou. E, não sei se você percebeu, mas até tem comida na sua cabeça — ela puxou meu cabelo e sorriu ao retirar alguns grãos que me atingiram no momento do ataque de Sandra.

— Você tem razão, foi um desastre mesmo. Mas também foi o melhor aniversário que já tive — olhei para a porta e me senti leve ao saber que finalmente todos sentaríamos e conversaríamos. — Obrigado por isso. Por destruir a minha bolha de vidro.

— Se você pensa assim, é mais doido do que eu.

— Como você faz isso?

— Isso o quê?

— Ser autêntica sempre, não ter vergonha de nada. Qualquer outra garota no seu lugar...Você sabe. Diante das circunstâncias faria de tudo para esconder de onde veio. No entanto, você parece que fez questão de que ela soubesse exatamente detalhe por detalhe. Isso é muito corajoso.

— Não, Davi, não é coragem. É o certo. Me diz, o que há de errado com a minha família para que eu tenha de escondê-los embaixo de um tapete? Eu não estou querendo bancar a super-heroína, só estou tentando viver a minha vida em paz e de preferência sem nenhuma mentira. Você sabe o preço que elas cobram, sua família se prendeu tanto a isso que é possível ver o resultado. Desculpe, mas eu não quero uma vida assim para mim.

— Eu devia ter sido mais forte há mais tempo, não é?

— Claro que não — Anna me beijou no rosto. — Tudo acontece no tempo certo. Ah, e não esqueça: se você sobreviver, me liga, tá?

E do mesmo modo que os ventos vêm, bagunçam tudo e depois vão embora sem sequer dar satisfação, Anna entrou, destruiu “a minha bolha de vidro” e agora ia embora assim, sem dizer mais nada, apenas me deixando sozinho em meio a toda essa estranha calmaria. Isso ainda não tinha acabado e ainda viriam ventos muitos piores, mas pelo menos agora, pela primeira vez na vida, eu estava completamente em paz.

Não pude deixar de sorrir ao passar pela porta feia que Anna avaliara no início da nossa noite nada mágica. O caminho de volta até à mesa não me pareceu longo e eu sabia que isso era só um reflexo da minha ansiedade pelo que viria. Era tudo ou nada, finalmente eu iria ter coragem de fazer todas as perguntas que eu sempre quis e esperava, sinceramente, por respostas verdadeiras.

Fui surpreendido por ver que meus pais ainda estavam na mesa, ele com a camisa aberta, os dois bebendo vinho. Havia uma garrafa em cima da mesa que não estava antes e quando notaram minha presença meu pai apenas puxou uma cadeira ao seu lado para que eu sentasse.

— Eu sempre soube o que o Alberto fazia, claro. Eu já tinha falado para aquele idiota não se expor, pois um dia isso ia acabar gerando consequências para nós. Mas pelo visto ele não estava me obedecendo.

— Eu não sabia, mas sempre desconfiei — meu pai admitiu. — Ainda bem que a sua garota fez o favor de mostrar quem ele realmente é.

— Nem me fale dela, Luis. Davi, porque...

— Por que vocês dois se casaram? — cortei a fala de Sandra antes que Anna se tornasse o assunto e perguntei de supetão o que queria saber há muito tempo, algo que realmente não havia uma resposta que eu sequer pudesse imaginar. — Não, talvez a pergunta nem seja essa — reiterei. — Por que diabos vocês dois ficaram juntos durante todo esse tempo se nunca se amaram?

Era uma pergunta dolorosa para mim, pois lá dentro ainda morava aquele menininho que um dia sonhou em ver os pais apaixonados. Ambos então se olharam e balançaram a cabeça, como que se envergonhando por terem sido pegos nessa grande mentira pela primeira vez.

— Filho... — Luis começou. — Mas quem disse que eu não amo a sua mãe?

Aquilo me pegou de surpresa tanto quanto pegou a minha mãe. Ela parou a garrafa de vinho quase vazia no ar e piscou umas cem vezes antes de voltar a respirar.

— Foi por isso que você nunca me deu a separação?

— Você já pediu a separação? — eu me admirei, porque imaginei que ela jamais abandonaria a vida de luxo que meu pai dava a ela. — Quando?

— Faz bastante tempo já — meu pai respondeu, triste.

— Isso não faz sentido, Luis. Eu sei que você não concordou em assinar os papéis somente por conta da divisão de bens...

— Você é a única que sempre se importou com isso, Sandra. Você me culpou pelo fim de nosso casamento quando na verdade não percebe que ele se destruiu por culpa sua. Por culpa do ser que você se tornou.

Havia angústia no olhar de minha mãe. E confusão, tristeza e um monte de outras coisas. Contudo, foi a raiva que venceu e ela logo esbravejou.

— Culpa minha? Como você tem coragem de dizer uma coisa dessas? Eu sempre fiz de tudo por essa família!

— Não, você sempre fez de tudo por você — ele respondeu. — Tudo bem, eu sou um idiota. Um idiota porque de algum modo achei que um dia você iria voltar a ser como era antes, como era quando eu te conheci. Um idiota por não ter tido forças para ajudar você, Davi, e impedir todas as coisas ruins que já te aconteceram. Um idiota por acreditar. Simplesmente acreditar. Desculpe.

No meio de todas aquelas acusações eu não conseguia realmente saber o que pensar, pois tentei ver as coisas pelos dois lados da moeda. Ela estava errada por agir do jeito que agia e ele estava mais errado ainda por achar que ela mudaria somente por estar presa a ele. A única conclusão a que cheguei no final de tudo foi a de que, apesar de tudo o que aconteceu entre eles, os dois jamais poderiam ter me deixado de lado como um efeito colateral indesejado de sua infelicidade.

Eu era a única pessoa ali que não tinha culpa das escolhas desastrosas que os dois fizeram.

— Isso não é justo — acusou ela. — Você inventar uma mentira dessas para que no final da história eu seja vista como a vilã. Você também errou muito, Luis. Muito.

Sandra então nos olhou com frieza, e aquilo doeu. Contudo, lembrei de Anna e das várias vezes em que ela falou sobre a gente não precisar de ninguém para ser feliz, de a gente precisar apenas de nós mesmos e o que viesse seria apenas complemento. Ela me dissera um dia sobre perdoar minha família e seguir em frente, pois o perdão faz mais bem para a pessoa que perdoa do que para a pessoa que é perdoada.  Então, decidido a não ser alguém amargurado pelo resto da vida por conta dos erros dos outros eu tomei uma grande decisão.

A decisão de me livrar dos fardos alheios e me amar por conta própria.

— Mãe... — falei com tanta segurança que ela apenas me ouviu, minhas lágrimas espelhando as dela. — Você nunca foi isso de verdade para mim, sabia? Pois eu não tenho sequer uma lembrança de algum momento em que nós dois fomos felizes, em que você me deu o colo e o amparo que eu precisava. Sim, uma grande parcela da culpa que nos tornou essa mentira que vivemos hoje é sua, que jamais se importou com ninguém além de si mesma. — E, pai — me virei para encará-lo —, prendê-la nesse casamento não fez bem para ninguém. Posso ser jovem, mas não acredito que isso a faria te amar. Você também não foi presente, nunca esteve lá quando eu precisava, mas eu sei que você tentou. O que eu quero dizer é que apesar de tudo, vocês são meus pais. Cheios de erros e falhas, mas ainda sim meus pais. Por isso eu não vou julgá-los. Talvez, dentro de cada um, os dois achassem que estavam fazendo o melhor de si, mas não estavam. Porém, isso não me importa mais. Não tenho experiência, mas já achei o meu caminho, já sei o que eu quero daqui para frente. Eu não sei o que vocês vão fazer depois dessa noite, mas quanto a mim eu sei exatamente como vou viver e gostaria sinceramente que se vocês dois não podem ser os pais que eu sempre sonhei, pelo menos façam aquilo que estiverem ao alcance de vocês. Eu já senti muita raiva dos dois, não vou mentir. Agora, eu sinto muita, muita pena. Espero que um dia isso se transforme novamente em amor.

Não fiquei ali para ver como aquela conversa terminaria, agora era hora dos dois se acertarem e decidirem o que fazer com suas vidas. Dentro de mim as coisas estavam irrequietas, havia uma grande tristeza misturada com raiva e ao mesmo tempo alívio. Sempre achei que quando esse dia de confronto chegasse eu esbravejaria, gritaria todo o meu descontentamento e sairia chutando cada móvel para demonstrar o quanto aquilo doía. Entretanto, apesar de saber que tudo ter acontecido da maneira que eu não esperava ter sido o melhor para mim, não pude evitar fechar a porta do quarto com toda a força e desabar na cama, imaginando o que viria pela frente. Fiquei ali algum tempo, uns cinco minutos, até que me assustei com um barulho esquisito vindo de fora.

— Ah, meu Deus, o que você está fazendo ai? — me assustei ao chegar à sacada e constatar que minha namorada doida estava pulando a minha janela. — São dois andares? Como você chegou aqui?

— Pelo visto você foi uma criança bem fresca mesma. Quer dizer que você nunca pulou a própria janela? — Anna riu, os cabelos bagunçados pelo esforço. Então, ao ver minhas lágrimas, ela me abraçou. — Eu ia embora, mas você poderia se encrencar e eu não achei justo te deixar sozinho com toda essa merda. Então voltei e fiquei esperando no jardim.

— Como você sabia que esse era o quarto certo? — funguei entre os seus cabelos, a simples presença dela me deixando melhor.

— Eu não sabia. Pulei duas janelas erradas antes de te achar. Se eu fosse uma super-heroína seria justamente aquela que não voa.

Não pude evitar rir alto. A olhei nos olhos e ali vi uma pessoa que tinha passado por muitas coisas ruins, até pior do que eu havia passado, e ainda sim sorria, amava, protegia e se preocupava. Com ela eu não precisava fingir, por isso parei de segurar o bolo que estava me engasgando durante toda a minha vida e chorei feito um bebê, chorei tudo o que precisava chorar sem me preocupar em ser julgado como fraco. Anna me pegou pela mão e deitamos em minha cama sem dizermos nada, ela encostada no meu peito em silêncio, me ajudando somente por estar ali. Quando viu que eu começara a me acalmar, senti suas mãos em meus cabelos e me surpreendi por ouvi-la cantar bem baixinho uma de suas músicas favoritas, que falava sobre ser forte e não desistir. Meu corpo começou a relaxar, sentindo agora o cansaço emocional do que havia acontecido, e antes dela terminar sua canção eu adormeci.

Quando acordei, ela não estava mais ali.

Mas eu sabia que isso não significava que eu estava sozinho.


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