Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 30
Siga o seu coração... até o inferno!




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Anna

Apesar de todos os distanciamentos que sofri eu nunca me senti solitária ou abandonada. Não que não houvesse tristezas, mas esse sentimento de solidão nunca foi algo que fez parte de mim. Mesmo quando minha mãe fugiu e meu pai se mudou para longe eu não me senti mal, pois nada disso importava se eu tinha uma avó super-amorosa e um amigo-irmão que eram muito melhor do que qualquer coisa que eu pudesse desejar. Por muitos anos fomos só eu, Sarah e Conchito, juntos como três mosqueteiros falidos, porém tão invencíveis e destemidos quanto os originais. E, então, algum tempo depois, Jeferson chegou com seus cabelos ao vento como um belo D'Artagnan fashion e conquistou toda a família, deixando a trupe de malucos felizes ainda mais completa.

No entanto, nem todas as pessoas contam com a mesma sorte que eu tive, pois algumas são solitárias mesmo no meio de multidões ou famílias perfeitas. Davi era uma dessas pessoas e eu ficava cada dia mais triste por ele, sem entender como uma família que tinha tudo ao mesmo tempo não tinha nada. Os pais dele eram egoístas, desligados, não demonstravam amor e com isso Davi afundava cada dia mais, sozinho no meio de estranhos que deveriam ser sua maior alegria. E foi por isso que ao invés de ir embora e deixá-lo sozinho com os leões eu decidi esperar, me arriscando feito uma maluca ao escalar o segundo andar de sua casa, entrando em dois quartos errados antes de achar o certo. E por fim, quando ele me viu, eu tive certeza de ter feito a coisa certa quando ele me abraçou fortemente e chorou como eu jamais havia visto alguém chorar.

Já era muito tarde, quase quatro da manhã, quando eu despertei e percebi que havia dormido na cama junto com ele. Tudo estava banhado no mais profundo silêncio e eu me perguntei como sairia daquela casa bizarra. Sonolenta do jeito que eu estava decidi não me arriscar a descer por onde tinha subido, mas quando abri a porta e me deparei com o corredor escuro do castelo do Drácula desisti na mesma hora. Pensei bem e o problema nem seria sair dali, mas sim como chegar em casa. Então peguei o celular e decidi chamar o reboque.

— Ei, você pode vir me buscar? — falei baixinho, para não acordar Davi, assim que a voz sonolenta de Conchito disse “alô” do outro lado da linha. — Tipo, agora. Já.

— Como assim você ainda não está em casa? — a voz de Conchito ficou desperta rapidamente, pois eu havia prometido ir de táxi para casa assim que tudo acabasse. — Anna, são quatro da manhã! Você devia estar na segurança do nosso lar e não... — ele gritou bravo, mas mudou o tom de voz antes da frase acabar, como se tivesse se lembrado subitamente de onde eu estava e com quem estava. E, por conta da imaginação fértil que eu conhecia bem, ele começou a rir, arquitetando em sua mente poluída milhares de perversidades por conta do meu atraso.

— Pode parar! — eu gritei e Davi se mexeu. Baixei o tom e continuei. — Pode parar de pensar o que eu sei que você está pensando. Por favor — suspirei e ele entendeu que nada estava bem pelo meu tom de voz. — Na verdade...

— Tudo bem, já estou indo — ele apenas afirmou sem perguntar mais nada, e isso me lembrou do quanto eu tinha sorte por tê-lo em minha vida.

Naquela hora da madrugada eu sabia que Conchito dirigiria a toda velocidade pelas ruas vazias, e por isso logo ele chegaria. Eu queria me despedir de Davi, mas ele dormia tão tranquilamente que fiquei com pena de acordá-lo. Então, peguei uma caneta e uma folha de papel que estava em cima de uma mesa no quarto e pensei em deixar um bilhete. Mas como eu não sabia muito o que falar apenas escrevi a frase: “Eu estarei ao seu lado sempre que precisar. Me liga. Anna".

Praguejando pela ideia idiota, pulei a janela dele e quase caí quando meu pé ficou preso em uma trepadeira a uns dois metros do chão. Depois de conseguir me soltar corri até portão principal, e fiquei ainda mais P. da vida ao perceber que teria que pulá-lo também, já que ele estava trancado. A porcaria era alta demais, então eu tive que fazer um esforço titânico para alcançar o topo, e ainda fiquei com medo de alguém ver a cena e achar que eu estava assaltando ou coisa do tipo. Na “escalada” eu até consegui salvar os sapatos, já que os arremessei para o outro lado antes de subir, mas o vestido não teve a mesma sorte, pois ficou todo manchado de musgo, além de rasgar na lateral quando eu passei a perna para descer. Não precisei esperar muito por Conchito, pois em minutos ele apareceu.

— Oh, my God! Esses putos bateram em você? — Conchito quase infartou quando entrei no carro toda destruída. — O que diabos aconteceu para você estar acabada desse jeito? Quer saber, eu vou já resolver isso, ah, se eu vou! — ele começou a gritar e buzinar freneticamente e eu tive que segurar suas mãos para que ele parasse antes de alguém acordar.

— Calma, não é nada do que você está pensando. Eu estou bem, mas tive que pular o muro para poder sair e por isso estou assim. Contudo, a história é muito longa e... — eu nem consegui formular um começo. — Que saber, vamos para casa e assim eu conto logo para todos os três de uma só vez. Sei que você vai acabar contando para eles mesmo, então não adianta falar anda agora — sentenciei e pelo olhar dele eu soube que estava certa.

Na verdade ele nem esperou nós chegarmos em casa para avisar, já que quando entramos vovó e Jeferson nos esperavam na cozinha, cada um com uma xícara de café na mão, e isso me deu a certeza de que ele deve ter mandando alguma mensagem durante o caminho de volta. Quando me viu, Sarah me olhou feio, mas aí eu fiz a maior cara de tristeza que ela já devia ter visto na vida e então ela somente se levantou e me abraçou com muita força.

— O que foi que aconteceu? Está tudo bem? — Jeferson perguntou, me entregando uma xícara de café, e eu dei de ombros. — Foi tão ruim assim? — todos eles fizeram cara de pena e eu apenas pude suspirar.

Contei cada detalhe sobre como foi a minha entrada na casa cafona, a aparência dos pais de Davi, a maneira como me trataram, o jantar nojento, as coisas que Sandra disse e que eu tive que rebater a cada segundo. Falei sobre as peruas fofoqueiras, o fato de não haver ninguém ali que parecia gostar ou se importar com Davi e, claro, a cereja do bolo: o momento em que eu reconheci Alberto, o tio de Davi, o cara que fez uma confusão tão grande na boate que vovó havia expulsado ele a tamancadas, mas não sem antes tomar dele um relógio caro como pagamento pelo prejuízo que ele havia dado. Contei qual a foi a reação de Sandra, falei sobre ela arremessando comida em todo mundo e as palavras duras que ela e Davi trocaram. E, então, Luis me mandara gentilmente ir embora, mas eu achei que não devia e por isso ficara esperando para ver como Davi estava, me arriscando ao subir até seu quarto somente para encontrá-lo completamente arrasado.

— E foi isso — já amanhecia quando eu terminara de falar e ninguém disse uma única palavra, pois apenas digeriam todas as descobertas que eu havia vivido em apenas algumas horas. Vovó levantou da cadeira e foi preparar mais café, Jeferson e Conchito apenas se entreolhavam. — Enfim... — continuei. — Acho que nem um roteirista de novelas produziria uma história tão estranha e triste e... nossa. Foi a coisa mais deprimente que eu já presenciei na minha vida.

Ficamos mais algum tempo em silêncio sentindo pena e toda a sorte de sentimentos. Imaginei como Davi aguentava tudo aquilo e percebi que na verdade ele era muito forte, pois eu no lugar dele provavelmente já teria surtado há muito tempo. Contudo ele levava tudo com muita calma, vivendo dia após dia silencioso e solitário, escondendo cada emoção debaixo de seus óculos escuros e casacos grossos. Davi era uma bomba relógio pronta para explodir e isso me preocupava muito.

— Quer dizer que aquele maluco da boate era o tio mais religioso de Davi? — Jeferson enfim quebrou o silêncio, parecendo não acreditar, e eles começaram a rir porque, apesar de tudo que contei, aquela parecia ter sido a parte mais chocante para eles. — Nunca pensei!

— Pois é — concordei. — Estou sem palavras também.

— Vocês se lembram de quando ele ficou sem calças em cima do balcão? — vovó agora gargalhava e eu queria muito ficar brava pela falta de sensibilidade deles, mas o jeito que riam estava quase me contagiando. — Ele pediu uma das meninas em casamento, não foi?

— Foi sim — Conchito mal se aguentava. — E a melhor parte foi quando a Sarah deu na cabeça dele com aquele esfregão. Foi realmente incrível.

— Tá bom, gente, por favor. Vamos manter o foco aqui — eu reclamei, já que aquele não era o melhor momento, e eles se arrumaram na mesa, arrependidos. — Sei que isso é engraçado, mas não esqueçam o que há por trás de tudo isso.

— É, você te razão. Desculpe — vovó me abraçou novamente. — É só que eu, embora já tenha vivido muito e visto de tudo, ainda consigo me surpreender com a hipocrisia das pessoas. Eu não consigo entender por que essas pessoas que sequer precisam suar para conseguir o pão de cada dia simplesmente não pegam as suas vidas e vão vivê-las sem se preocupar com o que os outros pensam ou fazem. Por que elas simplesmente não se preocupam apenas em ser felizes. É ridículo. E triste também.

— Como você acha que o Davi vai ficar com tudo isso? — Jeferson perguntou e eu apenas dei de ombros, indicando que não fazia a mínima ideia.

— Você vai precisar ajudá-lo então — Conchito sentou do meu lado e envolveu meu ombro com seus braços compridos. — Eu sei que é uma carga pesada demais ter que lidar com mais esse problema, mas ele vai precisar muito de você agora. Mais que nunca.

 — Eu sei disso — respondi. — Eu nunca pensei em fugir se é o que estão pensando — respirei forte, ofendida só pelo disparate de terem pensando que eu poderia fazer algo do tipo. — Esqueceram que eu gosto de brigar?

— Bom, então nós ajudaremos em tudo o que vocês precisarem — vovó se juntou ao abraço para me amolecer. — E, embora você tenha sido especialmente malcriada e não tenha se comportado decentemente nesse jantar, eu estou até orgulhosa de você — brincou.

— Minha educação é culpa sua, não tenho nada a ver com isso — eu sorri. — Não dá para agradar todo mundo, não é?

— Verdade... — Jeferson aquiesceu. — Mas, Anna... — ele se ajeitou na cadeira, inquieto. — Você tem certeza que o tio era o mesmo cara da boate?

— Sim, eu já disse — comecei a gargalhar e eles me acompanharam.

— Quando que eu ia imaginar que um dia você ia entrar para a família dele! Será que o sobrinho é sem vergonha assim também? — Conchito brincou e eu o belisquei com toda a força. — Tá, desculpe — ele segurou o riso.  — Se bem que na primeira vez que o Davi foi à boate ele dançou até o chão, vocês lembram?

— Claro que lembro — ralhei. — Mas a culpa foi toda sua! — cruzei os braços demonstrando que eu ainda estava chateada por ele ter dado para o meu namorado (que na época ainda meu amigo) um drinque de pimenta peruana que o fez perder o juízo e dançar sensualmente como eu jamais tinha visto.

— Você disse que ele era extremamente religioso. — Jeferson retomou o assunto. — Isso é bizarro, não é?

— Não, não é bizarro — vovó bocejou, se ajeitando para voltar para a cama mesmo que o dia já tivesse começado. — O que acontece, amigos, é que ninguém consegue se esconder de si mesmo e nem dos outros por muito tempo. Tudo o que fazemos um dia alguém sempre irá descobrir.

— O que eu faço agora, vovó? — perguntei porque precisava mesmo de  uma luz.

— Primeiro dê um tempo para Davi, ele vai precisar. Depois... — ela suspirou. — Siga o seu coração.

E assim ela subiu as escadas, sendo seguida pelo restante da minha doce família. Fiquei sozinha pela primeira vez com meus pensamentos, mas ainda assim não consegui reordená-los de maneira alguma. Então, fiz a única coisa que estava ao meu alcance no momento. Peguei o celular, procurei pelo número que agora eu conhecia de cor e mandei todo o meu coração em apenas cinco palavras.

Eu estarei sempre com você.

*

Na segunda feira seguinte lá estava eu, antes das sete da manhã, na biblioteca da escola esperando ansiosamente por Davi. O fim de semana todo havia passado se arrastando, cada segundo tão opressor quanto o seguinte que eu achava que logo iria enlouquecer. Eu não estava aguentando mais ficar sem notícia dele e isso só servia para me deixar ansiosa, imaginando se isso não significava o fim de tudo, pois eu sabia que ele já tinha problemas demais com o que lidar.

Olhei para o celular mais uma vez e a tela vazia fez meus olhos marejarem já que ele até agora não tinha respondido nenhuma das minhas mensagens e nenhuma das minhas ligações. Então, como sempre eu fazia quando tudo doía demais, apenas levantei a cabeça e segui com o meu dia, pois o que tivesse de ser, seria.

— Vocês viram o Davi hoje? — perguntei para Andressa e André quando os vi na hora do intervalo. Os dois estavam lindos juntos e isso me deu um nó na garganta, pois olhar para eles me fez lembrar que talvez eu não pudesse mais ter isso. — Ele... falou com algum de vocês? — lágrimas inundaram meus olhos e eu me amaldiçoei por isso.

Onde estava a Anna durona que eu conhecia? O que estava acontecendo comigo?

— Não, amiga — Andressa me olhou com atenção, seu semblante ficando preocupado assim que percebera o meu estado. — Aconteceu alguma coisa?

Não consegui responder, apenas balancei a cabeça negativamente fingindo que estava tudo bem. Porém, como André era uma criatura tão sensível quanto Andressa, ele simplesmente se levantou e me abraçou sem ao menos pedir permissão, me apertando de um jeito que só um amigo muito leal faria.

E, como a nova Anna não estava acostumada com tudo isso, e a carga sentimental pela qual eu havia passado era tão intensa que eu sequer conseguia respirar; segurei, segurei, segurei...

Mas não consegui me conter e comecei a chorar.

A chorar!!!

— Ai, meu Deus, o que foi que aconteceu? — Andressa ficou desesperada e me abraçou também, mas eu não conseguia falar nenhuma palavra. Eles me deram um tempo para me recompor e só depois de muitos minutos eu finalmente voltei a respirar sem me engasgar. Era humilhante, eu nunca havia chorado assim na frente de alguém, e isso só contribuiu para aumentar a raiva que eu estava sentido de Davi.

— Vocês terminaram? — André perguntou. — O que houve?

— Não terminamos — respondi. — Quer dizer, eu não sei. Enfim, acho que a única forma de vocês entenderem é contando tudo para vocês.

Nós procuramos um lugar mais reservado e eu falei sobre tudo o que não havia contado ainda. Falei sobre a mãe de Davi ser cruel e do jantar desastroso em que eu havia ido. Contei sobre o tio de Davi, da reação dele, das brigas. Falei que ele não me falava comigo desde aquele dia, mesmo que tudo parecesse bem (me lembrei de como ele me beijara e até quase sorri). Eles apenas me ouviram, me apoiaram, mas quando terminei de falar o que passava pela minha cabeça Andressa colocou a mão na cintura e gritou comigo.

Gritou comigo!

— Pode parar com isso! — a voz alta dela me assustou. — VOCÊ É A ÚLTIMA PESSOA DO MUNDO DE QUEM EU ESPERAVA AUTOPIEDADE! — ela falou ainda mais alto e eu fiquei chocada.

— Andressa, não é autopiedade. Só quero que ele fale comigo, me diga que não aguenta passar por tudo isso e ponto final! Vida que segue.

— Não! — ela me interrompeu. — Você não pode pensar essas coisas, não pode pensar que os problemas dele são culpa sua. Você não vê? — a voz dela começou a normalizar e ela segurou a minha mão para amenizar. — Você é maravilhosa! Tenho certeza que Davi está sumido não por sua causa, mas porque realmente precisa ficar longe de tudo para pensar. Você ama ele não, é? — ela começou a rir e eu realmente fiquei sem saber o que pensar diante da pergunta e dessa incrível variação de humor dela. — Só amor mesmo poderia fazer eu te ver chorar. Que emocionante!

— O quê?

— Você ama ele... — ela e André fizeram aquela cara de idiota que as pessoas fazem quando falam sobre amor e eu revirei os olhos.

— Não tem nada a ver com amor — eu retruquei. — Só estou magoada porque imagino que se ele terminar tudo será somente por puro preconceito da família dele. A minha família é ótima, não merece ser julgada apenas por não se encaixar nos padrões da sociedade. E, se for para acabar, que ele ao menos diga isso para mim ao invés de simplesmente sumir como se eu não merecesse nenhuma explicação!

— Você ama ele! — André bagunçou o meu cabelo e eu os odiei por não estarem me entendendo.

— Não! — eu me levantei, já chateada com meus amigos. — Já disse que isso é pela minha família.

— Que lindo! — ele continuou, me deixando furiosa.

— Você ama sim!  — Andressa sentenciou. — Ama, ama, ama. E fica calma, já, já ele aparece aí para falar com você. Tenho certeza de que tudo vai ficar bem, ok?

— Eu odeio vocês — peguei minhas coisas e resolvi ir para a sala, totalmente irritada com tudo e com todos. — Idiotas! — xinguei, mas não fez efeito, pois eles continuaram a rir nas minhas costas feito duas crianças.

Amor... Não era, tipo, amor. Eu gostava de Davi. Muito mesmo. Mas amor era uma palavra muito forte para mim. Eu jamais tinha amado antes, isso parecia tão distante e tão irreal que eu sequer pensara sobre isso na vida.

Bom, quer dizer, eu pensei em amor.

Uma vez.

Quando...

Quando vovó disse que eu tinha que seguir o meu coração.

E eu sabia que deveria seguir então aquele que estava com ele.

— Inferno! — praguejei sozinha quando me dei conta de que eles estavam certos.

Inferno!

 


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