Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 15
Unicórnios voadores em passos de tango




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Eu estava presa, presa em um labirinto que parecia não ter fim. Pendurados nas paredes havia vários quadros pintados a mão, com o meu rosto desenhado em cada um deles. Eu estava fugindo de alguma coisa, mas não fazia ideia do que era. Enfim, encontrei uma luz e a segui, achando que assim encontraria a saída. Ultrapassei a luz e então...

— Boa noite, plateia, está no ar mais um programa do coração! Anna, todos os convidados já estão esperando por você, então deixe de vergonha e venha até nós! — uma mulher que era a cara da Fátima Bernardes me convidou. De repente me vi no meio de um palco usando um vestido vermelho e com um holofote sobre o meu rosto.

— O que está acontecendo? Estou sonhando? — perguntei protegendo os olhos da luz intensa. Olhei para a plateia e me assustei ao ver o Louro José na primeira fila. Ao lado dele, Harry Potter e Willian Bonner seguravam uma faixa com os dizeres: “Go, Anna.” Dois bancos atrás, Michel Jackson, Beyoncê e seu Zé da oficina me aplaudiam.

— Anna, querida — Fátima Bernardes me disse com alegria —, você ganhou um prêmio valioso! Tem alguma ideia do que seja?

— Ah... não — disse morrendo de vergonha.

— Anna... — tambores rufaram e fiquei apreensiva —, você acaba de ganhar o direito de conhecer alguém muito especial!

— Sério? — perguntei incrédula. — É ele? — pensei em Bryan Adams e só podia ser ele, não havia ninguém na vida que eu quisesse conhecer mais.

— Sim, é ele! — Fátima respondeu.

— Ele mesmo? — repeti a pergunta.

— Mas é claro, Anna — ela sorriu. — Não era esse o seu sonho?

Comecei a gritar feito uma louca e a plateia gritou junto comigo. Angelina e Brad assobiaram e Lady Gaga abraçou a dona Maria do churrasquinho de tão feliz que estava. Fui levada por duas dançarinas até uma porta colorida e o programa inteiro silenciou. Eu mal podia acreditar que iria conhecer Bryan Adams e que em breve estaria me jogando em seus braços...

— Ele está do outro lado da porta — alguém disse. — A pessoa que você mais gosta nesse mundo está do outro lado dessa porta...

— Abre! Abre! Abre! — o povo gritou enlouquecido.

Engoli em seco, respirei fundo e abri a porta. Dentro dela havia apenas uma cama enorme, cheia de pétalas de rosas, e uma mesa com champanhe e morangos. E ele estava lá, de costas, vestido sensualmente de preto e esperando por mim. Alinhei a roupa, arrumei o cabelo e chamei por ele.

— Olá — minha mão estava trêmula. — Sabia que eu gosto muito de você?

— Eu também gosto muito de você, baby — ele respondeu e se virou. Fiquei boquiaberta ao perceber quem era.

Não era Bryan Adams.

Era Davi.

— O que você está fazendo aqui, seu energúmeno? — gritei com raiva. — Vá embora, saia do meu sonho. Onde está o Bryan? O que você fez com ele? Chispa daqui, Davi!

— Eu não posso sair do seu sonho — ele riu de um jeito cafajeste. — Se eu estou aqui é porque você deseja...

— Bryan?— chamei, mas ele não veio me salvar. — Bryan!

O garoto então se aproximou de mim, segurando uma rosa vermelha, e me agarrou, entrelaçando nossas pernas em um passo de tango. Ele colocou a flor entre os dentes e me olhou profundamente.

— Ora, Anna, para que Bryan se você tem a mim? Venha comigo... que eu vou te ensinar como se faz o thê thê rê rê thê thê.

Ele passou a língua no meu pescoço.

Dei um grito.

.

E caí da cama.

Tipo, não foi uma daquelas quedinhas que a gente cai quando simplesmente se assusta. Foi uma daquelas quedas de cara no chão, em que o indivíduo tem sorte se não quebrar um dente ou rachar o crânio. Despejei uma meia dúzia dos piores e mais feios palavrões existentes antes de Conchito abrir a porta e me encontrar em um estado deprimente, estatelada no chão feito uma sapa gorda. Imediatamente coloquei a mão na testa e senti os dedos úmidos.

— Minha nossa! — ele exclamou ao ver sangue saindo da minha sobrancelha. Meu amigo então me ajudou a levantar e sentou junto comigo na cama. Ele ficou analisando a minha cara e rapidamente saiu sem dizer nada. Cinco minutos depois voltou com a caixinha de primeiros socorros e começou a limpar o local ferido com um algodão. — Então, o que houve, Anna? Você não tem mais idade para estar caindo da cama desse jeito.

— Sei disso, Conchito. É que... ai — dei um tapa na mão dele para que limpasse com mais delicadeza. — Eu tive um pesadelo horrível, algo mesmo muito assustador.

— Deve ter sido muito ruim mesmo para te deixar nesse estado. Com o que você sonhou?

— Bom... foi com o Davi.

— Cruzes, ele estava morrendo? — Conchito questionou. — Se afogando? Torcendo para o Vasco?

— Não, a gente meio que estava se agarrando — soltei antes que pudesse filtrar a informação. Se eu já era desligada ao natural, imagine após um baque na cabeça.

— Ui, que divo, adoro um sonho erótico!

— Cala essa boca, não é nada disso que você está pensando. E eu já disse que foi um pesadelo, não um sonho.

— E desde quando sonhar que está dando uns pegas naquele bofinho escândalo é uma coisa ruim?

— Claro que é! — respondi o mais rápido que podia. — Desde quando a gente sonha desse jeito com os amigos?

— É, você tem razão, ninguém sonha assim com um amigo. Mas com alguém que é maaaaaais do que amigo sim — ele fez um bico sórdido e riu com malícia.

— O que você que dizer com isso? — perguntei meio impaciente. Levantei da cama e fui atrás de algo decente para vestir, e enquanto isso Conchito ficou apenas observando os meus movimentos.

— Olha para você, mona, está uma pilha de nervos desde que ele viajou. Por que é tão difícil confessar que está com saudade dele?

— Porque eu não estou!

— Está sim!

— Não — gruni.

— Sim.

— Não.

— Sim.

— Não — olhei feio e encerrei o assunto.

Ele revirou os olhos e fez um gesto como se estivesse lavando as mãos. Porém, como não conseguiu ficar quieto, voltou a falar.

— Você gosta mesmo dele, não gosta? Pode falar para mim, você sabe que pode confiar.

— A questão não é confiar ou não, Conchito. Eu só não quero falar sobre isso.

— Você está com medo de romper a zona da amizade, não é? — ele insistiu.

— Será que dá para você ficar quieto! — briguei. — Não consigo pensar com você falando!

— Ok, eu me calo. Mas, a propósito, as suas aulas voltam amanhã, não é? Se bem que isso não deve ser nada demais para você, pois não há nada que você queira ver não é?

Tentei fingir que isso não me afetava, contudo era mais fácil enganar mil agentes do FBI do que um Conchito curioso. Contive o máximo que pude um sorriso e meu amigo voltou a fazer aquela expressão que dizia o mesmo que: “até parece que você me engana.”

Eu até que estava bem, porém, de repente senti que minhas mãos estavam suando frio, como se a minha pressão estivesse baixando. No entanto ignorei o sintoma – que atribuí ao sonho conturbado. Nós então descemos as escadas e assim que cheguei à cozinha encontrei minha avó fazendo torradas enquanto cantarolava usando um pepino como microfone.

— Como uma deeeeusa... você me mantéeeem... e as coisas que vocêeee me diz... me levam aléeemmm.

— Eu é que vou te mandar para o além se você continuar a cantar essa música — Conchito fez uma careta.

— Qual o problema? Não gosta da felicidade alheia? — vovó perguntou.

— O que é que tá pegando? — me meti antes que saíssem faíscas dali.

— O que tá pegando é que desde que essa velha começou a tirar o atraso com o gringo eu não consigo mais dormir. Meu quarto fica ao lado do seu, darling. Faça menos barulho, please.

— Conchito, pelo amor de Deus, nunca mais diga esse tipo de coisa na minha frente — ralhei tentando apagar as imagens que se formaram em minha cabeça.

Não foram agradáveis.

Eu ia precisar de terapia.

— Me respeita, oferenda devolvida! Olha que eu te ponho na rua.

— Até parece que você vive sem mim, velha carcomida — Conchito devolveu e os dois riram.

Vai entender...

Minha avó então se virou e colocou um prato com torradas lambuzadas com requeijão na minha frente, a face rejuvenescida por causa dos efeitos pós-noitada. Ela olhou para minha testa e ao ver o corte logo fez cara feia.

— O que é isso, Anna? Você já brigou com alguém? O que aconteceu dessa vez?

— Isso não foi briga, ela caiu da cama... — Conchito interveio. Olhei com ódio para ele, contudo ele apenas ria da minha desgraça.

Não termine a frase.

Não termine a frase.

Não termine a...

— ... porque estava tenho sonhos quentes com o Davi.

— O QUÊ? — gritei já morrendo de vergonha. Tentei dizer alguma coisa, mas na mesma hora cambaleei e comecei a sentir uma coisa estranha dentro do meu estômago. Minha visão embaçou e eu só tive tempo de correr até o banheiro antes colocar a refeição do dia anterior para fora.

— Anna, me desculpa. Não precisar passar mal por causa disso! — ouvi meu amigo se desculpar.

— Meu amor, você está com febre! — vovó disse enquanto me ajudava. — O que está sentindo?

— Não sei explicar — respondi enquanto tentava beber um copo de água que vovó me estendia.

Enfim, depois de mais vômitos e uma ida ao posto de saúde, descobri que estava com uma porcaria de virose. Por sorte eu podia contar com as “enfermeiras” mais loucas e cuidadosas do mundo. No entanto, havia uma coisa pior do que ficar doente.

Eu ainda não poderia ver meus amigos.

Eu ainda não poderia ver Davi.

*

— Posso saber por que você não veio para a aula hoje? — Andressa perguntou e pelo tom de voz estava muito chateada.

— Quando a gente liga para uma pessoa primeiro devemos perguntar se ela está viva — respondi impaciente. Senti vontade enorme de jogar o celular pela janela, mas me contive, pois a minha vida não era uma novela com personagens ricos para eu quebrar as coisas sempre que dava vontade.

— Credo, Anna. Eu só liguei porque estamos todos com saudade de você. O que houve?

— Estou doente, só isso. E acho que acabei de vomitar um rim.

— Você está bem? O que você tem?

— Nada demais. É que atearam fogo em mim e apagaram as chamas com tamancadas.

A desgraçada riu e eu não evitei rir também.

— É uma pena, estou com muita vontade de te ver, Anna.

— Mas eu não estou a fim de olhar para essa sua cara — brinquei. — Enfim, cadê o resto da turma?

— O André tá aqui do lado e te mandou um beijo molhado — ouvi a risada dele. — E o Davi estava te procurando. Você bem que podia ter nos avisado! — ela ralhou. — Nós te ligamos várias e várias vezes.

— É que eu passo a maior parte do tempo dormindo e tentando reengolir meus órgãos, não tinha como avisar.

— Não me interessa! Se você estiver morrendo tem que ligar nem que seja para dizer a hora do enterro!

— Prometo que da próxima vez eu aviso — tentei rir, mas minha cabeça doeu.

— Amiga, fique bem, ok? Infelizmente eu tenho que desligar agora, mas assim que der eu te visito.

— Não precisa, já já eu estou pronta para o combate. Vaso ruim não quebra — disse e Andressa me mandou um beijo. Desliguei o telefone e fiquei olhando para o teto.

O dia seria muito longo.

*

— Anna, você tem visita — Sarah me acordou gentilmente e gemi de desgosto embaixo dos lençóis. Já era noite e eu ainda tinha febre.

— Eu não quero ver ninguém, diz que eu estou dormindo — pedi. — Estou parecendo uma mendiga, não quero que ninguém me veja nesse estado.

— E desde quando você liga para essas coisas? — uma voz que eu conhecia muito bem me deixou desperta. Olhei de soslaio e vi Davi parado na minha porta, vovó sorrindo feito uma boba enquanto media minha temperatura. Rapidamente me livrei dela e me escondi novamente embaixo das cobertas.

— Vó, manda ele embora! — gritei, mesmo que estivesse morrendo de vontade de vê-lo após tantos dias. Eu realmente não ligava muito para a vaidade, mas aparecer na frente de um garoto com olheiras imensas, cabelo assanhado e trajando uma camisa horrorosa não fazia parte dos meus planos. — Agora!

— Deixa de ser malcriada, o menino veio aqui só para te ver! — ela ralhou. — Achei que você tivesse com saudade dele.

— Vó! — protestei, mas ela me ignorou. E, para acabar de vez comigo, ela puxou o pano que me cobria e me deixou com as pernas totalmente de fora. Então, sem nem se importar com a vergonha que eu estava passando, simplesmente foi embora. Mas antes de sair ela cochichou algo no ouvido de Davi e ele riu bastante.

— Como você está? — ele perguntou enquanto se aproximava de mim. Davi juntou o edredom que estava no chão e me cobriu, também um pouco sem jeito por causa da situação.

— Eu até estava bem, mas agora me deu uma leve vontade de pular de um penhasco. Sério, às vezes me pergunto se todas as avós são assim.

— Com certeza não — ele riu e eu me derreti toda. Então, lembrei que eu deveria estar parecendo um zumbi de The Walking Dead e voltei a me esconder.

— Por que você está fazendo isso? — senti o colchão afundar com o peso dele. — Você até que está bem.

— Você é um mentiroso — respondi. Então, por um instante eu esqueci que estava mal e só consegui me sentir feliz por tê-lo o meu lado. Bem perto.

— Ainda se sente mal? — Davi parecia preocupado.

— Sim. Mas logo logo eu estarei novinha em folha. Droga, isso acabou com os meus planos.

— Planos?

— É — eu sorri. — Estava só esperando você voltar para te levar para o mau caminho.

— É uma pena. Eu ia adorar. Mas então, íamos fazer o quê?

— Assalto a banco, invasão de domicílio e coisas do tipo — respondi e ele gargalhou. — Sou uma garota do crime.

— E eu ia ser o seu comparsa? Desculpe, mas não tenho vocação — Davi falou e ficamos em silêncio por um tempo. — O que é isso na sua testa? Brigou com alguém? — ele quis saber ao perceber o corte.

Fiquei vermelha no mesmo instante, lembrando que o motivo que havia me feito cair da cama estava bem ali na minha frente.

— Dei de cara na porta — menti a primeira coisa que veio a minha mente nebulosa.

— Tinha que ser você — Davi tocou levemente ao redor do corte e depois passou o dedo suavemente pelo meu rosto, e tive que resistir ao impulso de fechar os olhos. Então, ele segurou em ambas as minhas mãos e ficou olhando para elas.

— Eu estava com saudade de você — nós dois falamos juntos e por causa disso ficamos embaraçados, só nos restando rir.

— Se eu soubesse que você ia dizer isso não tinha aberto a boca. Não sou do tipo que tem sentimentos.

— Eu também não, mas algumas pessoas valem a pena.

O que eu poderia fazer? Quando ele dizia esse tipo de coisa minha mente simplesmente desaparecia e eu não conseguia sequer formular uma frase completa.

— Então, como foram as suas férias? — perguntei. Ele se acomodou melhor na cama, as mãos ainda unidas as minhas.

— Não fiz muita coisa, não havia uma boa companhia por lá — pausou. — Foi difícil ficar longe de você. Sabe, quero ser seu amigo para sempre, você é praticamente um “cara” — ele riu com vontade.

— Ah...

Embora eu tivesse escolhido tê-lo apenas como um amigo ao invés de afastá-lo com meus sentimentos não imaginei que essas palavras fossem me afetar tanto. A confirmação de que as coisas que eu sentia não eram recíprocas me machucaram, e saber que ele não me via nem como uma garota fizeram meu coração doer.

— Acho melhor você ir, Davi — falei, triste, soltando minhas mãos das dele. — Estou cansada, preciso dormir.

Então, ele finalmente olhou para mim e sorriu novamente, me deixando ainda mais confusa e perdida dentro de mim. Analisei a situação e percebi que seria difícil manter a sanidade da forma em que nos encontrávamos.

Eu estava frágil e ele estava tão perto de mim, sentado a minha frente, que era possível sentir o calor da sua respiração. Eu poderia beijá-lo se quisesse e, mesmo magoada, confesso que a vontade que me dominou era maior do que os protestos que a minha mente fazia, esmurrando as paredes da minha cabeça na tentativa de me trazer de volta.

Entretanto, quando eu já estava conseguindo vencer a minha batalha interna, ele se aproximou ainda mais de mim. Parei de respirar por alguns segundos.

— Me desculpe, eu sou um grosso — ele pediu. — Você não é um “cara”. Na verdade você é... maravilhosa.

Apenas fiquei em silêncio, absorvendo as coisas que ele havia dito. Tudo era muito confuso e eu não sabia o que fazer ou dizer. Porém, antes que eu pudesse medir as consequências, coloquei minha mão atrás da sua nuca.

— Tudo bem — sussurrei. — Não precisa se desculpar.

— Preciso aprender a parar de falar bobagem — ele encostou a testa na minha.

— Davi...

Tão próximos...

— Sim — ele fechou os olhos.

Mais próximos...

— Eu...

Mais próximos ainda...

— Você?...

— Você não sabe cuidar nem de uma minhoca, quanto mais de alguém! — gritaram do outro lado da minha porta e rapidamente nos afastamos. E de repente, como dois furacões, uma beldade loura majestosamente equilibrada num salto quinze e uma ruiva com um vestido cravejado de pedras e usando um salto tão alto quanto invadiram o meu quarto, assustando Davi ao ponto dele ficar apenas olhando para as duas criaturas sem dizer nada.

— Quantas vezes eu já disse para vocês dois baterem na porta antes de entrarem! — disse sem saber se deveria agradecê-los ou matá-los pela intervenção.

— Desculpa, não sabíamos que você tinha, hum, visita — Conchito – a loura – disse lançando um sorrisinho maléfico para Jeferson – a ruiva.

— Enfim, o que vieram fazer aqui? — perguntei tentando manter a calma. Olhei para Davi e ele parecia se divertir com a situação.

Como eu odiava esse garoto.

— Hora do remedinho, bebê — Jeferson arrancou o frasco que estava na mão de Conchito e o sacudiu três vezes antes de despejar o conteúdo em uma colher. Ele então expulsou Davi do meu lado e se sentou no lugar. — Abre a boquinha...

God, me leve para o céu, pois tá difícil viver por aqui...

— Jeferson, já disse que esse não é o remédio certo, anta. Não tá vendo que isso é xarope para gripe? — Conchito tomou o frasco da mão dele e os dois começaram a discutir.

— Já chega! — gritei. — Cadê a minha avó?

— Ela foi comprar umas coisas para te fazer uma sopa e pediu para que te déssemos o remédio na hora certa.

— O remédio certo está em cima da mesa da cozinha — falei. — Vão buscar.

— Agora não dá mais, temos que ir logo — Jeferson arrumou a peruca ruiva e o decote falso do seu vestido rosa choque. — Estamos mais do que atrasadas — quando ele se montava sempre usava o feminino.

— E eu vou ficar sozinha? — reclamei.

— Eu posso ficar com ela até a Dona Sarah voltar — Davi se ofereceu e as duas monas deram risadinhas toscas novamente, escondendo a boca com as mãos. Conchito deu um beijo de despedida na minha testa e Jeferson o imitou, antes de saírem arrastando Davi para a cozinha.

Aproveitei os minutos a sós para pensar na minha constrangedora situação. Eu estava doente, com uma aparência nada agradável, quase tinha beijado meu “amigo” e meu quarto havia sido invadido por duas divas de peruca.

Era para eu estar com raiva, mas ao invés disso não consegui parar de rir.

— É sempre assim na sua casa? — Davi perguntou logo que entrou novamente no meu quarto. Ele me estendeu um copo com água e dois comprimidos, que pela coloração pareciam ser os corretos, e eu os tomei.

Pareciam.

— Não, é pior — eu ri. — Em noite de show novo eles me enlouquecem para valer.

— Mas você gosta de viver aqui, não gosta? — ele indagou.

— Claro que sim — proferi dando uma respiração pesada. — Eu os amo.

Nós então conversamos sobre banalidades, sobre o primeiro dia de aula que eu havia perdido e ele riu quando contei a ele que meu cantor favorito era um cara que havia feito sucesso nos anos oitenta. Davi me surpreendeu ao dizer que gostava de ouvir hip-hop e alguns sambas, e me contou sobre a vontade de cursar arquitetura no futuro.

— Tem alguma coisa errada comigo — reclamei depois de algum tempo. — Minha cabeça está pesada demais — proferi com dificuldade e percebi que já havia sentido aquilo antes. Uma vez. — Davi, o que eram aqueles comprimidos que você me deu?

— Não sei, foi o Jeferson que me deu — ele disse assustado. — O que houve?

— Você viu ele tirar os comprimidos do frasco? — minha voz engrolou.

— Sim — respondeu. — Um frasco de cor laranja.

Oh, shit!

Meu corpo todo parecia flutuar no azul e senti uma vontade imensa de gargalhar. Eu não conseguia parar e tentei ao máximo me manter lúcida, mas parecia que a Sininho havia invadido meus olhos e lançado seu pozinho mágico em cada um deles.

— Davi — ofeguei. — Aquele é o calmante da minha avó... e eu sou sensível a ele — eu ri até saírem lágrimas dos meus olhos. Comecei a sentir uma sonolência absurda e juro que havia unicórnios voando no teto do meu quarto.

Juro mesmo.

— Fica calma, vai passar — ele encostou-se à cabeceira da minha cama e me puxou para si, deitando minha cabeça em seu peito. — Eu cuido de você — ele falou no meu ouvido e eu me arrepiei toda. Era tão aconchegante estar ali...

— Promete que não vai embora? — pedi.

— Prometo, Anna. Agora tente dormir — ele se acomodou e eu me enrosquei no corpo dele. Era tão quentinho...

— Eu gosto de você, sabia? — falei. Depois, percebi que não devia ter dito isso, mas os unicórnios voadores começaram a dançar e eu perdi o foco.

— Eu também gosto de você — ele disse.

Eu acho que ele disse.

E depois disso eu apaguei.

E eu nunca saberia se havia sido apenas minha imaginação.


 


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