Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 23
O romantismo da coisa toda




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Sabe quando você passa por uma situação e depois fica se perguntando se aquilo foi real ou não? Você fica por horas e horas pensando em cada detalhe, tentando adivinhar se aconteceu mesmo ou foi apenas um surto da sua imaginação, mas aí a realidade começa a se misturar com a mente e você se perde sem saber como lidar com tudo aquilo?

Enfim, passar por isso é uma grande porcaria.

Eu estava tentando entender se eu e Davi, todas aquelas carícias, beijos intensos e as minhas mãos arrancando a camisa dele havia acontecido de verdade. Bom, nós não tínhamos cruzado a linha de chegada, mas havíamos chegado bem perto disso. E pensar nisso agora, com Davi longe de mim e com todos os hormônios de volta no lugar, era algo bem constrangedor.

Resumindo, eu estava com uma puta vergonha.

Mas, como nada se resolve sozinho, respirei bem fundo e me dei conta de que não poderia ficar para sempre com todas essas sensações embaralhadas dentro de mim, então o melhor a fazer seria agir com naturalidade. E o sol, ao me ver deitada na cama olhando para o teto, concordou comigo e resolveu que era hora de acabar com o meu momento. Ele então lançou um raio quente e iluminado pela minha janela, me assando embaixo das cobertas, e eu fiquei imaginando se ele não estaria dando uma risadinha maléfica lá em cima.

— Valeu, sol, nem você dá folga para mim aqui nessa casa! — praguejei enquanto me esforçava para me levantar, tentando adiar o dia por mais cinco minutinhos. Porém, ele parece que me ouviu e aumentou a temperatura ainda mais, tornado o calor impossível de dar mais um cochilo. Por fim, derrotada, me arrastei preguiçosamente até o banheiro, e depois de fazer todas as coisas que a gente faz quando acorda fui direto para a cozinha.

Assim que entrei nela o silêncio foi total.

Silêncio total? Na minha casa?

Aí tem...

— Bom dia? — eu perguntei assim que vi Vovó, Conchito e Jeferson calados, mas cada um deles ficou olhando para o vento, o que me fez desconfiar de que ali havia coisa. Eles então me responderam com um “bom dia” bem baixinho, e mal terminei meu leite e saí para que em poucos segundos um burburinho cheio de risadinhas começasse para lá. Retornei para a cozinha, fingindo que ia buscar outra coisa, e igualmente silêncio total. E, novamente, quando saí de lá, tudo recomeçou outra vez. Coloquei a orelha atrás da porta e ouvi:

— Hummm, estava demorando!

— Na verdade estava mais do que na hora!

— Será que foi bom?

Risadinhas.

— Eu estou curiosíssimo!

— Gente, que babado quente!

— Por que ela não conta nada?

Mais risadinhas.

— AH, JÁ CHEGA!!! — saí detrás da porta gritando e eles se assustaram. — Posso saber por que os três estão cochichando desse jeito? — perdi a paciência e resolvi perguntar. — Anda, aposto que estão falando sobre mim — sentei junto com eles à mesa e recebi olhares maliciosos de volta. — Comecem! — ordenei, mas ninguém se moveu. E como eu não sairia dali sem saber do que se tratava, me acomodei e comecei a bebericar o suco que estava no copo de alguém. Esperei, esperei, esperei e enfim alguém se manifestou.

— Então... — minha avó pigarreou e os outros olharam para o lado. — Nós estávamos falando aqui... É que o Conchito me contou que ontem... você e o Davi... vocês estavam trancados no quarto... — ela fez uma cara mal-intencionada e eu acabei me engasgando com o suco, e isso foi pior do que se eu tivesse contado alguma coisa. Tossi algumas vezes e depois olhei para Conchito com a minha melhor cara de ódio, mas o filho da mãe nem se dignou a me olhar de volta.

É por essas e outras que eu ainda vou acabar virando uma serial killer...

— Não sei por que todo esse rebuliço — disse, me colocando logo na defensiva. — A gente não já ficou por lá algumas vezes? E o que é que tem isso?

— E o que tem isso é que queremos saber de tudo! — Jeferson não se aguentou e soltou logo a bomba. — Não desperdice nenhum detalhe, mona!

— Saber o quê!? — berrei já imaginando o rumo da história.

— Ora, saber como foi a coisa... a coisa toda... — Conchito começou a falar.

— Que coisa toda!?

— Ora, Anna, não banca a santa que eu sei que você já pecou — Jeferson riu. — Pensa que não reparamos que você e o Davi saíram do quarto amassados, despenteados e vermelhos? Aqueles olhos puxados nunca me enganaram... Fala logo, conta tudo. É verdade o que falam sobre o tamanho dos...

O QUÊ!!!!

Ehh... Bem que eu poderia morrer agora...

— Jesus! Vocês precisam parar de ser maldosos, sabiam? — reclamei chateada e envergonhada. — Nós ficamos só vinte minutos lá dentro e vocês já começam a pensar...

— Vinte minutos é tempo suficiente, meu bem — fui interrompida por Conchito, que falou revirando os olhos ao recordar de algo da sua vida pervertida. — Se com dois minutos com o Reinaldo da oficina eu fiz a festa, imagine o que eu não faria com vinte!

— Conchito! — tentei soar brava, mas não consegui, pois ele sempre me fazia rir mesmo quando queria ser sério. — Primeiro, eu não vou e nem quero imaginar o que você faria com o Reinaldo da oficina em vinte minutos. Segundo, me desculpe acabar com as expectativas de vocês, mas ao contrário de certas pessoas — olhei fixamente para Conchito — eu ainda não tenho nenhuma história pornô para contar.

— Ainda não? Como assim ainda não? Hum, tudo que vem acompanhado de um “ainda não” tem a intenção de se cumprir um dia — vovó gargalhou como se fosse a coisa mais normal do mundo uma avó conversar sobre sexo com a neta na frente de dois homens, e a mim só restou esconder o rosto com as mãos e fazer uma oração.

Senhor, eu prometo que serei alguém melhor de hoje em diante se conseguir sair ilesa dessa... Olha, eu até prometo que nunca mais vou judiar as meninas da boate. Se o Senhor quiser eu até peço desculpas para elas. Posso fazer umas doações também. Aceita?

Bom, acho que é só.

Amém.

— Gente... — voltei para a realidade e falei já mais calma, respirando devagar, com a intenção de mostrar minha superioridade espiritual no meio de tanta bagunça. — O que eu faço com vocês, hein?

— Com a gente nada, você tem que fazer é com o Davi! — Jeferson disse e todos riram alto. E, mesmo estando zangada, não consegui me segurar e acabei acompanhando.

— Olha, vocês são malucos, excêntricos, intrometidos, irritantes, perturbados e desequilibrados, mas sei que me amam e são a única família que eu tenho — falei e vovó deu um tapa fraco na minha nuca, os meninos achando graça da situação. — Eu amo vocês e sei que posso ser sincera, então, no dia em que eu precisar contar algo eu contarei, ok? Não quero cochichos, não quero especulações e nada de falarem de mim pelas costas, entenderam? — fiquei olhando fixamente para eles e em resposta todos balançaram a cabeça afirmativamente.

— Tudo bem, querida, a gente entende — vovó falou. — Mas é que é estranho, sabe? Ainda ontem você estava sem os dentes da frente e agora...

— Eu sei — a interrompi antes que o chororô saudosista começasse. — Mas não é assim que as coisas funcionam? — pisquei e ela sorriu.

— É verdade... Mas isso mostra também que eu estou ficando velha. E eu ainda não estou preparada para isso.

— Velha que nada, você ainda tem muitos anos de safadeza pela frente. Aqueles barulhos que você e Alex fazem no seu quarto são a prova disso — Conchito disse rindo e isso logo animou vovó. — Mas, a propósito... — ele veio novamente se coçando para o meu lado e eu sabia que a história ainda não tinha terminado. — Anna do meu coração, o que te impede de dar uns pegas no Naruto Tupiniquim?

— Conchito, já chega! — eu me levantei furiosa. — Estou cansada de brigar, então tô indo.

— Mona, algum distúrbio você deve ter, porque eu não perderia nenhuma oportunidade — Jeferson riu e a minha paciência enfim esgotou.

— Puta que pariu vocês, mas que cacete! Eu não acabei de falar para pararem de se meter na minha vida? Vocês não ouviram, não? E, Conchito, só para constar, foi você quem interrompeu a “coisa toda” de acontecer quando bateu naquela maldita porta! — apontei o dedo na cara dele e falei sem perceber, e no mesmo instante me arrependi, pois os três ficaram boquiabertos e logo começaram a dar gritinhos entusiasmados.

E, como a minha oração não funcionou, eu tive que aturar milhares de perguntas vergonhosas sobre tamanhos e afins, além de comentários infames e imorais.

Porque se não fosse para um adolescente passar vergonha pelo menos uma vez por dia ele provavelmente não seria um adolescente.

*

— Então, qual é a boa? — perguntei assim que vi Andressa na escola. A cara dela não era uma das melhores, o que era raro, por isso me preocupei.

— Não é nada não. É que o André foi atrás de uma encomenda com um amigo assim que chegamos e até agora não voltou — ela olhou novamente para a entrada da quadra. — Não gosto dele sozinho com aquela piranha por aí.

— Calma, criatura. Você sabe que ele é o seu “chuchuzinho” — zombei.

— E por falar em “chuchuzinho”...

Virei de costas e ao ver que Davi vinha em nossa direção pensei em como a gente vai mudando a percepção das coisas à medida que o tempo vai passando. Se antes ele era apenas o garoto esquisito que eu mal conhecia, agora ele era, bem, alguém muito importante.

Era legal sentir isso.

Até eu lembrar da zoação da minha família e pensar em como antes era tudo tão mais fácil...

— Oi — falei firmemente assim que ele chegou, pois eu sempre fui do tipo que fingia que tudo estava bem mesmo quando não estava. — E aí?

— Ah, oi — ele respondeu, no rosto uma expressão confusa. — Tudo bem?

— Tudo — respondi enquanto cutucava as minhas unhas. — E você? — perguntei meio desinteressada, mas o desgraçado logo percebeu que eu estava enrolando uma conversa mais séria e começou a rir.

— Melhor agora — Davi me desarmou com um sorriso torto, enquanto procurava pela minha mão, e eu odiei me derreter toda, pois sempre achei que tinha nascido imune a esse tipo de coisa besta. Seus olhos se fixaram nos meus e incrivelmente ele não parecia envergonhado pelo que havia quase acontecido entre nós, mas imaginei que isso se devia ao fato de que com certeza ele não havia ouvido disparates da própria família no café da manhã. Então, apenas me limitei a sorrir bobamente e mordi os lábios, e eu juro que esse gesto o fez perder o foco por um instante, pois ele inspirou um pouco mais fundo e seus dedos apertaram firmemente os meus.

Ah, o amor...

Que grande merda ele é.

— Argh, procurem um quarto logo antes que vocês tirem as roupas aqui na frente de todo mundo! — Andressa, que ficara momentaneamente esquecida pela chegada Davi, se manifestou, e ele enfim mostrou que ainda tinha alguma vergonha na cara ao ficar todo constrangido. E eu, como uma boa filha da mãe, apenas me limitei a gargalhar.

Rir da vergonha alheia era uma boa maneira de esconder a minha.

— Bom dia para você também, Andressa — ele falou todo acanhado e ela apenas levantou as sobrancelhas e ficou fazendo uma dancinha com elas, coisa que aprendeu comigo. — O André tá por aí? — Davi desviou o foco.

— Tá, mas sumiu — Andressa se esqueceu de nós tão rápido quanto um raio ao ouvir o nome do namorado e voltou a surtar. — Onde será que ele se meteu?

— Deixa de frescura que ele já está vindo! — ralhei e ela fez cara de tédio. Porém, esperamos mais uns bons dez minutos até André enfim aparecer com um mega sorriso na cara.

— Oi, povo lindo! Como vão nessa linda manhã?

— Onde é que você estava? — Andressa interrogou logo. — Só espero que...

— Calma, gata, fui buscar minha encomenda. E aí, gostou? — ele apontou para o peito, mostrando com orgulho a estampa da camisa. — Tava a fim de uma dessas faz tempo.

— Então você me deixou aqui sozinha por causa de uma camiseta? — ela brigou.

— Não qualquer camiseta. Uma camiseta de rock, baby! Viva Metallica!

Eu e Davi nos olhamos, olhamos para a estampa na camisa do André – a foto de um cara com um cabelo preto liso e compridíssimo – e então nos olhamos de novo.

— Uma camiseta de que mesmo, André? — perguntei só para ter certeza.

— De rock, uai! Metaaallica!

Não conseguimos segurar. Eu e Davi rimos tanto que em menos de dez segundos eu já estava morrendo de dor nos músculos da barriga. Davi já estava quase infartando e quem não conhecia a risada dele poderia até pensar que ele estava incorporado um espírito já que se chacoalhava todo e fazia uns barulhos mega feios. Andressa e a André só faziam nos olhar como se fôssemos dois malucos.

— Vocês estão bem? — Andressa perguntou preocupada. — Fumaram algo?

— Não, amiga — respondi. — Mas é que enganaram o seu namorado.

— Como assim? — André perguntou.

— Esse aí na sua camiseta não é ninguém do Metallica não — Davi enxugou uma lágrima. — Esse aí... — recomeçamos a rir — é o Wesley Safadão! Colocaram uma foto antiga dele!

Andressa enfim prestou atenção na camiseta dele e ao reconhecer o cantor de forró na estampa começou a rir também. Já o André, coitado, quase não acreditou. Ele então correu até a porta e quando viu o seu reflexo no vidro...

— Filho de uma égua! — meu amigo começou a xingar. — Paguei cinquenta reais por um modelo exclusivo de rock, cara! ROCK!!! Ah, eu vou matar o Jorge!

— Mas esse modelo é mais do que exclusivo, amor — Andressa zombou. — Aposto que ninguém tem uma igual.

— Quanto a isso eu concordo — Davi articulou no meio da zoação. — Esse modelo provavelmente é único!

— Droga! — André resmungou. — Isso parece até cena de comédia, puta que pariu.

— Sabe, gente, é por isso que eu amo vocês. Só com a gente acontece essas coisas bizarras — gargalhei.

— Pera aí, pera aí, pera aí. Para tudo! — Andressa deu um berro, interrompendo as risadas. — Não acredito nisso: Anna Fernandes está dizendo que ama alguma coisa? Melhor, dizendo que ama pessoas? Ai, caramba, acho que vai chover canivetes!

— É... parece que o Davi tá fazendo o dever de casa direitinho — André devolveu a zombaria. — Cara, me dá umas dicas aí depois de como é que a gente faz para deixar a mina assim.

— Calem essa boca e deem o fora — fiz cara feia. — Andressa, leva o “safadão” daqui e me deixem em paz — saí empurrando os dois e eles fugiram rumo as suas salas morrendo de rir. — Hoje parece que não é o meu dia mesmo — reclamei.

— Por quê? — Davi perguntou e então me lembrei de que ele ainda estava ali.

— Se eu te contasse teria que te matar.

— Valeria a pena morrer se o preço fosse ouvir os seus segredos, Anna.

— Você andou assistindo “A lagoa azul” de novo, não foi? Ou foi “Um amor para recordar”?

— Caramba, Anna, você não consegue mesmo ser romântica — ele riu. — Às vezes eu fico imaginando como seria se você não fosse assim.

— E a qual conclusão você chegou?

— Bom... — ele fingiu pensar — Acho que não seria assim tão divertido.

Procurei alguma coisa para falar, mas, como não achei nada legal, apenas revirei os olhos e o beijei.

Falar sobre sentimentos não era algo da qual eu era fã.

— Você fala demais, garoto — sussurrei. — Use a sua boca para algo melhor.

— Era disso que eu estava falando.

Bom, eu adoraria dizer que depois disso fomos para Nárnia e ficamos por lá mesmo, mas, como a realidade é cruel, na verdade fui assistir a uma maravilhosa aula de química sobre gases nobres enquanto ele foi estudar o fígado de uma vaca.

É, romantismo não é para todos.

Mas a gente até que sobrevive bem sem ele.


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