Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 24
Branca de Neve na Terra do Nunca




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Vamos lá. Um, dois, três.

Quatro, cinco, seis.

Quais as minhas falas mesmo?

Enfim, mesmo que eu falasse minimamente eu não conseguia mais me lembrar de nada.

Qual o momento da minha entrada mesmo?

— Eu já disse que você entra assim que a “Piriguete de Neve” aparecer na cabana! — Andressa me alertou novamente. Fiz uma careta de desgosto, cocei o traseiro (ô roupa dos infernos para dar coceira!) e alisei meu machado. Ele era de verdade, estava afiado e imaginei que louco seria se me desse um surto e eu o girasse feito louca, cortando cabeças igual a Rainha de copas.

É, até que seria beeeem legal.

E Conchito também tem razão quanto eu estar à beira de ter surtos neuropsicóticos.

— Devia ter inventado que estava com gripe bovina — reclamei. — Quando a gente mais precisa nem uma febre sequer aparece!

Escutei uma risada atrás de mim e ao virar me deparei com Davi, atrasado como sempre e por isso ainda sem usar o figurino. Ele estava com cara de quem ia me zoar, então eu fiquei com cara de que não estava com muito saco para aturar ninguém.

 — O certo é gripe suína, Anna — ele corrigiu. — E, a propósito, vocês estão... — ele nos analisou de cima abaixo, escolhendo o que ia dizer com cuidado — fantásticas!

— Bovina, suína, mosquitina, tanto faz. “E, a propósito”, se for para zoar meu figurino é melhor cair fora! — devolvi.

— Eu, hein — Davi cochichou para Andressa como se eu não estivesse ouvindo. — O que foi que deu nela?

— Eu acho que é a roupa, só pode. Desde que a Anna vestiu o figurino do anão que parece que ela incorporou o Zangado até a alma.

— Mas é o figurino mesmo — falei. — Essa porcaria é a coisa mais feia que eu já vi na vida, acho que um saco de batatas estragadas é mais bonito do que isso, estou tão sexy quando uma marreca, pareço uma franga depenad...

— Hei, calma — ele me interrompeu. — Para que toda essa revolta?

— Ah, qual é! Posso não ser a glamourosa do funk, mas isso aqui é demais até para mim!

Explicando meu piti, o negócio é que as roupas eram as coisas mais feias que a humanidade já produziu. Enquanto Andressa estava parecendo uma prostituta emo-dark-gótica do século dezenove (a perna esquerda dela estava toda de fora, os peitos viviam saindo do decote e era possível ver a bunda dela pela renda fina e preta), a minha roupa era verde com marrom, minha calça estava rasgada e suja de algo que torci para ser apenas lama e na minha cabeça colocaram um gorro verde com uma bola na ponta. E, claro, alguma anta amarrou fitinhas coloridas no meu machado.

Eu parecia mais um cruzamento de mendigo, Peter Pan e Sininho depois de uma suruba na Terra do Nunca.

— Anna, deixa de ser dramática — Andressa se meteu. — Estou tão horrorosa quanto você, mas estou aqui sendo suuuuper profissional — ela se olhou em um espelhinho, ajeitou a maquiagem e arrumou os peitos. — Aprenda comigo, querida.

— Super profissional? Ah, tá. Como se a gente estivesse indo se apresentar em um musical da broadway ao invés de em uma peça que só vai ser assistida pelas turmas do segundo ano e pelas tias da cozinha.

Que deprimente.

— Bom, eu vou ver então o que reservaram para mim — Davi saiu de mansinho, provavelmente achando melhor não mexer mais com a fera. Porém, logo depois ele voltou e eu percebi como Deus é bom e justo, pois se eu estava feia ele estava ainda pior. Andressa e eu rimos por uns bons dois minutos antes de conseguirmos falar alguma coisa.

— Nossa... — Andressa balançou a cabeça. — O Brad Pitt com certeza se mataria diante de tanta beleza. Uau, acho até que estou sentindo um comichão aqui em baixo — ela sacudiu a saia e eu não consegui segurar o riso novamente.

— Ah, qual é, vocês poderiam pelo menos ter retribuído a gentileza — ele reclamou. — Eu não fiz nenhum comentário sobre o fato de vocês estarem... assim — Davi apontou para nós duas, mas isso não nos impediu de continuar a rir.

— Tenha espírito esportivo — eu falei para ver se desamarrava a cara dele. — Pense que hoje em dia é moda usar os homens usarem blusas decotadas com calças coloridas apertadas assim. Veja o Luan Santana, por exemplo. Pelo menos essa peça vai valer uns pontinhos e isso vai ajudar o André a passar. Nosso amigo merece nosso sacrifício.

— E por falar nele, alguém o viu? — Andressa quis saber.

Fomos procurá-lo no meio dos outros que se arrumavam e quando o encontramos não acreditamos no que vimos, pois a roupa que ele usava era incrível e André realmente estava parecendo um príncipe inglês, todo de branco e cheio de medalhas. Olhei de um lado para o outro e então comecei a perceber que a roupa de todo mundo era feia, exceto a dele.

E a da Branca de Neve.

Aí tinha coisa.

— Caramba, o que houve com vocês? — André perguntou sem disfarçar o espanto, rindo de mim e Davi, mas dando umas olhadelas safadas para o traseiro da minha amiga. — Aliás, o que houve com a roupa de todo mundo?

— Não sei — respondi apertando os olhos e analisando Patrícia, que estava dentro de um vestido rosa tão perfeito que parecia ter saído de um filme hollywoodiano. — Mas juro que não vai ficar assim.

— Bom, já que achamos o André é melhor irmos — Davi alertou e fez uma careta ao perceber que Andressa parecia estar à beira de um ataque. — E, por favor, seja o que for, deixe para lá — ele cochichou no meu ouvido e esperou confirmação. Porém, como eu me fiz de desentendida ele apenas suspirou e saiu do caminho, resignado.

Esperei todos se dirigirem para o palco e fiquei esperando por Patrícia, que estava passando mais argamassa na cara do que um mestre de obras passa ao construir uma parede. E, quando enfim ela se aproximou de mim, bloqueei o seu caminho e ela apenas me olhou desafiadoramente. Ficamos em silêncio, apenas nos encarando, até ela finalmente falar.

— Perdeu alguma coisa, anã?

— Não, não perdi. Só queria ver a sua roupa mais de perto — a olhei de cima a baixo, quer dizer, de baixo para cima, com desdém. — É bem bonita. Combina com você.

— É, você tem razão — ela sorriu falsamente. — Mas e aí, gostou da sua roupa? Eu mesma que cuidei de tudo. Peça por peça — ela fez uma expressão de nojo ao olhar para mim.

— Ah, claro, eu adorei. E gostaria de deixar bem claro que vou fazer o possível para retribuir a sua gentileza. Fique sabendo que vou te compensar por isso.

— Eu e o André estamos ótimos, você não acha? — ela continuou a forçar o sorriso, desconversando. — Na cena do beijo com certeza nós vamos chamar muita atenç...

— É, eu já ouvi, você fica repetindo isso toda hora como um disco velho e arranhado. Se bem que, se depender de mim, a cena em que você fica dentro de um caixão vai ser bem mais memorável — articulei as palavras bem devagar e o seu sorriso morreu no mesmo instante. — Boa sorte, querida. Tente não perder a cabeça — sacudi o machado e Patrícia fechou a cara. Me retirei do seu caminho e ela saiu aos tropeços, meio amedrontada meio furiosa, e eu fiquei imaginando o que mais deveria fazer para proteger meus amigos de gente como ela.

 *

— Aaaaaaaaação!

— Era uma vez, em um reino distante...  — o narrador começou e eu, entediada, coloquei meus fones de ouvido.

...

— Uma linda princesa ficou órfã...

...

— O rei precisou...

...

— Ó. Minha filha. É... Você precisa... de uma... humm... nova mãe — Davi entrou em cena e Andressa me cutucou para assistir, já que ela entraria em seguida. E a cena, que era para ser dramática, foi cômica, pois além de Davi tropeçar nas palavras e estar vestido como um cantor teen colorido e apertadinho, Andressa roubou toda a atenção com seus trajes “obscenos”. André ria ao meu lado e eu tive que ralhar para que ele parasse antes de alguém ouvi-lo relinchar.

Depois disso foi toda aquela chatice que é exatamente igual há uns trezentos anos, exceto a parte da princesa conhecer o príncipe no começo, (pois Thays achou melhor do que o cara chegar e beijar uma morta desconhecida); uns tarados chamarem a Andressa de gostosa toda vez que ela aparecia; André entrar antes da hora para afugentar os tarados; Andressa entrar antes da hora para afugentar Patrícia... Enfim eu entrei, disse “seja bem vinda, princesa, nossa casa é sua” e fui para o canto, pois minhas falas se limitavam a isso. Faíscas saíram quando Andressa entregou a maçã para Patrícia e a “morte” dela foi mais forçada do que final de novela das nove. Depois, eu e mais outro anão fomos encarregados de colocá-la no caixão e eu praticamente a arremessei dentro dele, arrancando um gemido dela, uma risada da plateia e uma um som de fúria da diretora da peça. Então, André olhou para mim, para Davi e por fim para Andressa e a gente ficou sabendo que agora era pior parte.

— O que eu devo fazer para trazer minha amada de volta?  — André disse a sua fala sem nenhuma felicidade e a vaca riu dentro do caixão.

— O que eu devo fazer para trazer minha amada de volta? — André repetiu e eu vi que se ele a beijasse isso ia ficar assombrando meu casal de amigos por muito tempo.

— O que eu devo fazer para trazer minha amada de volta? — ele me beliscou, já puto, e eu lembrei que tinha mais uma fala. Olhei para Andressa e ela estava com cara de quem iria chorar.

Então, ativei o modo “zorra total” e resolvi improvisar.

— Você não ama essa piranha! — eu falei bem alto. — Deixa a vagaba aí e vai pegar a bruxa que é dela que você gosta.

— O QUÊ? — a diretora da peça berrou em um canto e Patrícia logo se levantou do caixão.

— Ah, gente, qual é? Isso é preconceito, sabia? — falei para a plateia. — Por que que o príncipe tem sempre que ficar com a princesa sem sal? Tipo, olha a química que rolou entre ele e a bruxa! Ninguém nunca viu o lado da bruxa, viu por que que ela se casou com um cara que não gostava? Pensem bem: A Branca de Neve quis o príncipe só porque ele gostava da outra! E ficava fazendo bullying com a coitada da madrasta, se achando mais bonita e tal. Será que nunca ninguém percebeu que na verdade a Branca de Neve é a vilã da história?

— É verdade! — Andressa veio em meu auxílio. — Eu só dei a maçã para ela para defender o meu grande amor! — ela colocou a mão no coração, dramática.

— O que eu faço? — André moveu os lábios, pedindo ajuda, e eu respondi para ele ir “na onda”.

— Toda forma de amor deve ser respeitada! — berrei. — Bruxas, elfos, fadas, hobbits, narnianos, X-mens, todos têm direito de ficar com quem bem entendem! E até se um anão quiser pegar o rei ele vai poder! — pisquei para Davi e fiz uns movimentos imorais com a cintura, e ele quase se enterrou de vergonha, apesar de rir.

— Abaixa o pano agora! — Thays berrou, mas foi ignorada. — Meus Deus, o sexto ano também está aqui! — ela encobriu o rosto com a mão nervosamente.

 — Estou cansada de ser sempre excluída socialmente, ser sempre aquela que é má...  — Andressa continuou o drama. — Eu quero mais é viver um grande amor!... — e se jogou nos braços de André como se o mundo fosse acabar.

A plateia então começou a gritar e assoviar, aprovando o final alternativo e maluco de um clássico, e Thays fez uma expressão de alívio ao ver que todos estavam gostando. Lembrei que o professor de literatura estava olhando e pensei no quanto estávamos ferrados, mas como ele era um dos que mais riam isso me deu um certo alívio momentâneo.

— Isso é um absurdo! — Patrícia começou a berrar, se desalinhando, e foi vaiada até sair. Os que ficaram foram absurdamente aplaudidos e nós fizemos a clássica pose de fim de teatro, dando as mãos e agradecendo ao maravilhoso, rico e vasto público dos sextos, oitavos, segundo anos e serventes que estavam passando por ali.

— Definitivamente você não é um ser humano normal — Davi disse e meus amigos concordaram. — Acho que nem humana você é.

— Eu sei disso — falei de volta, agradecida. — E gosto de ser assim.

— Você acabou de me salvar — André sorriu. — Você agora é tipo o meu super-herói favorito!

— Eu estou te devendo uma, não é? — Andressa piscou e eu me senti feliz por ter feito algo bom, mesmo que simples.

Mas, apesar do final feliz, o assunto ainda não estava terminado.

 


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