Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 28
A Margarethy bem que avisou!




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/580013/chapter/28

A vida é uma caixinha de surpresas.

Não, é sério. Isso é muito mais do que apenas um ditado popular. Mais do que apenas uma frase batida e repetitiva.

A minha vida era realmente uma caixinha de surpresas.

E é por isso que eu adoro o fato de que tudo que acontece com a gente é simples e deliciosamente imprevisível.

*

Quando Davi me conduziu casa adentro, com o sorriso escondido dentro de muita preocupação, eu soube que estávamos seguindo por um caminho que nunca mais teria volta. Para esse memorável evento eu me vestira de maneira estranha, para ver gente estranha e (tentar) comer comida mais estranha ainda. E não vou mentir e dizer que não passei muito tempo imaginando mil maneiras desastrosas de tudo se desenrolar – porque eu passei— mas, bem, como eu havia dito, a vida é uma caixinha de surpresas.

E aquela noite em especial era um caminhão cheinho delas.

A primeira surpresa que tive foi ao constatar que a decoração da casa de Davi era ridiculamente cafona, artificial e extravagante. Coisas enormes demais, cores fortes, quadros estranhos. Nenhum porta-retratos. Nada ali combinava com ele e não me pareceu um lugar alegre, acolhedor, aquele tipo de ambiente aconchegante que você procura no final do dia para descansar. Em outras palavras, não parecia em nada com um lar.

E isso me deixou triste.

A segunda surpresa que tive foi ao encontrar os pais de Davi e ver que eles não eram nada iguais ao que eu havia imaginado. O pai, Luis, era calmo, aparentava ter uns quarenta e cinco anos e era um homem quieto, apagado. A única coisa bonita nele eram os olhos, escuros como os de Davi, mas creio que só os achei bonitos por que era a justamente a parte de Davi da qual eu mais gostava. O homem não tinha presença firme, não tinha alegria na voz, e temi que um dia Davi pudesse seguir pelo mesmo caminho e se fechasse desse modo tão profundo dentro de si. Aquilo ali não era uma família de verdade, qualquer um podia ver e sentir.

E pensar nisso me deixou bastante triste.

Já a mãe... bom, Sandra era o que se pode chamar de beldade em pessoa. Ostentava um bronzeado artificial, cabelos longos e muito bem pintados de louro. Joias brilhantes por todo o corpo, roupas impecáveis. As unhas pareciam terem sido pintadas por Leonardo da Vinci tamanha a perfeição. Davi disseram que tinha quarenta e dois anos, mas a mulher aparentava ter muito, muito menos. Chutei que havia silicone e uma boa dose de botox ali, mas, enfim, ela era linda. E também completamente vazia.

E isso me deixou com pena dela.

Porém, a maior surpresa que tive nessa noite memorável não foi o fato de a casa de Davi ser horrorosa por dentro nem o fato de a mãe dele ter me olhado como se eu fosse um alien e chamado Davi para conversar na minha frente, sem discrição nenhuma. Não foi o fato também de ela ter tentado me envergonhar o jantar inteiro, me discriminar, e nem de todos os ali presentes terem me ignorado.

Não.

A surpresa que tive era algo que eu jamais sequer poderia imaginar.

Recapitulando os acontecimentos, a noite que havia começado de forma horrenda e incômoda estava prestes a tomar um rumo inimaginável, já que, repetindo, a vida é uma caixinha de surpresas. Quando olhei para Alberto, tio de Davi, e vi aquelas sobrancelhas bem feitas demais para o meu gosto eu senti um tilte no cérebro, uma cutucada daquelas que mandam você ficar de olho e prestar muita atenção na pessoa. Procurei, procurei, mas não achei nada, então resolvi deixar para lá e me preocupar apenas em responder as alfinetadas de Sandra à altura da ocasião.

Ela tentou nos fazer comer bichos nojentos, mas não me abalei. Ela tentou me humilhar, mas pouco me importei, já que eu estava mais do que acostumada a lidar com gente fresca daquele tipo. Eu adorei quando ela se engasgou com o vinho e eu ri todas as vezes que a cara dela ficou vermelha ao ouvir minhas respostas nada convencionais, principalmente na hora em que chamei o pobre pai do Davi de banana (peguei pesado, confesso, mas ele bem que mereceu!). Foi bom também ver Davi reagindo um pouco, mesmo que eu não tenha deixado ele se levantar quando Sandra me encarou, já que aquela parte da briga era minha; mas depois ele disse algumas coisas que com certeza estavam engasgadas há muito tempo e isso foi demais.

Porém, no meio de um discurso moralista de Sandra afirmando que a família deles nunca havia sofrido um escândalo sequer, e depois de dizer em alto e bom som que Davi “mancharia” o nome da família apenas por namorar comigo, a grande bomba foi lançada.

E finalmente eu me lembrei onde tinha visto aquelas sobrancelhas.

— Que absurdo! Isso é realmente I.NAD.MIS.SÍ.VEL! — o tio de Davi berrou e então tudo começou a ficar claro como água. Não percebi mais nada do que aconteceu ao meu redor, apenas flashes do acontecimento invadindo a minha mente e me deixando perplexa. Não tinha como ser ele, mas o combo “sobrancelhas + inadmissível” não deixavam dúvidas.

Ai, meu Deus!

O que foi que o senhor disse? — eu tinha que dar uma última conferida. — O que foi mesmo que o senhor disse?

— Eu disse que esse seu comportamento é I.NAD.MIS.SÍ.VEL — ele repetiu. — I.NAD.MIS.SÍ.VEL!

E então, nem que eu quisesse me segurar eu não poderia.

E eu me acabei de rir quando me lembrei exatamente como tinha sido a sua passagem pela boate e como tudo acontecera. Geralmente eu me esquecia das confusões que haviam por lá, mas o que aquele cara aprontara tinha sido grandioso ao ponto de sua entrada não ser sequer mais permitida. E eu quase morri rindo quando lembrei que ele tinha dançado coladinho com a Shakira Furacão, subindo na mesa com ela depois somente para pedi-la em casamento. Engasguei-me ao lembrar dos copos e pratos que ele quebrou porque queria uma festa no estilo grego e de como ele tentou ficar completamente nu após a quarta garrafa de catuaba. Lembrei das coisas absurdas que ele falou e da hora em que ele tentou bater no DJ por trocar a música, e eu ri mais ainda ao relembrar visualizá-lo de calças na mão, tentando fugir sem pagar a conta e gritando que o que estavam fazendo com ele era I.NAD.MIS.SÍ.VEL.

I.NAD.MIS.SÍ.VEL!!!!!

— Anna, você está bem? — Davi perguntou, mas eu não estava em condições de responder. Continuei rindo, respirando fundo e rapidamente feito um cachorro até conseguir finalmente conseguir proferir uma palavra sem me engasgar.

— Se eu estou bem? — recuperei o fôlego. — Se eu estou bem? — Davi me olhava assustado e isso fez eu me conter um pouco.  — Eu disse, caramba, eu disse que conhecia essas sobrancelhas de algum lugar — apontei para o homem. — Eu já ouvi esse “I.NAD.MIS.SÍ.VEL” uma vez e não teria como esquecer isso nunca!

— Do que você está falando? — o tio de Davi fez cara de inocente e isso só me deixou ainda mais entalada com o ar. — O que você quer dizer com isso? O demônio deve estar se apoderando do seu corpo para que você esteja se comportando dessa maneira!

— Demônios se apoderando de corpos deve ser um assunto que você entende bem, não é? — a imagem do seu traseiro rebolando ao som de Anitta era inesquecível.

— Ora, sua...

— Ano passado, feriado do dia do trabalho. O carinha que queria realizar um sonho... — comecei a lembrá-lo de suas proezas — e depois não queria pagar a conta. A calça emprestada porque o tal carinha perdeu a dele...

O homem ficou tão pálido quanto os queijos fedorentos que havia sobre a mesa, suas mãos enxugando a testa furiosamente. O silêncio era tanto que se uma mosca passasse a gente conseguiria ouvir o zumbido dela.

Zummmm....

— Será que alguém pode me dizer o que está acontecendo aqui! — a mãe de Davi foi primeira a ter coragem de falar. — Alberto, o que ela quer dizer com isso?

— O que eu quero dizer com isso é que as pessoas julgam os outros muitas vezes para esconder aquilo que na verdade gostariam de fazer, não é, seu Alberto?

— E isso quer dizer quê? — Davi me perguntou, o rosto dele tão confuso que era difícil de ler. Eu sorri.

— Que você não é o primeiro a "manchar" o nome da família, já que eu estou recebendo lição de moral de alguém que passou a noite inteira na boate grudado na Shakira Furacão!

 — O quuuuuuuuuê!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! — Davi berrou, mas ficou estático logo em seguida quando eu interrompi a troca de olhares para narrar a todos os fatos que eu tinha acabado de recapitular mentalmente.

Então as bocas todas se abriram, os olhos se arregalaram e...

— Todos para fora. Agora — a mãe de Davi falou baixinho e com a voz esganiçada, uma mão massageando o coração e a outra alisando nervosamente os próprios cabelos, deixando os poucos parentes de Davi presentes (só os maternos, já que Sandra não se dava bem com os parentes do marido) e os parcos convidados ainda mais perplexos com todo o desenrolar da trama. — Vocês não me ouviram? Para fora! — aumentou o tom de voz, porém poucos pareciam dispostos a ir embora e perder o resto do espetáculo. As falsas amigas dela logo começaram a cochichar, provavelmente loucas para sair dali e espalhar a fofoca, e nem mesmo se davam ao trabalho de serem discretas.

Louca!”

“Eu sabia que essa aí não tinha classe...”

“Pois, é!”

“E a Margarethy bem que avisou para não deixarmos ela entrar no clube...”

“Verdade! Eu bem que disse, não disse?”

“Mas que família, hein. Que família!”

Eita!

Sandra virou a cabeça demonicamente e lhes lançou um olhar furioso, mas as mulheres pareciam estar amando assistir ao barraco e por isso pouco se importaram. Luis arregalou os olhos, olhou para mim, olhou para o filho e balançou a cabeça em desaprovação, mas eu fiquei aliviada ao perceber que ele se referia à mulher e não a mim. Sandra estava ficando descontrolada à medida que os comentários variavam e eu percebi que a junção de tudo aquilo parecia estar lhe subindo garganta acima igual lava se preparando para sair de um vulcão, a erupção prestes a acontecer. Seu rosto ficou vermelho, suas mãos cerradas, sua respiração entrecortada e então...

— EU DISSE TODOS PARA FORA AGOOOOOOORAAAAAAA! — a mulher colapsou geral e atingiu o ápice da loucura ao atirar os escargots naqueles que não queriam se retirar rapidamente, moluscos exóticos voando para lá e para cá, peruas gritando, comida voando e, claro, muita gente rindo. — AGOORA! — ela arremessou tudo o que encontrou sem ver em que ou quem acertava e Davi ficou todo sujo ao me proteger de uma bela chuva de salada. — AGOOOOORA! — um vaso com belas flores fez uma curva impossível e, enquanto eu morria de arrependimento por ter dito tudo o que disse, Davi e o pai não conseguiam esconder que queriam rir.

Fiquei bastante surpresa.

Tudo durou uns dois minutos apenas, mas foi o suficiente para que o povo corresse igual baratas desnorteadas, uma cena dramática digna das melhores novelas mexicanas. E então, cessado o ataque de pelanca dela e de todos terem sidos devidamente postos para correr, ficamos somente ela, Davi, o tio, o pai, eu e um climão constrangedor. Olhei para Davi e ele entrelaçou sua mão na minha, sua expressão difícil de ler.

Meu Deus, o que foi que eu fiz?

— Parabéns, Davi. Você finalmente conseguiu — Sandra articulou de forma exagerada enquanto batia palmas e eu não sabia dizer o quanto daquilo era loucura e o quanto era puro drama. — E você, Alberto, vá embora! — ela ordenou, já se acalmando, enquanto Alberto permanecia imóvel, ainda em choque. — Conversamos depois. Agora eu preciso...

— Conversamos depois uma ova — Davi retrucou e o homem apenas piscou. — Não sei se você percebeu, mas o titio aí parece que tem muita coisa para dizer. E eu estou realmente com muita vontade de ouvir.

— Isso tudo é culpa sua! — ela tentou vir em minha direção, furiosa, mas Davi se colocou entre mim e ela. — Isso tudo é culpa dessa marginal, dessa favelada que não tem modos. Você destruiu a minha família! Está satisfeita?

— Me poupe, mãe, deixa de ser hipócrita. Nós sabemos muito bem que essa família já está destruída há muito tempo, você é que nunca percebeu isso — Davi veio em minha defesa e a mulher engoliu as palavras. Ele estava tão firme que pareceu até mais alto. Olhei para ele com orgulho. E depois receio.

Eu estava com medo de estragar a vida dele, de fato, pois eu não saberia as implicações das minhas ações em seu futuro naquele momento. Contudo, mesmo que doa, às vezes precisamos estragar algo para poder consertar, romper o lacre e abrir tudo até encontrar onde está a falha.

E que seja o que Deus quiser...

— Escuta aqui, Davi — Sandra achou sua voz. — Você aparecer com essa marginal é uma coisa. Agora falar assim comigo é algo que eu não vou admitir!

— Eu é que não vou admitir que você continue mandando e desmandando na minha vida sendo que você sequer se importa de verdade. Todos nós já estamos cansados de fingir, cansados de viver essa porcaria de aparências. Me diga como é que você consegue viver desse jeito? Como é que você consegue ser tão infeliz e esconder isso de todos?

 — Vocês estão loucos — Sandra olhou para nós com desprezo. — E você, Davi, espero que sua consciência pese com tanto disparate. Nossa imagem está destruída, entendeu? Destruída! E tudo por conta dessa...

— É melhor medir suas palavras — ele falou, seguro. — E a Anna não fez nada, quem fez foi o sr. Furacão aí — ele debochou.

— Ora, seu moleque, me respeit...

— E pensar que você vivia me dando sermões e falando de pureza — Davi o interrompeu. — Francamente, titio. Que vergonha, não é?

— EU VOU ACABAR COM...

— Silêncio, mulher — Luis falou baixo, mas firme, e Davi entortou a cabeça, confuso ao ouvir a voz do pai. Sandra se calou imediatamente, perplexa.

— O que você disse? — ela parecia não acreditar. — O que foi que você...

— Cala essa boca pelo menos uma vez na sua vida! — Luis a interrompeu novamente, agora um pouco mais alto. — Será que você não se cansa de ser tão desprezível, hein? Pelo amor de Deus, Sandra, pela nossa sanidade, cala essa maldita boca agora!

Cinco segundos de silêncio. Os mais longos de toda a minha vida...

— Quem você pensa que é para...

— Eu sou o idiota que te atura há dezessete anos. Dezessete anos, ouviu! — ele respondeu altivo e então se virou para nós dois. — E, filho, é melhor você levar a Anna até a porta, por favor. Acho que precisamos ter uma conversa em família por aqui — sorriu respeitosamente para mim e eu fiquei com receio do que estaria por baixo daquele homem, agora que sua paciência parecia ter se esgotado. — Acho que já está mais do que na hora de falarmos com franqueza. Finalmente.

— Hã? — Davi estava atordoado.

— Como assim, Luis, eu não...

— Shiu! — Luis fez cara feia para a esposa. — O teto já caiu de vez, não precisamos mais fazer isso, EU não preciso mais fazer isso. Olhe em volta, não há mais motivos para bancarmos a família tradicional — havia uma mágoa tão profunda em seus olhos que me deixou mexida, Davi até apertou minha mão com mais força ao ouvi-lo. — Alberto, é melhor você sair agora. Espero não ver a sua cara por aqui tão cedo — ele ordenou e eu me perguntei o que diabos estava acontecendo quando o tio de Davi obedeceu prontamente e saiu com o rabinho entre as pernas. O pai de Davi então pegou a minha mão e a beijou no dorso, tipo naqueles filmes antigos, e eu soube que ele não estava me expulsando. — Foi um imenso prazer conhecê-la, querida. Desculpe por tudo. Davi tem sorte por ter encontrado você — deu dois tapinhas no ombro de Davi. — Vão.

Aquilo foi a coisa mais esquisita que eu presenciei em toda a minha curta mas intensa vida. Eu havia cometido um belo ato de sincericídio, chamado o homem de banana, dado respostas cabeludas para Sandra, contado sobre o tio assanhado... e ainda sim nem Davi e nem o pai dele estavam me odiando.

Bom, a mãe me odiava, mas parecia que pelo menos todo aquele barraco iria servir para alguma coisa.

Enfim, depois de muito tempo, eles finalmente iriam conversar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Somente à noite" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.